Estes dias Miguel Nicolelis entrou no Twitter. É... o nosso cientista mor está lá conversando com todos, sem pedantismo, numa generosidade que acredito só pessoas raras têm. Mesquinhos não alcançam lugar de destaque.
Há anos li sobre Nicolelis, eu estava em Natal, recém chegada à cidade, e foi um sopro de esperança. Vi a foto do lugar onde seria o Instituto, torci para que desse certo. Deu. É uma alegria saber que está cada dia mais perto das estrelas. O menino cresceu olhando para o céu e desejando voar alto como Santos Dumont, que ele gosta de citar- um belo dia surpreendeu o mundo voando sobre Paris- Nicolelis nos surpreende com descobertas sobre nosso cérebro, ainda tão desconhecido O que sabemos dele? Que é uma massa cinzenta com neurônios. Pois o mestre cientista vai mais longe e descobre conexões antes inimagináveis.
Li num blog, quando fui procurar mais sobre ele: “Miguel Nicolelis é o Ademir da Guia da Seleção Brasileira de Cientistas: competente, generoso e modesto”.
Tem mérito e trabalhos apresentados para sentir-se orgulhoso o neto de Dona Lygia. Ele cita sempre a avó. Figura importante em sua formação, dizia-lhe que alçasse voos altos- ele a ouviu. A mãe escritora de livros infantis, também fantasiava, o pai juiz, com os pés no chão. A química certa para um homem especial.
O nosso cientista nasceu em Sampa, no Bexiga- bairro simpaticíssimo- ama ópera e o Palmeiras- é palmeirense roxo. Hoje vive mais nos EUA, onde comanda um laboratório de neurociência em Duke.
Natal cresce e se desenvolve agora com ciência de ponta. Miguel desperta- nos para o novo, para o possível dentro do impossível. Em mim foi como se recebesse uma energia nova. Aos poucos andei perdendo a força. Não tive uma avó Lygia.
Os projetos estão no site. Também poderão ler sobre os prêmios científicos que recebeu e sobre seu nome ter sido cotado para o Nobel aqui.
Aqui vídeos com palestras dele e entrevistas.
Uma sabatina da Folha aqui.
Uma boa entrevista aqui.
* Vocês não acham que ele se parece com Spielberg? Quem sabe nosso Miguel, neto de Dona Lygia, o brasileiro cientista, um dia será tão famoso quanto o cineasta que projetou o ET?
domingo, dezembro 26, 2010
domingo, dezembro 19, 2010
sábado, dezembro 18, 2010
Contardo Calligaris- Educar frustrando?
Foto Gil Prates
Formar o caráter de um jovem não significa apenas colocar limites, mas, sobretudo, autorizar
Em 14 de novembro, na avenida Paulista, um grupo de cinco jovens agrediu outros jovens sem razão aparente.
Não se sabe se o ato foi uma expressão de raiva homofóbica ou apenas a estupidez habitual de um grupinho de adolescentes soltos pelas ruas.
Em entrevistas na Folha, os pais de dois dos agressores se colocaram a eterna questão dos adultos quando os filhos aprontam além da conta: "onde foi que a gente errou?".
Em geral, muito mais do que nos erros dos pais, a origem da conduta criminosa (ou simplesmente estúpida) de um adolescente está no grupo ao qual ele pertence ou ambiciona pertencer.
Mas o que me importa hoje é que os pais, ao interrogar-se sobre o que fizeram de errado, concluíram que talvez eles tivessem colocado poucos limites nos filhos. Os jovens teriam se extraviado porque "faltou pulso".
Essa ideia é hoje um chavão: recusar, proibir, ou seja, frustrar os desejos dos jovens seria um ato formador do caráter. Aqueles a quem tudo seria dado não teriam noção da lei e dos limites; escravos de sua própria ânsia de satisfação imediata, eles não saberiam lidar com os contratempos da vida.
Nessa linha, como me lembrou uma leitora, Ana Lamanna, o psicanalista Wilfred Bion (em "The Theory of Thinking", teoria do pensamento, 1962) supunha que as frustrações fossem um requisito do pensamento.
Ao longo do desenvolvimento, inteligência e criatividade apareceriam à condição de que as vontades não fossem todas satisfeitas. Vulgo: a satisfação emburrece e as frustrações têm valor pedagógico.
Na semana retrasada, nesta coluna, mencionei a ideia, derivada de J. Bowlby e D.W. Winnicott (injustamente derivada, observou com razão um leitor, Davy Bogomoletz), de que a privação na infância estaria na origem da delinquência adulta.
Para a psicanálise, privação e frustração não são bem a mesma coisa, mas, para o leigo, surge uma certa contradição: afinal, ser frustrado ou privado estraga ou forma o caráter de nossos rebentos?
Outra leitora, Maria Chantal Amarante, antevendo essa contradição, propôs uma solução: "Frustrar as necessidades básicas deixa feridas imensas" (e pode, portanto e por exemplo, levar à delinquência), mas não por isso seria menos necessário "frustrar os desejos e vontades ilimitados das crianças de hoje", para que elas não "cresçam achando que podem tudo".
Como Maria Chantal, acho que muitas coisas devem ser recusadas às crianças -desde as que não são adaptadas à idade que elas têm até as que pediriam aos pais um sacrifício excessivo. No entanto, duas observações:
1) Podemos frustrar nossos filhos de pipoca e videogames, sobretudo quando eles parecem acreditar que tudo lhes é devido, mas imaginar que, com isso, a gente esteja lhes formando o caráter ou lhes ensinando a viver é puro melodrama.
Funciona assim: nós imaginamos que seríamos capazes de mimar as crianças a ponto de elas nunca aprenderem que a insatisfação é o regime normal do desejo.
Será que alguém tem tamanho poder? Não acredito, mas, aparentemente, fortes dessa ilusão, decidimos frustrá-las um pouco para salvá-las de nossa suposta (e duvidosa) capacidade de embrutecê-las à força de satisfação.
2) Também justificamos nossa decisão de recusar e proibir com a ideia de que isso estabeleceria, nas crianças, uma sólida e benéfica ideia de autoridade.
Cá entre nós, é preciso que a autoridade em geral e a nossa em particular sejam bem decadentes para que, a fim de serem levadas a sério, elas precisem privar as crianças de balas, cinema ou TV.
Mais importante: o que estabelece a autoridade e forma o caráter é mesmo o ato de recusar e proibir?
Ao procurarmos nossas falhas educativas (que sempre existem), seria bom não buscá-las só na falta de proibições e limites, mas também na falta de autorizações.
Pois, ao educar, o mais difícil talvez não seja impor limites e interdições. O mais difícil talvez seja transmitir às nossas crianças a coragem de desejar.
Proibir as saídas noturnas e o uso prolongado de computador é ótimo e necessário, mas a autoridade que forma o caráter de um jovem não é só a que diz não às suas vontades; é também a que o autoriza a dizer sim na hora daquelas escolhas de vida que são custosas e decisivas e diante das quais é fácil amarelar.
Artigo da Folha de São Paulo
Formar o caráter de um jovem não significa apenas colocar limites, mas, sobretudo, autorizar
Em 14 de novembro, na avenida Paulista, um grupo de cinco jovens agrediu outros jovens sem razão aparente.
Não se sabe se o ato foi uma expressão de raiva homofóbica ou apenas a estupidez habitual de um grupinho de adolescentes soltos pelas ruas.
Em entrevistas na Folha, os pais de dois dos agressores se colocaram a eterna questão dos adultos quando os filhos aprontam além da conta: "onde foi que a gente errou?".
Em geral, muito mais do que nos erros dos pais, a origem da conduta criminosa (ou simplesmente estúpida) de um adolescente está no grupo ao qual ele pertence ou ambiciona pertencer.
Mas o que me importa hoje é que os pais, ao interrogar-se sobre o que fizeram de errado, concluíram que talvez eles tivessem colocado poucos limites nos filhos. Os jovens teriam se extraviado porque "faltou pulso".
Essa ideia é hoje um chavão: recusar, proibir, ou seja, frustrar os desejos dos jovens seria um ato formador do caráter. Aqueles a quem tudo seria dado não teriam noção da lei e dos limites; escravos de sua própria ânsia de satisfação imediata, eles não saberiam lidar com os contratempos da vida.
Nessa linha, como me lembrou uma leitora, Ana Lamanna, o psicanalista Wilfred Bion (em "The Theory of Thinking", teoria do pensamento, 1962) supunha que as frustrações fossem um requisito do pensamento.
Ao longo do desenvolvimento, inteligência e criatividade apareceriam à condição de que as vontades não fossem todas satisfeitas. Vulgo: a satisfação emburrece e as frustrações têm valor pedagógico.
Na semana retrasada, nesta coluna, mencionei a ideia, derivada de J. Bowlby e D.W. Winnicott (injustamente derivada, observou com razão um leitor, Davy Bogomoletz), de que a privação na infância estaria na origem da delinquência adulta.
Para a psicanálise, privação e frustração não são bem a mesma coisa, mas, para o leigo, surge uma certa contradição: afinal, ser frustrado ou privado estraga ou forma o caráter de nossos rebentos?
Outra leitora, Maria Chantal Amarante, antevendo essa contradição, propôs uma solução: "Frustrar as necessidades básicas deixa feridas imensas" (e pode, portanto e por exemplo, levar à delinquência), mas não por isso seria menos necessário "frustrar os desejos e vontades ilimitados das crianças de hoje", para que elas não "cresçam achando que podem tudo".
Como Maria Chantal, acho que muitas coisas devem ser recusadas às crianças -desde as que não são adaptadas à idade que elas têm até as que pediriam aos pais um sacrifício excessivo. No entanto, duas observações:
1) Podemos frustrar nossos filhos de pipoca e videogames, sobretudo quando eles parecem acreditar que tudo lhes é devido, mas imaginar que, com isso, a gente esteja lhes formando o caráter ou lhes ensinando a viver é puro melodrama.
Funciona assim: nós imaginamos que seríamos capazes de mimar as crianças a ponto de elas nunca aprenderem que a insatisfação é o regime normal do desejo.
Será que alguém tem tamanho poder? Não acredito, mas, aparentemente, fortes dessa ilusão, decidimos frustrá-las um pouco para salvá-las de nossa suposta (e duvidosa) capacidade de embrutecê-las à força de satisfação.
2) Também justificamos nossa decisão de recusar e proibir com a ideia de que isso estabeleceria, nas crianças, uma sólida e benéfica ideia de autoridade.
Cá entre nós, é preciso que a autoridade em geral e a nossa em particular sejam bem decadentes para que, a fim de serem levadas a sério, elas precisem privar as crianças de balas, cinema ou TV.
Mais importante: o que estabelece a autoridade e forma o caráter é mesmo o ato de recusar e proibir?
Ao procurarmos nossas falhas educativas (que sempre existem), seria bom não buscá-las só na falta de proibições e limites, mas também na falta de autorizações.
Pois, ao educar, o mais difícil talvez não seja impor limites e interdições. O mais difícil talvez seja transmitir às nossas crianças a coragem de desejar.
Proibir as saídas noturnas e o uso prolongado de computador é ótimo e necessário, mas a autoridade que forma o caráter de um jovem não é só a que diz não às suas vontades; é também a que o autoriza a dizer sim na hora daquelas escolhas de vida que são custosas e decisivas e diante das quais é fácil amarelar.
Artigo da Folha de São Paulo
sexta-feira, dezembro 10, 2010
Oscar Niemeyer estréia como compositor aos 103 anos
Botecos do Vale do Cafe: Oscar Niemeyer estréia como compositor aos 103 anos.
Prestem atenção na letra- bonita e politizada.
Exemplar! Lúcido e criando aos 102 anos!
sexta-feira, dezembro 03, 2010
Muniz Sodré - Reality show em tempo real - 30/11/2010
"Há algo de socialmente obsceno nesse transbordamento do espetáculo. É moralmente inadmissível essa assimilação de uma tragédia urbana, com mortes e sofrimento, a um show de TV. Nem faz justiça ao comportamento da polícia: o Bope sentiu-se prejudicado, em plena ação, pela cobertura televisiva; o secretário de Segurança enfatizou que "não há nada a celebrar". O comedimento da polícia é uma crítica implícita à falta de consciência crítica dos jornalistas."
Leiam aqui: Observatório da Imprensa - Muniz Sodré - Reality show em tempo real - 30/11/2010.
Texto excelente.
Via Dalva Silva. Tks.
quinta-feira, dezembro 02, 2010
Contardo Calligaris- Delinquência e privação
Quem se sente culpado não age -no máximo, ele espera que suas vítimas se vinguem
Uma cena emblemática da desfeita (temporária ou não) do tráfico carioca foi a visão de um punhado de traficantes armados, correndo e tropeçando, fugindo da Vila Cruzeiro em direção ao Morro do Alemão.
Um amigo comentou que esses restos esfarrapados de um exército na debandada lhe davam pena. "Pena?", estranhei. O amigo respondeu que ele conhece as crueldades das quais os traficantes são capazes, mas, acrescentou, "no fundo, eles são as verdadeiras vítimas". "Vítimas de quê?", perguntei. "Da miséria, da exclusão, da pobreza material e moral", ele respondeu, com condescendência.
Meu amigo não é bronco: ele sabe que nem a miséria nem a exclusão são suficientes para produzir um delinquente. Justamente, os fugitivos da Vila Cruzeiro eram um punhado: o crime, no morro, é a escolha de pouquíssimos.
Ainda assim, meu amigo acredita que as durezas são, no mínimo, uma causa coadjuvante da delinquência. Quando e como surgiu essa ideia?
Não sei dizer, mas um marco é a carta endereçada ao British Medical Journal, no fim de 1939, por J. Bowlby, D.W. Winnicott e E. Miller; ela é reproduzida no começo de "Privação e Delinquência" (Martins Fontes), que reúne os extraordinários textos de Winnicott sobre o tema. A carta foi escrita enquanto, na Inglaterra, as crianças citadinas eram evacuadas para lares rurais, na intenção de protegê-las dos bombardeios. Os autores assinalam que, para crianças entre 2 e 5 anos, a separação prolongada de seus lares é "um importante fator externo na causação de delinquência" futura.
Entre as crianças evacuadas estavam os protagonistas de "As Crônicas de Nárnia" (livros e filmes), e as crônicas talvez ofereçam um prognóstico complementar ao da carta que citei.
Pelas crônicas, as crianças que forem privadas de um lar não se tornarão necessariamente más e transgressoras: elas tentarão conferir a suas vidas uma dimensão "heroica", do jeito que der -como se, na falta de um lar onde ser tranquilamente quaisquer, elas precisassem transformar suas vidas em epopeias. Com isso, algumas lutarão ao lado do leão Aslam, uma delas trairá Nárnia e, mais perto de nós, algumas inventarão sua própria épica grotesca brandindo armas do alto de um morro carioca.
Seja como for, aceito a ideia de Bowlby e Winnicott de que a privação de amor e de cuidados maternos pode ser uma das causas da delinquência. Mas essa constatação inicial engendrou uma versão "ampliada" pela qual, em geral, uma infância sofrida explicaria a delinquência do adulto.
O elo é que uma frustração trivial, imposta a uma criança, pode funcionar como uma privação afetiva: se não tenho o tênis que quero é porque a mãe (indigna) não me ama. Portanto, quem sofre pela falta de um tênis está sendo, de fato, privado de amor (e tem mais chances de se tornar delinquente).
Ora, para que serve essa ideia de que as frustrações produziriam delinquência? Pois bem, essa ideia nos permite, por exemplo, explicar a existência do mal: a delinquência existe porque frustramos cruelmente um monte de crianças. Ou seja, a nossa culpa organiza e torna inteligível o mundo.
Será que com isso nossa ação será mais fácil? Afinal, se o mundo é iníquo por culpa nossa, não deveria ser simples mudá-lo? Infelizmente, não é assim que a culpa funciona: quem se sente culpado não age -no máximo, ele espera que suas vítimas se vinguem. Conclusão: podemos idealizar a delinquência como justa revanche dos que nós, egoístas, privamos de tênis e de amor.
Meu amigo diria: por que não? A revanche não seria um bom jeito de fazer justiça? Seria, mas a espera da revanche dos privados e dos frustrados nunca passa de uma atitude retórica para amenizar a culpa, que, de novo, não leva a ação alguma, só a lamúrias em prol, como dizia meu amigo, das "verdadeiras vítimas" (as falsas, "obviamente", seriam as que sofrem com a violência delinquente).
Agora, uma boa notícia: ao longo do fim de semana, exceção feita pela observação de meu amigo, não escutei nenhum ato de contrição. É uma boa notícia, porque isto aprendi ao longo de minha clínica: só é possível agir e mudar (um pouco) o mundo com a condição de se liberar da culpa e da falsa compreensão que ela produz.
Talvez, desta vez, sem as ladainhas da culpa, algo mude no Rio de Janeiro.
Artigo de hoje- Folha de São Paulo.
terça-feira, novembro 30, 2010
E ai, cara pálida? Ou 'E agora José?'
E ai, cara pálida? Ou 'E agora José?'
Quando vi, pela primeira vez, um menino encolhido deitado sobre uma tampa daquelas que existem nas calçadas, no meio da tarde, as pessoas desviando, senti dor profunda. Fazia frio, ele se aquecia no ar morno que subia da tubulação subterrânea.
Continuei meu caminho. Era um menino viciado em cola, eu já os vira por ali muitas vezes, em frente às lojas de luxo de Ipanema.
Conversei com amigos, fizemos um projeto social com um nome bonito IPPE (Institudo de Psicologia Preventiva e Ensino). Registramos, tínhamos livro Ata, estas coisas. Ai, um dos amigos teve um derrame, o outro ficou sem tempo e eu sozinha não dei conta, naquele momento fui levada para longe por um tsunami pessoal.
O projeto está aqui em alguma gaveta, penso nele sempre, pretendíamos atender em grupos em clínicas sociais de bairros. Cada bairro uma clínica, teríamos uma clínica piloto inicialmente. Seria um espaço para as pessoas serem ouvidas, pretendíamos um trabalho preventivo.
A onda gigante me trouxe para o nordeste. Aqui tenho tentado encontrar espaço para um trabalho social, há muito o que se fazer, mas pouco espaço. Há que se cavar a terra e eu não encontrei ainda as ferramentas adequadas. Isto leva tempo, espero não desistir, não há mais tempo a perder, o tempo urge.
segunda-feira, novembro 29, 2010
Um jovem que faz a diferença- Morro do Alemão- Rio de Janeiro
Parabéns, Rene Silva e cia. Estou torcendo por vocês.
Aqui: Notícias de uma guerra particular
Rene Silva, jovem do morador do Morro do Adeus, twittou em tempo real a invasão da polícia ao Complexo do Alemão.
" Estudante e morador do
Morro do Adeus, no Complexo
do Alemão, Rene é repórter,
fotógrafo, redator, editor e colunista
do Voz da comunidade,
jornal que criou há cinco anos
para denunciar os problemas
da sua região. O sucesso do
periódico fez com que ele conseguisse
o patrocínio de uma
operadora de celular, que lhe
deu um iPhone, aparelho que
também usa para twittar e fazer
fotos e vídeos."
sexta-feira, novembro 12, 2010
terça-feira, novembro 09, 2010
Contardo Calligaris no Roda Viva
Vejam aqui a entrevista, apesar da tendência política de alguns jornalistas, Contardo conseguiu sair-se muito bem falando- ele é ótimo quando se expressa. Vejam e digam.
quinta-feira, novembro 04, 2010
O dia em que caiu o véu e o preconceito
Muito triste isto. Vivi no sul, depois sudeste e nunca havia visto uma reação hostil tão intensa.
Vivo no nordeste, admiro o nordestino pela força, pelo trabalho. Não é um povo, como pensam muitos, que vive na rede, ou de esmola- é um povo que trabalha sob um sol de deserto, sem água, sem sombra, sem refresco.
Observo isto desde que cheguei- usam camisas de mangas compridas- um dia perguntei a um pedreiro o porquê: Para não pegar tanto sol.
Imaginem, sol a pino, 40°, e você trabalhando das sete às cinco da tarde, com 20' para almoçar.
Me referi aqui aos trabalhadores de obras, que são os que eu pude ver de perto enquanto faziam minha casa e as outras do condomínio. Eles continuam aqui ao lado construindo outro condomínio para a classe média alta viver.
São simples, não têm inveja, agradecem o que têm. Dizem naquele sol escaldante quando passo por um e digo:
- Que sol, hein?
- É, mas graças a Deus temos emprego.
Nordestino não vive de esmola, trabalha se tem emprego, trabalha duro. Vejo os vizinhos, saem cedo, mal os vejo, voltam tarde- muitos à noite, estudam.
Lamento que uma elite arrogante pense ser melhor do que este povo daqui. Prefiro mil vezes uma pessoa simples do que o esnobismo do frequentador de um shopping center.
Evito citar os lugares dos ataques contra nós- também me incluo, afinal escolhi viver aqui-porque sei que não vem de um setor apenas, de uma região- aqui mesmo em Natal ouvi uma pessoa dizer que Dilma iria ganhar porque a esmola do Lula funcionou.
Não sou especiaista no assunto, mas sei que alguns ganham, sim, uma cesta básica- ou bolsa família- para que os filhos não morram de fome. Há muita pobreza ainda, sim- há mulheres sozinhas, muitas, criando vários filhos sem recursos nenhum- sem instrução, sem apoio, sem saúde- estas são beneficiadas com o Bolsa família. Estas são beneficiadas com o leite para os filhos. Algumas se drogam, vendem o que recebem em cesta básica- esta é uma realidade que eu sei que está muito próxima de mim- ali onde minha faxineira mora.
Como condenar à morte esta geração de mulheres e crianças? Como fingir que não existem?
Por isso votei em Dilma.
O mínimo que um Governo precisa fazer por um povo é não deixá-lo morrer de fome. Lula não deixou e ofereceu emprego, abriu frentes de trabalho- eu vejo aqui o número enorme de obras da construção civil. Ai, dizem, a classe média se ferra. Não, esta classe se beneficia com as facilidades de um financiamento para comprar uma casa própria- é o que acontece por aqui. Ai, não?
Eu nunca fui lulista nem dilmista, mas no momento em que vi Dilma ser atacada assumi o meu papel de mulher na campanha- não poderia permanecer impassível diante de tantos ataques a uma pessoa que lutou por democracia enquanto eu me fechava por medo.
Obrigada Lula, obrigada Dilma!
Sorte e vida longe para os dois.
E quanto a este povinho reacionário, insensível, cego à pobreza que ainda persiste, o nosso desprezo.
Não pensem que por viveram em cidades com mais recursos, mais ricas, isso faz de vocês pessoas melhores- pelo contrário- estão mostrando o que há de pior nos Homens- o preconceito, o racismo, o ódio, quando todos somos irmãos.
Alguém duvida?
O Brasil nasceu aqui. Ou não sabem história do Brasil?
Minha família tem origem na Paraíba, lembrei agora.
Vídeo daqui:
Mayara Petruso quer afogar nordestinos. Ela não é a única | Blog do Rovai
Contardo Calligaris: Qual divisão do país?
O país me parece muito mais maduro do que mostraram os grupos raivosos das militâncias |
SEGUNDA-FEIRA CHUVOSA, no Rio. Leio todos os jornais que encontro, tomando meu café da manhã na Pavelka, padaria merecidamente popular, no Leblon. Não sou o único cliente com mais de um cotidiano nas mãos.
Na mesa do meu lado, dois homens, mais ou menos da minha idade, comentam o resultado da eleição presidencial. Aparentemente, um dos dois votou no Serra, e o outro, na Dilma; mas é óbvio que nenhum dos dois é um fanático.
O tom geral da conversa é de uma certa preguiça, um "ainda bem que terminou", alimentado pela sensação (que os dois parecem compartilhar) de que não havia nada de realmente decisivo que opusesse os candidatos do segundo turno.
Enquanto escuto os dois amigos do Leblon, que comem croquetes de frango e carne, como eu, penso que o país não está dividido e não tem por que estar.
Para começar, contrariamente ao que foi repetido nas queixas de ambas as partes, a campanha não foi especialmente violenta nem sórdida. Tudo bem, voaram balões de água e rolos de fita crepe, e os militantes se chocaram aos berros, de vez em quando. Como é normal que aconteça, cada lado acusou o outro de baixaria e brutalidade. E cada lado zombou das "lamúrias" do outro. Por sorte (mas, na verdade, penso que não foi sorte: foi juízo), os (raros) enfrentamentos nunca tiveram consequências graves, e eu me lembro de uma época, na Europa, em que uma manifestação sem feridos era exceção.
Cá entre nós, a campanha de 2010 foi tranquila. E não acho que isso tenha acontecido só graças ao temperamento naturalmente conciliatório dos brasileiros.
Ainda no primeiro turno, li as propostas e os argumentos de Dilma, Serra e Marina. Pois bem, nunca fiquei com a impressão de que o país estivesse, como se dizia nos meus tempos, diante de uma "escolha de sociedade", tendo que decidir entre futuros radicalmente divergentes. Ao contrário, parece-me que o país teve a sorte de ser chamado a votar em candidatos que todos, atrás das oposições indispensáveis para que as candidaturas e as campanhas fizessem sentido, compartilhavam as mesmas preocupações básicas.
Nesta segunda, vários cotidianos apresentaram, mais uma vez, os planos de governo de Dilma e Serra, frente a frente, para uma última comparação. Reli com cuidado. Claro, há diferenças quanto às prioridades e aos meios e, de qualquer forma, resta se perguntar qual dos dois seria mais eficiente na hora do vamos ver, mas o sentimento inspirador é parecido. Ou seja, nada impediria que José Serra e Dilma estivessem aqui, na Pavelka, discutindo o que seria melhor para o país, entre amigos.
Afinal, eles pertencem a uma mesma geração, a dos que definiram suas aspirações políticas (de fato, suas vidas) na resistência à ditadura militar. Como não compartilhariam um fundo moral comum? Como poderia ser que ambos não desejassem, de um jeito ou de outro, uma sociedade livre e decente, na qual seja mais agradável conviver?
Quem assistiu aos debates presidenciais na televisão afirma que eles foram chatos; aliás, que toda a campanha foi chata. Concordo, mas não estranho: quando existe, entre candidatos, um fundo político comum, só resta debater temas cuja relevância é fictícia ou pretextuosa e, sobretudo, inventar jeitos de demonizar o adversário.
Essa última foi a função das militâncias, oficiais e oficiosas. Sobre esse tema sou suspeito: tenho ojeriza a todas as identidades coletivas. A história de minha geração de europeus e norte-americanos é que passamos por várias identidades coletivas e, no fim, ficamos fundamentalmente anarquistas (ou, numa vertente mais integrada, individualistas).
Peço vênia, mas, recebendo os inúmeros e-mails das militâncias, com desnudamentos extraordinários de última hora, revelações desvendando o grande complô da mídia, e, enfim, agora, com as maldições dos que perderam e os hosanas dos que ganharam, sinto-me um pouco como num jogo de futebol, em que a violência estúpida e cega das torcidas me impede de aproveitar meu domingo no estádio.
Mesmo assim, nesta segunda chuvosa, aqui no Rio de Janeiro, o país me parece infinitamente mais maduro do que suas militâncias - mais parecido com uma mesa da Pavelka com amigos discordando e discutindo do que com o espaço raivoso e vazio da gritaria on-line das últimas semanas.
Da Folha de São Paulo.
terça-feira, novembro 02, 2010
quinta-feira, outubro 28, 2010
Contardo Calligaris- Cordialidades
Img daqui
Será que pode funcionar uma sociedade em que as razões íntimas do coração dominam a vida pública?
Numa manhã da semana passada, cancelei meus compromissos e fiquei em casa, esperando a visita do representante de uma companhia de telefonia móvel.
Quinze minutos depois da hora marcada, como ele não aparecia, quis confirmar sua vinda. O celular do representante deu caixa postal; deixei um recado e esperei. Nada aconteceu, e contatei a central de atendimento ao cliente, que tinha agendado a visita. Aprendi assim que o representante não compareceria porque, logo naquela manhã, a mãe dele morrera.
Lembrei-me do jovem Antoine Doinel, o herói de "Os Incompreendidos", de Truffaut, que mata aula e, na hora de justificar sua ausência, inventa que a mãe morreu. Quantas vezes, pensei, ao longo de minha escolaridade, minha avó morreu, renasceu e morreu de novo?
O humor era descabido, visto que o luto do representante tinha toda chance de ser real. Poucos dias depois, aliás, quando o encontrei, ofereci-lhe meus pêsames sinceros. Então, qual era a graça? De onde vinha a inspiração para zombar?
Pois é, eu estava um pouco irritado (e sarcástico) por não ter sido avisado de que o compromisso seria desmarcado. E não era só isso. Havia também algo exótico, para mim, no caráter íntimo, excessivamente emocional da justificação.
Na França, numa situação equivalente, eu seria informado, no máximo, de que o compromisso teria que ser remarcado por causa de um "luto de família". Sem mais.
Nos EUA (ainda mais em Nova York), nada seria dito do motivo pelo qual, "infelizmente", o compromisso não poderia ser honrado.
Em suma, a desculpa dada parecia ser um ótimo exemplo do grande peso que as razões íntimas do coração têm na nossa vida pública -ou seja, um exemplo de "cordialidade" brasileira, no sentido que Sérgio Buarque de Holanda inventa para essa palavra em "Raízes do Brasil" (Companhia das Letras, 1997; a editora está republicando a obra de Sérgio Buarque de Holanda e acaba de sair "Visão do Paraíso", que é meu Sérgio Buarque preferido).
Mas voltemos à cordialidade nacional. Deixemos de lado as consequências políticas, que são obviamente perniciosas (quando o privado invade o público, a vida política só pode ser contaminada por corrupção, nepotismo, procura por vantagens familiares e privilégios pessoais -acima do dever cívico). E consideremos apenas o dilema do compromisso e do luto repentino.
Na hora de desmarcar, é preferível explicitar as razões comovedoras, pedindo a participação afetiva do cliente (a minha, no caso) e assim, talvez, conquistando sua simpatia? Ou, então, discretamente, impedir que os afetos privados entrem no espaço público do comércio e do trabalho?
No primeiro caso, teremos um mundo, certamente, mais humano. No segundo, um mundo mais funcional, em que os afetos privados não atrapalhariam as engrenagens da vida pública.
Mas, fiquei me perguntando, será que um mundo menos cordial é necessariamente mais funcional? O mesmo dia me trouxe uma resposta, que cada um poderá avaliar.
Enquanto tomava meu café, uma hora antes do dito compromisso com o representante, alguém ligou para a minha casa. Cícera, minha governanta, atendeu e logo interrompeu a ligação por se tratar de um engano (isso eu ouvi ela dizer).
No fim da manhã, depois de ter presenciado as várias ligações (para o representante e para a companhia de telefonia) nas quais eu me queixava de não ter sido avisado, eis que Cícera me revelou que o telefonema que ela atendera no começo da manhã talvez tivesse sido uma tentativa de me avisar e desmarcar o compromisso. Perguntei: Como assim?
Pois bem, realmente, alguém dissera que o representante não poderia comparecer no horário previsto porque a mãe dele tinha morrido.
Mas, então, perguntei para Cícera, o que aconteceu? Será que, na hora, você não entendeu bem o recado? Não, respondeu Cícera, eu entendi, mas a pessoa que ligou falou de morte, e morte aqui eu não vou deixar entrar: "Morte aqui, só pode ser engano".
Sem dúvida, a cordialidade, nesse caso, atrapalhou. Mas como é que eu me queixaria? Vai que Cícera tenha razão. Afinal, talvez a morte, como o vampiro, para poder entrar, precise ser evocada ou convidada, de uma maneira ou de outra. Não é?
A todos, feliz dia das bruxas.
Artigo de hoje da Folha de SP.
Será que pode funcionar uma sociedade em que as razões íntimas do coração dominam a vida pública?
Numa manhã da semana passada, cancelei meus compromissos e fiquei em casa, esperando a visita do representante de uma companhia de telefonia móvel.
Quinze minutos depois da hora marcada, como ele não aparecia, quis confirmar sua vinda. O celular do representante deu caixa postal; deixei um recado e esperei. Nada aconteceu, e contatei a central de atendimento ao cliente, que tinha agendado a visita. Aprendi assim que o representante não compareceria porque, logo naquela manhã, a mãe dele morrera.
Lembrei-me do jovem Antoine Doinel, o herói de "Os Incompreendidos", de Truffaut, que mata aula e, na hora de justificar sua ausência, inventa que a mãe morreu. Quantas vezes, pensei, ao longo de minha escolaridade, minha avó morreu, renasceu e morreu de novo?
O humor era descabido, visto que o luto do representante tinha toda chance de ser real. Poucos dias depois, aliás, quando o encontrei, ofereci-lhe meus pêsames sinceros. Então, qual era a graça? De onde vinha a inspiração para zombar?
Pois é, eu estava um pouco irritado (e sarcástico) por não ter sido avisado de que o compromisso seria desmarcado. E não era só isso. Havia também algo exótico, para mim, no caráter íntimo, excessivamente emocional da justificação.
Na França, numa situação equivalente, eu seria informado, no máximo, de que o compromisso teria que ser remarcado por causa de um "luto de família". Sem mais.
Nos EUA (ainda mais em Nova York), nada seria dito do motivo pelo qual, "infelizmente", o compromisso não poderia ser honrado.
Em suma, a desculpa dada parecia ser um ótimo exemplo do grande peso que as razões íntimas do coração têm na nossa vida pública -ou seja, um exemplo de "cordialidade" brasileira, no sentido que Sérgio Buarque de Holanda inventa para essa palavra em "Raízes do Brasil" (Companhia das Letras, 1997; a editora está republicando a obra de Sérgio Buarque de Holanda e acaba de sair "Visão do Paraíso", que é meu Sérgio Buarque preferido).
Mas voltemos à cordialidade nacional. Deixemos de lado as consequências políticas, que são obviamente perniciosas (quando o privado invade o público, a vida política só pode ser contaminada por corrupção, nepotismo, procura por vantagens familiares e privilégios pessoais -acima do dever cívico). E consideremos apenas o dilema do compromisso e do luto repentino.
Na hora de desmarcar, é preferível explicitar as razões comovedoras, pedindo a participação afetiva do cliente (a minha, no caso) e assim, talvez, conquistando sua simpatia? Ou, então, discretamente, impedir que os afetos privados entrem no espaço público do comércio e do trabalho?
No primeiro caso, teremos um mundo, certamente, mais humano. No segundo, um mundo mais funcional, em que os afetos privados não atrapalhariam as engrenagens da vida pública.
Mas, fiquei me perguntando, será que um mundo menos cordial é necessariamente mais funcional? O mesmo dia me trouxe uma resposta, que cada um poderá avaliar.
Enquanto tomava meu café, uma hora antes do dito compromisso com o representante, alguém ligou para a minha casa. Cícera, minha governanta, atendeu e logo interrompeu a ligação por se tratar de um engano (isso eu ouvi ela dizer).
No fim da manhã, depois de ter presenciado as várias ligações (para o representante e para a companhia de telefonia) nas quais eu me queixava de não ter sido avisado, eis que Cícera me revelou que o telefonema que ela atendera no começo da manhã talvez tivesse sido uma tentativa de me avisar e desmarcar o compromisso. Perguntei: Como assim?
Pois bem, realmente, alguém dissera que o representante não poderia comparecer no horário previsto porque a mãe dele tinha morrido.
Mas, então, perguntei para Cícera, o que aconteceu? Será que, na hora, você não entendeu bem o recado? Não, respondeu Cícera, eu entendi, mas a pessoa que ligou falou de morte, e morte aqui eu não vou deixar entrar: "Morte aqui, só pode ser engano".
Sem dúvida, a cordialidade, nesse caso, atrapalhou. Mas como é que eu me queixaria? Vai que Cícera tenha razão. Afinal, talvez a morte, como o vampiro, para poder entrar, precise ser evocada ou convidada, de uma maneira ou de outra. Não é?
A todos, feliz dia das bruxas.
Artigo de hoje da Folha de SP.
terça-feira, outubro 26, 2010
Metrópolis no Ibirapuera
Maravilha!
"Mostra Internacional de Cinema // Metrópolis no Ibirapuera
André Dib
andredib.pe@dabr.com.br
São Paulo - Uma única sessão de cinema foi capaz de reunir mais de doze mil pessoas no Parque do Ibirapuera. Como ignorar a projeção, na parede externa do auditório desenhado por Oscar Niemeyer, da cópia restaurada do clássico do expressionismo alemão Metropolis (Alemanha, 1927), de Fritz Lang? A singularidade do programa o tornou irresistível e atraiu diferentes tribos e gerações. Sincronizado com o som da Orquestra Jazz Sinfônica, que interpretou o music score original composto por Gottfried Ruppertz, o filme de 248 minutos teve sua primeira exibição na América Latina, promovida pela Mostra Internacional de Cinema.
Era uma noite de domingo fria e úmida, o filme-evento teve dois intervalos para descanso da orquestra, mas o público resistiu até o fim. E aplaudiu de pé.Foi um cenário e tanto. Árvores escuras, em contraste com o céu monocromático, poderiam ser a extensão em 3D do da distopia futurista criada por Lang. Oitenta anos depois, em silêncio, a metrópole assiste a si mesma. Entre os convidados do evento estava o diretor alemão Olav Saumer..."
Queria ter estado lá- iria me emocionar.
Mais aqui.
sábado, outubro 23, 2010
Sólida iniciação
Revista Cult » Sólida iniciação
Marilena Chaui: conciliação entre rigor acadêmico e linguagem acessível
quinta-feira, outubro 21, 2010
Contardo Calligaris- Pensamentos concretos sobre o aborto
Em matéria de aborto, não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo
1) Às vezes, para descobrir o que pensamos, é útil pôr de lado nossos princípios. Pois, em matéria de costumes, os preceitos gerais servem sobretudo para evitar dilemas concretos nos quais nosso pensamento iria revelar-se muito mais complexo do que os princípios que bradamos.
2) Numa situação em que o aborto seja necessário para salvar a mãe, mesmo nos meses finais da gravidez, quase todos dirão que a vida da mãe deve ser preservada (aqui, a lei brasileira, como é normal que aconteça, sanciona o sentimento da maioria).
Agora, imagine que, cinco minutos depois do corte do cordão umbilical, apareça uma condição médica na qual a mãe morrerá sem falta se não receber o transplante de um órgão que só o recém-nascido pode lhe oferecer -sendo que o bebê perderá a vida ao ser privado desse órgão. Para qualquer um de nós, esse transplante mortífero seria uma abominação.
Imagine ainda que, no meio de um parto difícil, a mulher esteja inconsciente e o médico pergunte ao pai: "Devo salvar a mãe ou a criança?". O pai que decidisse salvar a criança (e sacrificar a mãe) seria, aos nossos olhos, acredito, um simples uxoricida.
Parece, em suma, que o direito do feto à vida está subordinado ao da mãe e é inferior ao da criança que já nasceu.
Mas consideremos o caso de alguém que matou uma mulher grávida e, abrindo seu corpo, esfaqueou o feto. No meu foro íntimo, ele é culpado de dois assassinatos.
Da mesma forma, o canalha que, voltando bêbado para casa, produziu o aborto de sua mulher a pontapés e agulha de tricotar enfiada à força no útero, no meu foro íntimo, é um assassino de fato e de direito, não "só" um espancador de mulher.
De repente, a vida do feto parece adquirir uma dignidade comparável à dos adultos.
3) Aceitamos que o aborto seja praticado para preservar a vida da mãe. Mas é curioso que "vida", nesse caso, signifique apenas simples sobrevivência. Viver é muito mais do que prolongar a existência, e o bem-estar não é só o bom funcionamento dos órgãos. Quer comprovar? Tente "consolar" um enlutado com a falsa sabedoria de que "saúde é o que interessa, o resto não tem pressa". Corrijo-me: não tente.
Se a vida não é só sobrevivência abstrata, o que pode significar aceitar o aborto para preservar a vida concreta da mãe?
4) A oposição não é entre os que privilegiam a vida do feto e os que privilegiam a escolha livre da mulher, mas entre abstrato e concreto.
Vamos privilegiar a vida do feto? Ótimo, mas que seja a vida concreta. Para exigir de uma jovem que ela leve a termo uma gravidez involuntária, é preciso oferecer-lhe a garantia de que ela poderá abandonar a criança com dignidade e de que a criança abandonada não ficará para sempre num orfanato. Ou seja, é preciso proteger a vida concreta do nascituro.
Vamos privilegiar a escolha? Nos anos 1970, na Suíça, havia imigrantes italianos que eram autorizados a trabalhar por períodos de 11 meses. Ao fim de cada período, eles tinham que voltar para seu país e lá ficar durante um mês. Era um artifício para que eles não se tornassem residentes e não pudessem levar consigo mulheres e filhos.
Um pouco para compensar a longa frustração, um pouco para que as mulheres, lá na Itália, tivessem de que se ocupar durante a longa ausência do marido, a regra era engravidar a esposa a cada volta para casa. Uma dessas esposas, num vilarejo da Campanha, tinha 30 anos e 11 filhos. Ela tentou abortar o 12º do jeito que dava. Perdeu a vida. Nessa história, onde está a escolha livre?
5) Uma menina de 13 anos transa pela primeira vez com um menino de 17. Ela ouviu dizer que é prudente usar camisinha. Ele explica que a camisinha foi proibida pelo papa. Passei um mês cruzando os dedos e funcionou: a menina não engravidou. É possível criminalizar o aborto e, ao mesmo tempo, desaprovar a contracepção?
6) No corredor de um pronto-socorro lotado, um médico (?) diz a uma enfermeira: "Não se preocupe. Ela abortou, deixe sangrar". Há os que querem criminalizar o aborto para punir a mulher: "Transou? Agora encare as consequências".
Alguém, a esta altura, perguntará: "Afinal, você é contra ou a favor da descriminalização do aborto?". Não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo.
Da Folha de São Paulo.
1) Às vezes, para descobrir o que pensamos, é útil pôr de lado nossos princípios. Pois, em matéria de costumes, os preceitos gerais servem sobretudo para evitar dilemas concretos nos quais nosso pensamento iria revelar-se muito mais complexo do que os princípios que bradamos.
2) Numa situação em que o aborto seja necessário para salvar a mãe, mesmo nos meses finais da gravidez, quase todos dirão que a vida da mãe deve ser preservada (aqui, a lei brasileira, como é normal que aconteça, sanciona o sentimento da maioria).
Agora, imagine que, cinco minutos depois do corte do cordão umbilical, apareça uma condição médica na qual a mãe morrerá sem falta se não receber o transplante de um órgão que só o recém-nascido pode lhe oferecer -sendo que o bebê perderá a vida ao ser privado desse órgão. Para qualquer um de nós, esse transplante mortífero seria uma abominação.
Imagine ainda que, no meio de um parto difícil, a mulher esteja inconsciente e o médico pergunte ao pai: "Devo salvar a mãe ou a criança?". O pai que decidisse salvar a criança (e sacrificar a mãe) seria, aos nossos olhos, acredito, um simples uxoricida.
Parece, em suma, que o direito do feto à vida está subordinado ao da mãe e é inferior ao da criança que já nasceu.
Mas consideremos o caso de alguém que matou uma mulher grávida e, abrindo seu corpo, esfaqueou o feto. No meu foro íntimo, ele é culpado de dois assassinatos.
Da mesma forma, o canalha que, voltando bêbado para casa, produziu o aborto de sua mulher a pontapés e agulha de tricotar enfiada à força no útero, no meu foro íntimo, é um assassino de fato e de direito, não "só" um espancador de mulher.
De repente, a vida do feto parece adquirir uma dignidade comparável à dos adultos.
3) Aceitamos que o aborto seja praticado para preservar a vida da mãe. Mas é curioso que "vida", nesse caso, signifique apenas simples sobrevivência. Viver é muito mais do que prolongar a existência, e o bem-estar não é só o bom funcionamento dos órgãos. Quer comprovar? Tente "consolar" um enlutado com a falsa sabedoria de que "saúde é o que interessa, o resto não tem pressa". Corrijo-me: não tente.
Se a vida não é só sobrevivência abstrata, o que pode significar aceitar o aborto para preservar a vida concreta da mãe?
4) A oposição não é entre os que privilegiam a vida do feto e os que privilegiam a escolha livre da mulher, mas entre abstrato e concreto.
Vamos privilegiar a vida do feto? Ótimo, mas que seja a vida concreta. Para exigir de uma jovem que ela leve a termo uma gravidez involuntária, é preciso oferecer-lhe a garantia de que ela poderá abandonar a criança com dignidade e de que a criança abandonada não ficará para sempre num orfanato. Ou seja, é preciso proteger a vida concreta do nascituro.
Vamos privilegiar a escolha? Nos anos 1970, na Suíça, havia imigrantes italianos que eram autorizados a trabalhar por períodos de 11 meses. Ao fim de cada período, eles tinham que voltar para seu país e lá ficar durante um mês. Era um artifício para que eles não se tornassem residentes e não pudessem levar consigo mulheres e filhos.
Um pouco para compensar a longa frustração, um pouco para que as mulheres, lá na Itália, tivessem de que se ocupar durante a longa ausência do marido, a regra era engravidar a esposa a cada volta para casa. Uma dessas esposas, num vilarejo da Campanha, tinha 30 anos e 11 filhos. Ela tentou abortar o 12º do jeito que dava. Perdeu a vida. Nessa história, onde está a escolha livre?
5) Uma menina de 13 anos transa pela primeira vez com um menino de 17. Ela ouviu dizer que é prudente usar camisinha. Ele explica que a camisinha foi proibida pelo papa. Passei um mês cruzando os dedos e funcionou: a menina não engravidou. É possível criminalizar o aborto e, ao mesmo tempo, desaprovar a contracepção?
6) No corredor de um pronto-socorro lotado, um médico (?) diz a uma enfermeira: "Não se preocupe. Ela abortou, deixe sangrar". Há os que querem criminalizar o aborto para punir a mulher: "Transou? Agora encare as consequências".
Alguém, a esta altura, perguntará: "Afinal, você é contra ou a favor da descriminalização do aborto?". Não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo.
Da Folha de São Paulo.
quarta-feira, outubro 20, 2010
terça-feira, outubro 19, 2010
segunda-feira, outubro 18, 2010
Marilena Chauí fala e comove
É comovente. Não sou eu quem digo é a maior filósofa brasileira- um orgulho para todas nós- mulheres-livres ou oprimidas.
Vejam quem é ela aqui.
quinta-feira, outubro 14, 2010
Contardo Calligaris- A favor ou contra?
A favor ou contra?
É o pior momento para argumentar, porque, numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou ser contra
No que prometia ser um belo dia de primavera de meados dos anos 1970 em Paris, um jovem psicanalista trabalhava no plantão de uma enfermaria psiquiátrica.
Considerando a exiguidade do salário que ele recebia, seria mais correto dizer que ele estagiava. De qualquer forma, ele não estava ali pelo dinheiro, mas para enriquecer sua experiência dos caminhos pelos quais a gente enlouquece e sofre.
O jovem psicanalista estava sempre disposto a topar uma parada que pudesse lhe ensinar algo novo. Naquele dia, embora esta não fosse sua atribuição, ele, com um psiquiatra e dois enfermeiros, embarcou na ambulância que respondia a um chamado da polícia do bairro 13. O comissariado recebera o telefonema angustiadíssimo de um homem que acabava de encontrar sua mulher e sua filha de um jeito que não conseguia descrever, mas que, ele gritava, não era normal.
A ambulância chegou antes dos policiais. O marido, desculpando-se por não ter a coragem de voltar lá dentro, apontou na direção da porta do banheiro do apartamento.
O jovem psicanalista foi o primeiro a entrar e descobriu uma jovem mulher, deitada nua na banheira, cantando feliz enquanto brincava com seu bebê na água. A jovem mulher não pareceu perceber a chegada do estranho e o jovem psicanalista se deu conta de que o bebê era curiosamente inerte, rígido e branco: ele estava morto há tempo.
O jovem psicanalista nunca esqueceria o corpinho que ele apertou contra si, como se houvesse uma chance de esquentá-lo de volta para a vida.
Engravidar e dar à luz (apesar de ser o cotidiano da espécie) são experiências tão extremas que elas podem enlouquecer algumas mulheres, em geral temporariamente, logo após o parto.
A internação da mulher de nossa história durou pouco: ela foi declarada não imputável por razão de insanidade e recuperou a dita sanidade rapidamente.
Durante sua internação, soube-se que, dois anos antes, um irmão do bebê morto na banheira também tinha falecido, aos três meses, de morte súbita e inexplicada. A equipe do hospital se perguntou: não seria legítimo esterilizar compulsoriamente as mulheres que matassem seus bebês numa psicose desencadeada pelo parto? De fato, existe um risco estatístico de recidiva caso elas deem à luz outra vez.
A discussão não chegou a conclusão alguma; ficou suspensa entre o respeito pela esperança de uma mãe que quer tentar uma nova gravidez, a dificuldade de garantir o direito à vida dos nascituros e nossa incapacidade de prever, prevenir e intervir a tempo. Pouco importa, pois nisto eu acredito mesmo: todas as discussões que valem a pena são inconclusas.
Bastante tempo depois, o jovem psicanalista, que não trabalhava mais naquele hospital, recebeu um telefonema do psiquiatra que estivera com ele na ambulância. A jovem mulher da banheira pedira uma consulta na mesma enfermaria onde ela fora internada dois anos antes: ela estava grávida e queria saber se corria o risco de enlouquecer de novo e assassinar seu bebê no berço. Que ela perguntasse era um bom sinal, mas insuficiente para responder com segurança. O que fazer? Encorajá-la a abortar ou a apostar que nada aconteceria? Quem sabe sugerir que levasse a gravidez a termo e se engajasse a entregar o bebê, na hora do parto, para a assistência pública?
Não sei a resposta certa e é por isso que me lembrei dessa história.
Uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja. Numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou contra.
Ora, as pretensas discussões entre "a favor" e "contra" me inspiram o mesmo mal-estar que sinto quando assisto a uma cena de violência. Faz sentido porque, nessas discussões, ninguém argumenta, cada um apenas reafirma abstratamente sua identificação: em "eu sou a favor" e "eu sou contra", o que mais importa é reforçar o "eu". Com isso, inevitavelmente essas discussões menosprezam, atropelam e violentam a vida concreta de todos.
Depois desse preâmbulo, talvez eu consiga, numa coluna futura, escrever sobre a questão do aborto. Enquanto isso, eis uma leitura que recomendo a todos os que preferem pensar a gritar: "O Drama do Aborto: Em Busca de um Consenso", de dois médicos, A. Faúndes e J. Barzelatto (Komedi). Sobre o tema, talvez esse seja o escrito mais honesto, menos tendencioso e mais generoso que já li.
Artigo da Folha de São Paulo.
quinta-feira, outubro 07, 2010
Contardo Calligaris: "Eu Matei Minha Mãe"
Nos filhos, a vontade de ser autônomo, livre e rebelde convive com a de ser cuidado, amparado
Aos 17 anos, Xavier Dolan, canadense, escreveu o roteiro de "Eu Matei Minha Mãe". Logo, ele produziu, dirigiu e protagonizou o filme.
Apesar do sucesso em Cannes em 2009 (três prêmios na Quinzena de Realizadores) e na Mostra de Internacional de Cinema de São Paulo, "Eu Matei Minha Mãe" acaba de estrear em poucas salas e capitais.
Adolescentes e pais, apressem-se e não percam sob nenhum pretexto. Os pais mais corajosos deveriam assistir ao filme com os filhos, a experiência valerá algumas sessões de terapia de família e talvez resolva conflitos cruentos e incompreensíveis numa saudável hilaridade coletiva.
O filme é prodigioso: não me lembro de ter lido ou visto um relato tão terno e, ao mesmo tempo, cruel (ou seja, tão autêntico) da mistura explosiva de amor-paixão e ódio letal entre um filho e sua mãe.
1) Hubert, o protagonista, filho de pais separados, vive com a mãe, enquanto o pai é pior que ausente: ele só aparece na hora de "disciplinar" o garoto. Mas que ninguém se sirva disso como pretexto para tirar o corpo fora: se Hubert vivesse com o pai, sua relação com o genitor seria tão ambivalente quanto o é com a mãe. Mesma coisa se os pais de Hubert não estivessem separados: a funcionalidade de uma família controla e esconde, mas não suprime a virulência dos afetos em jogo.
2) Alguns pais e adolescentes se reconhecerão no filme. Ótimo: eles se sentirão menos sozinhos. Com frequência, encontro uma espécie de vergonha da violência das emoções familiares e da incompreensão entre pais e filhos; muitos fazem de conta, encenam uma família leve e jocosa como uma propaganda de margarina e sofrem em silêncio, convencidos de que seu caso é extremo, patológico, se não único. Pois bem, não é só que as famílias margarina sejam chatas (isso, Tolstói já dizia), é que elas não existem.
3) Os pais e adolescentes que se reconhecerão na história de Hubert não precisam se desesperar. Lembrem-se: o filme é, em grande parte, autobiográfico, ou seja, aquela relação horrorosa entre mãe e filho não impediu que vingasse um jovem como Dolan, que tem sensibilidade e inteligência emocional para vender. Quanto à mãe de Dolan, aposto que, agora, com o filho ocupado em fazer filmes, ela deve estar namorando feliz e comprando casaquinhos, liquidações afora.
4) Alguns dirão: "Nossa família não tem nada a ver com isso, a gente se ama e se respeita, tranquilamente". Outros acrescentarão: "Nunca fui tão desrespeitoso com meus pais, nem em pensamento". Acredito. Mas repare que, em geral, as paixões parricidas da pré-adolescência e da adolescência são esquecidas na idade adulta. O filme de Dolan foi possível, justamente, porque foi escrito e filmado com Dolan ainda adolescente, antes da amnésia adulta.
5) A grande maioria dos adolescentes sente asco do corpo dos pais, acha nojento os pais comendo, bebendo, dormindo, beijando-se, respirando etc. Esse desgosto é bem-vindo: serve para encorajar o adolescente a procurar alhures seus objetos de desejo.
6) Nos pais, a vontade de criar filhos quase sempre convive com a vontade de continuar "aproveitando a vida" (como se criar filhos não fosse um jeito extraordinário de aproveitar a vida). Há pais que deveriam ouvir o que eles mesmos dizem quando um filho lhes pede um cachorro: "Você quer um bichinho que abane o rabo quando você entra em casa, mas você vai ter que levá-lo para fazer xixi, educá-lo, dar-lhe comida a cada dia". Uma menina, que acaba de ganhar um filhote muito desejado, pergunta-me: "Por que ele foge se estiver sem coleira? O que é, ele não gosta de mim?".
7) No filho, a vontade de ser autônomo, livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado.
8) Também no filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada -kitsch como um abajur de oncinha comparado a uma pintura de Jackson Pollock.
9) Talvez Hubert não fosse feito para ser filho; quase ninguém é.
10) Talvez a mãe de Hubert não fosse feita para ser mãe; quase ninguém é. Ela pode se perguntar, aliás, se não teria sido melhor não ter aquele filho. Na saída do cinema, por um instante, podemos pensar que sim, certamente, para a vida dela, teria sido melhor.
Mas será que teria sido mesmo?
Da Folha de São Paulo.
Trailer aqui.
quarta-feira, setembro 22, 2010
quinta-feira, setembro 16, 2010
Contardo Calligaris- O nosso mal-estar amoroso
O nosso mal-estar amoroso
Faltam homens ou mulheres? E quem está querendo só pegação: os homens ou as mulheres?
Na semana passada, graças ao IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, migre.me/1hb92), aprendemos que, em média, no país, há 105 homens solteiros por cada cem mulheres com o mesmo estado civil.
Claro, em cada Estado a situação é diferente. No Distrito Federal há mais solteiras do que solteiros, no Rio de Janeiro dá empate e Santa Catarina é o paraíso das mulheres (122 solteiros por cada cem solteiras). De qualquer forma, no Brasil como um todo, é impossível afirmar que "faltam homens no mercado".
A Folha, na última quinta (9/9), entrevistou algumas mulheres; uma delas comentou: pouco importa que haja mais homens do que mulheres, o problema é que os homens, depois de um encontro ou dois, dão "um chá de sumiço". Ou seja, pode haver muitos homens, mas eles só querem pegação.
No domingo passado, um leitor escreveu à ombudsman do jornal para protestar: segundo ele, quem não quer nada sério são as mulheres, que são "fúteis e fáceis", salvo quando o homem começa "a conversar sobre algo sério", aí ELAS dão o tal chá de sumiço.
Em suma, faltam homens ou mulheres? E, sobretudo, números à parte, quem está querendo só pegação: os homens ou as mulheres?
Acredito na queixa dos dois gêneros. Resta entender como é possível que a maioria tanto dos homens quanto das mulheres sonhe com relacionamentos fixos e duradouros, mas encontre quase sempre parceiros que querem apenas brincar por uma noite ou duas. Se homens e mulheres, em sua maioria, querem namorar firme, como é que eles não se encontram?
Haverá alguém (sempre há) para culpar nosso "lastimável" hedonismo -assim: todos esperamos "naturalmente" encontrar uma alma gêmea, mas a carne é fraca.
Homens e mulheres, desistimos da laboriosa construção de afetos nobres e duradouros para satisfazer nossa "vergonhosa" sede de prazeres imediatos.
Os ditos prazeres efêmeros nos frustram, e voltamos de nossas baladas (orgiásticas) lamentando a falta de afetos profundos e eternos.
Obviamente, esses afetos não podem vingar se passamos nosso tempo nas baladas, mas os homens preferem dizer que é por culpa das mulheres e as mulheres, que é por culpa dos homens: são sempre os outros que só querem pegação.
De fato, não acho que sejamos especialmente hedonistas. E o hedonismo não é necessário para entender o que acontece hoje entre homens e mulheres. Tomemos o exemplo de um jovem com quem conversei recentemente:
1) Com toda sinceridade, ele afirma procurar uma mulher com quem casar-se e constituir uma família.
2) Quando encontra uma mulher que ele preze, o jovem sofre os piores tormentos da dúvida: será que ela gostou de mim? Por que não liga, se ontem a gente se beijou? Por que ela leva tanto tempo para responder uma mensagem?
Essa mistura de espera frustrada com desilusão é, em muitos casos, a razão de seu pouco sucesso na procura de um amor, pois, diante das mulheres que lhe importam, ele ocupa, inevitavelmente, a posição humorística da insegurança insaciável: "Tudo bem, você gosta de mim, mas gosta quanto, exatamente?" Se uma mulher se afasta dele por causa desse comportamento, ele pensa que a mulher só queria pegação.
3) Quando, apesar dessa dificuldade, ele começa um namoro com uma mulher de quem ele gostou e que também gostou dele, muito rapidamente ele "descobre" que, de fato, essa nova companheira não é bem a mulher que ele queria.
4) Nessa altura, o jovem interrompe a relação, que nem teve tempo de se transformar num namoro, e a mulher interpreta a ruptura como prova de que ele só queria pegação.
Esse padrão de comportamento amoroso pode ser masculino ou feminino. Ele é típico da cultura urbana moderna, em que cada um precisa, desesperadamente, do apreço e do amor dos outros, mas, ao mesmo tempo, não quer se entregar para esses outros cujo amor ele implora.
Em suma, "ficamos" e "pegamos", mas sempre lamentando os amores assim perdidos, ou seja, procuramos e testamos ansiosamente o desejo dos outros por nós, mas sem lhes dar uma chance de pegar (e prender) nossa mão. Esse é o roteiro padrão de nosso mal-estar amoroso.
Para quem gosta de diagnóstico, é um roteiro que tem mais a ver com uma histeria sofrida do que com o hedonismo.
Daqui.
quinta-feira, setembro 02, 2010
Contardo Calligaris- Esterilidade das eleições
Campanha eleitoral significa descobrir o que pensam os eleitores e lhes propor o que eles desejam
NUMA DEMOCRACIA ideal, que talvez tenha existido um dia em algum lugar da terra, os candidatos (a qualquer cargo que seja) seriam todos cidadãos comuns. Eles deixariam suas ocupações, temporariamente e a contragosto, aceitando sacrificar alguns anos de vida para defender sua profissão ou sua categoria e para promover projetos nos quais eles acreditam.
Esses cidadãos, impelidos a se candidatar por quem compartilha suas aspirações ou seus interesses, uma vez eleitos, preencheriam seu mandato sabendo que logo voltariam para sua vida anterior, aliás, não desejando nada tão ardentemente quanto essa volta à sua vida anterior.
Na contramão desse ideal, cedo na história da democracia moderna, a política se tornou uma profissão, com esta consequência banal: para o político, ser eleito e reeleito se tornou desejável em si.
De uma situação em que alguém era escolhido por seus pares e por eles era empurrado a representá-los, passamos a uma situação em que alguém quer ser eleito e deve, portanto, seduzir os eleitores.
Para seduzir, os candidatos poderiam elaborar propostas e projetos que cairiam ou não no agrado dos outros cidadãos. Mas esse caminho é, sobretudo, pouco previsível: será que eles gostarão?
Mais seguro é recorrer a um marqueteiro, sondar os cidadãos, descobrir o que eles pensam e propor ao eleitorado logo o que a sua maioria deseja.
Fora as poucas exceções de alguns candidatos outsiders, que se apresentam sem máscara, é difícil saber o que um candidato pensa. Em geral, ele nos apresenta, digamos assim, sua máxima aproximação possível do que, segundo as pesquisas de mercado, é a opinião dos eleitores.
Ou seja, o que escutamos de um candidato é o que ele pode dizer sem contradizer a expectativa da maioria. Evidentemente, essa necessidade de oferecer ao eleitor o que ele deseja ouvir pode ser limitada por vários escrúpulos: o candidato evitará deturpar totalmente a sua história ou contradizer as suas convicções fundamentais.
Mesmo assim, quando o candidato discorda radicalmente do que pensa a maioria dos cidadãos, ele se expressa por omissão, cala-se, suspende seu juízo para não afastar os eleitores. O mesmo acontece quando se trata de questões em que é difícil determinar o que os eleitores gostariam de ouvir.
Minha simpatia vai, espontaneamente, para os políticos que não parecem se importar com o que pensam os eleitores. E meu discurso político ideal é a breve fala de Churchill, aceitando o cargo de primeiro ministro, em 13 de maio 1940: "Não tenho nada para lhes propor, se não sangue, esforço, lágrimas e suor".
Claro, não era um discurso para ser eleito; além disso, era o começo da Segunda Guerra Mundial, e, naquela situação, não era preciso seduzir: o consenso era quase garantido. Mesmo assim, a grandeza da alocução, a razão pela qual ela ainda é lembrada, está no fato de que Churchill tratou os cidadãos como gente grande.
Ora, nas campanhas eleitorais atuais (não só nesta e não só no aqui no Brasil), é fácil ter a impressão de que somos tratados como idiotas. Não é surpreendente, pois, muitas vezes, que o que os candidatos propõem à nossa apreciação é uma espécie de mínimo denominador comum de nossa própria "inteligência".
A experiência de escutar a propaganda eleitoral é consternadora, não pela suposta "miséria" do discurso dos candidatos, mas porque a propaganda tenta nos seduzir com a miséria de nosso próprio pensamento em seu mínimo denominador comum, que é próximo da idiotice.
No casos piores (mais raros, por sorte), os candidatos competem pelos cantos mais escuros de nossa estupidez coletiva e individual. É o truque do político fascista: ele me permite votar no que eu tinha vergonha de pensar.
De qualquer forma, no jogo eleitoral moderno, ninguém cresce: nem os candidatos (que não precisam pensar nada de novo), nem nós eleitores (que apenas ouvimos o que já estava em nossa "inteligência" mínima comum).
Em suma, o que deveria ser o grande momento da vida democrática dá prova de uma extraordinária esterilidade: nenhuma invenção, mas, ao contrário, uma condenação de todos, eleitores e candidatos, à mediocridade.
Como diz o Tiririca, mestre em nos seduzir com nossa própria estultice, pior que tá não fica.
Da Folha de São Paulo em 02/09/2010
domingo, agosto 29, 2010
A autoestima no mundo atual II
Leia aqui a primeira parte desta palestra.
O que é, realmente, relevante?
Todos temos um ideal que seguimos, mesmo sem ter consciência. Muitas vezes este ideal é herdado dos nossos pais, então nos sentimos exigidos e precisamos corresponder à expectativa desses pais introjetados, dos pais que registramos dentro de nós.
Imaginamos que só seremos amados pelos nossos pais se formos exatamente como eles desejariam que fossemos- é um sentimento infantil que nos persegue, muitas vezes sem que saibamos.
Muitos de nós nos sentimos longe daquilo que esperávamos ou desejávamos ser.
É preciso reconhecer qual é esta expectativa, e identificar se é um desejo nosso, conquistado, ou é algo “herdado” de pais exigentes- mesmo que na realidade eles não tenham sido o que acreditamos..
A vida é construída por desejos insatisfeitos, somos movidos pelo desejo, para viver bem é preciso estar em paz com si mesmo e isto exige conhecimento, sabedoria.
Você só estará bem consigo se conhecer os seus limites e priorizar aquilo que é importante, fundamental, para seu bem estar. O mundo é uma grande feira de ofertas de sonhos impossíveis, precisamos priorizar o que poderemos alcançar, sem nunca deixar de sonhar- o desejo é a mola que nos impulsiona.
Priorizar é fundamental, no momento em que você prioriza, as satisfações começam a ser percebidas. Você passa a ver as pequenas coisas boas da vida e verá que são muitas. Pequenos prazeres serão descobertos, e você, então, buscará estes prazeres para se sentir feliz. A felicidade está, sim, como todos dizem, em pequenas coisas, pequenos gestos, isto faz o nosso dia à dia melhor.
Muitas vezes é preciso mudar nossos hábitos.
Sempre há tempo para mudanças, viver é estar em constante mutação.
Por que é tão difícil mudar?
Todos nós sabemos que abandonamos muitos projetos no meio do caminho, arranjamos mil desculpas, doenças, algumas vezes, mas por que se desejamos mudar?
Porque esperamos mudanças magicamente, como as crianças, temos pressa , não levamos os projetos até o fim e ficamos infelizes.
Criamos uma bola de neve, sentimos tristeza pela incapacidade de mudar e isto nos paralisa, nos deprime- sentimos impotência diante da vida e dos outros.
Quantas vezes há um desejo de mudar, mas não se consegue fazer nada para isto?
A mudança assusta, vivenciar o que nos é familiar é mais cômodo, apesar de muitas vezes doloroso, o ciclo vicioso se fecha e é difícil romper. Mudar não é fácil .
Mais sobre o corpo
Ter prazer com o corpo que você tem, não ter vergonha do próprio corpo é uma dádiva, ou é algo que é preciso conquistar. O que fazer para que este corpo esteja confortável, sem estar pesado, feio, com dores? Como olhar o corpo e sentir que é desejável? Como viver em harmonia com o corpo?
Atualmente, há uma exigência enorme, que chamamos de ditadura da estética, quanto ao corpo perfeito. É preciso estar em forma e ter corpos perfeitos. Isto é uma ditadura imposta pela mídia! Há uma filosofia de vida que se alastra há algumas décadas tornando as mulheres as principais vitimas deste padrão imposto.
Homens começam a ser vítimas também, mas com a s mulheres a mídia é cruel.
Colocam silicone nos seios, tiram gorduras do corpo, sem dietas, através de cirurgias, tiram costelas para diminuir a cintura, arriscam-se com anestesias buscando um ideal inalcançável.
Como virar uma Gisele Bündchen? Impossível. As meninas têm a Gisele como padrão idealizado de beleza e de vida, pois ela é O Sucesso, linda, rica, bem casada, agora mãe- é o sonho de todas as jovens. Débora Secco disse numa entrevista para Marília Gabriela, que se deitava de bruços na cama para que ele o namorado não visse a sua barriga. Pensamos, mas que barriga? Ela ilustra bem o nível de exigência interno destas moças, ficam anoréxicas ou bulímicas. É um mundo idealizado que as tortura. Inalcançável. A vida gira em torno do corpo, não há vida além do corpo, as relações permeiam o corpo, tudo é o corpo. Farão plásticas a vida toda.
Como será a velhice destas moças?
O que elas buscam?
Sabemos que atrás desta busca do corpo perfeito está o desejo de ser desejada e admirada por todos, provavelmente um reconhecimento que faltou lá atrás, na infância: um olhar materno ou paterno de aceitação e amor, de reconhecimento. Elas ignoram que este olhar não virá mais, que poderão ser amadas por outras pessoas e que o desejo humano passa por outros caminhos, senão os feios estariam todos sós, abandonados, e isto não é verdade. O nosso desejo passa por caminhos do inconsciente, nós não sabemos por que desejamos uma pessoa e não outra.
É preciso desconstruir este padrão imposto. Há um movimento natural contra isto, sabemos que a meditação, a Yoga, por exemplo, vêm despertando o interesse de cada vez mais pessoas. Madonna é um exemplo de celebridade adepta de Yoga, e vem sendo imitada. Mesmo que façam porque está na moda, é bom. Todas as práticas espiritualistas melhoram a vida interior, dando equilíbrio entre corpo e mente. Nem tudo está perdido.
É preciso acabar com os preconceitos, tolerar as diferenças, não só raciais, de gênero, mas as estéticas também, os gordos, os diferentes, sofrem preconceitos e exclusão.
Violência na vida urbana mais tirania do corpo e preconceitos torna a vida intolerável. Em algum momento terá que haver um basta.
Esta é uma questão para pensarmos. Cada um precisa fazer a sua parte.
Nenhum caminho é fácil, viver não é fácil, é preciso enfrentar os obstáculos, muitas vezes internos.
E quantos de nós não se boicotam? É preciso viver da melhor maneira possível, sem dramas nem omissões, fazendo o melhor, conscientes das nossas dificuldades, limites, e também, reconhecendo nossos talentos.
Precisamos saber o que nos detém, nos impede de seguir um projeto, nos paralisa, nos ata. É preciso desatar os nós e mudar aquilo que nos incomoda. Mesmo que isto implique num investimento maior, numa mudança na vida pessoal, é preciso escolher entre viver com as insatisfações ou reagir e mudar.
Quantos de nós temos talentos escondidos, não valorizados?
Mas, sabemos, todos procuramos formas para evitar a morte, e envelhecer é se aproximar da velha senhora, que vive à nossa espreita.
Renovar é possível, mudar é possível. Basta desejar!
Boa sorte!
sexta-feira, agosto 27, 2010
Um filme imperdível
Uma beleza este filme "O ESCAFANDRO E A BORBOLETA". Atores e história comoventes. Max Von Sydow ( aquele dos filmes do Ingmar Bergman) me levou às lágrimas.
Uma história de amor e superação. Muito bonita.
Leiam:
A extraordinária história real de Jean-Dominique Bauby, editor da revista ELLE que, aos 43 anos, sofreu um derrame que paralisou todo seu corpo, com exceção do seu olho esquerdo. Preso em um corpo sem movimento, mas completamente lúcido, ele se adapta para contar sua incrível história de vida.
VENCEDOR de 2 prêmios no Festival de CANNES 2007: Julian Schnabel, Melhor DIRETOR - Janusz Kaminski, Technical Grand Prize
Vencedor Globo de Ouro 2008: Melhor Diretor (Julian Schnabel) e Melhor Filme Estrangeiro
Com Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Max von Sydow
Direção Julian Schnabel
quinta-feira, agosto 26, 2010
Contardo Calligaris- Para que serve a psicanálise?
A quem luta para se manter adulto, o paternalismo dá calafrios, ou mesmo vontade de sair atirando
A Associação Internacional de Psicanálise (IPA) foi fundada em 1910. Presente em 33 países, com mais de 12 mil membros, ela festeja seu centésimo aniversário. Aos colegas da IPA (embora eu tenha me formado numa de suas dissidências), meus sinceros parabéns.
A festa é uma boa ocasião para perguntar: para que serve, hoje, a psicanálise? A campanha eleitoral em curso me ajuda a escolher uma resposta.
Repetidamente, o presidente Lula e Dilma Rousseff se apresentam como pai e mãe dos brasileiros. Em 17/8, Lula declarou: "A palavra não é governar, a palavra é cuidar: quero ganhar as eleições para cuidar do meu povo, como a mãe cuida de seu filho".
No dia seguinte, Marina Silva comentou: "Querem infantilizar o Brasil com essa história de pai e mãe". Várias vozes (por exemplo, o editorial da Folha de 19/8) manifestaram um mal-estar; Gilberto Dimenstein resumiu perfeitamente: "Trazer a lógica familiar para a política significa colocar a criança recebendo a proteção de um pai em vez de um governante atendendo a um cidadão que paga imposto".
Entendo que um presidente ou uma candidata se apresentem como pai ou mãe do povo. Embora haja precedentes péssimos (de Vargas a Stálin, ao ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-il), estou mais que disposto a acreditar que Lula e Dilma se expressem dessa forma com as melhores intenções.
O que me choca é que eleitores possam ser seduzidos pela ideia de serem cuidados como crianças e preferi-la à de serem governados como adultos.
Se o governo for paternal ou maternal, o que o cidadão espera nunca será exigível, mas sempre outorgado como um presente concedido por generosidade amorosa; o vínculo entre cidadão e governo se parecerá com o tragipastelão afetivo da vida de família: dívidas impagáveis, culpas, ciúme passional etc. Alguém gosta disso?
Numa psicanálise, descobre-se que a vida adulta é sempre menos adulta do que parece: ela é pilotada por restos e rastos da infância. Ao longo da cura, espera-se que essa descoberta nos liberte e nos permita, por exemplo, renunciar à tutela dos pais e ao prazer (duvidoso) de encarnarmos para sempre a criança "maravilhosa" com a qual eles sonhavam e talvez ainda sonhem.
Tornar-se adulto (por uma psicanálise ou não) é um processo árduo e sempre inacabado. Por isso mesmo, a quem luta para se manter adulto, qualquer paternalismo dá calafrios -ou vontade de sair atirando, como Roberto Zucco.
Roberto Succo (com "s"), veneziano, em 1981, matou a mãe e o pai; logo, fugiu do manicômio onde fora internado e, durante anos, matou, estuprou e sequestrou pela Europa afora. Em 1989, Bernard-Marie Koltès inspirou-se na história de Succo para escrever "Roberto Zucco", peça admiravelmente encenada, hoje, em São Paulo, na praça Roosevelt, pelos Satyros.
Na peça, Zucco perpetra realmente aqueles crimes que todos perpetramos simbolicamente, para nos tornarmos adultos: "matar" o pai, a mãe e, dentro de nós, a criança que devemos deixar de ser.
O diretor da peça, Rodolfo García Vázquez, disse que Zucco é um Hamlet moderno. Claro, para Hamlet, como para Zucco, o parricídio é uma espécie de provação no caminho que leva à "maioridade". Além disso, pai, padrasto e mãe de Hamlet eram reis, e o pai de Succo era policial. Para ambos, o Estado se confundia com a família.
Se o Estado é um pai ou uma mãe para mim, eu não tenho deveres, só dívidas amorosas, e, se esse Estado me desrespeita, é que ele me rejeita, que ele trai meu amor. Por esse caminho, amado ou traído pelo Estado, nunca me considerarei como um entre outros (o que é uma condição básica da vida em sociedade), mas sempre como a menina dos olhos do poder.
Agora, se eu me sentir traído, não me contentarei em mudar meu voto, mas procurarei vingança no corpo a corpo, quem sabe arma na mão; pois essa é a linguagem da paixão e de suas decepções. O paternalismo, em suma, semeia violência.
Enfim, se é verdade que muitos prefeririam ser objeto de cuidados maternos ou paternos a serem "friamente" governados, pois bem, nesse caso, a psicanálise ainda tem várias boas décadas de utilidade pública entre nós.
É uma boa notícia para a psicanálise. Não é uma boa notícia para o mundo fora dos consultórios.
Artigo da Folha de São Paulo
quinta-feira, agosto 12, 2010
Contardo Calligaris: A origem
"A Origem"
Vagamos pelo mundo esbarrando em nossas projeções: assombrações do passado e do desejo
Sabia pela imprensa que, no novo filme de Christopher Nolan, "A Origem", os heróis (ou vilões, que sejam) invadem o mundo onírico de alguém, transformam, ou mesmo fabricam seu sonho e, com isso, manipulam o próprio sonhador.
Confesso que fui ao cinema com um certo preconceito. A pintura (Salvador Dalí, De Chirico), a literatura (Breton) e o cinema (de Fritz Lang a Hitchcock) inventaram uma estética do sonho que é sedutora, mas não tem muito a ver com nossa experiência de sonhadores.
Com isso, eu antevia um filme pouco plausível, laborioso e afastado do meu cotidiano. Surpresa total: o mundo do filme de Nolan me pareceu familiar e absolutamente realista. Só que não foi pela representação do mundo dos sonhos. Ao contrário, "A Origem", para mim, é fiel à realidade na qual vivemos quando NÃO estamos sonhando.
Salvo exceções, exatamente como os personagens de Nolan quando sonham, vagamos pelo mundo aparentemente acordados, mas suficientemente sedados para que possamos esbarrar apenas em nossas próprias projeções: fantasmas do passado, alucinações do desejo e defesas -espécie de seguranças armados que deveriam nos proteger (vai saber de quê) e acabam se virando sempre contra nós mesmos.
Assisti ao filme no cinema Leblon, no Rio de Janeiro, no sábado à tarde. Depois da sessão, voltei a pé até o Arpoador.
Ao longo da Vieira Souto, caminhei na fantasmagoria de um Carnaval do passado, que começara, justamente, com uma saída da Banda de Ipanema e em que tudo dera errado. Os fantasmas riam de mim: se eu os tivesse enxergado à época, teria previsto um fracasso amoroso que, dez anos depois, foi doloroso sobretudo por ser tardio.
No Arpoador, apesar do frio, havia um menino brincando nas ondas; achei que ele corresse perigo, levado pela ressaca. Um jovem avançou no mar para trazê-lo de volta para a praia.
Nos anos 80, três vezes por ano, eu ia de Porto Alegre ao Rio para acompanhar meu filho até o avião que o levaria de volta para a França, onde ele morava com a mãe. Era o fim de suas férias e o momento em que a gente ia se separar, de novo. Chegávamos ao Galeão ao meio-dia e corríamos de táxi até Ipanema para mergulharmos no mar antes de ele embarcar. Pois é, no sábado passado, cruzei o olhar do menino que voltava das ondas: era um olhar de crítica e decepção por eu deixá-lo viajar para longe de mim ou por eu ter viajado para longe dele -era o olhar de meu filho.
Do Leblon ao Arpoador, passei por vários níveis do videogame de minha vida e, embora houvesse gente nas ruas, no fundo, não encontrei ninguém de verdade, só assombrações.
Há mais uma razão pela qual o mundo de "A Origem" me pareceu curiosamente familiar. Disse que, no filme, os heróis acompanham alguém num passeio pelo seu mundo psíquico e, nessa andança, eles extraem e inserem pensamentos. É muito diferente do trabalho de um psicoterapeuta ou psicanalista?
Sem revelar nada que atrapalhe o prazer dos futuros espectadores:
1) Para sair um pouco da assombração, é bom matar alguns fantasmas (o de um antigo amor que nos pede, por exemplo, para morrer com ele, ou o de um pai cujas últimas palavras continuam vivas como uma maldição). Suicidar nosso narcisismo também nos ajuda a voltar para a realidade. Mas é bom não confundir o suicídio de nosso narcisismo com o suicídio de nossa pessoa.
2) No fim do filme, a vítima de nossos heróis descobre algo que muda seu futuro de maneira positiva -qualquer terapeuta concordaria. Essa "verdade" foi plantada por nossos heróis, os quais também arquitetaram o lugar escondido e proibido onde a vítima encontra seu "segredo" (o que faz, obviamente, que ela aceite e preze essa "descoberta", que é, de fato, um engodo).
Qualquer psicanalista ou psicoterapeuta dirá que, numa cura, ele pode extrair pensamentos nocivos e desnecessários, mas ele nunca inseriria nada; isso seria sugestão, coisa de padre e pastor.
Concordo, mas, saindo do cinema, pensei: e se, como os heróis de Nolan, a gente estivesse praticando a arte insidiosa (e, às vezes, benéfica) de plantar no paciente nossas ideias transvestidas de segredos? Foucault adoraria essa dúvida.
Só me resta desejar a todos um bom filme.
Trailer do filme:
sábado, agosto 07, 2010
quinta-feira, agosto 05, 2010
Contardo Calligaris- Castigos físicos
O castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é a força
Uma recente pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.
Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.
A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.
1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.
2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.
3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.
Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.
4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.
É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.
Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.
Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.
A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.
A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.
Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral?
Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.
Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" -no caso, pelo bem das crianças.
Resumindo:
1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.
PS: Destaques meus.(Elianne)
Artigo de hoje na Folha de São Paulo.
quarta-feira, agosto 04, 2010
Eu te odeio- eu te amo
Esta imagem ilustra muito bem a 'Denegaçaõ' da psicanálise. Leiam (não achei em português) :
Negación
Al.: Verneinung.
Fr.: (dé)négation.
Ing.: negation.
It.: negazione.
Por.: negação.
Procedimiento en virtud del cual el sujeto, a pesar de formular uno de sus deseos, pensamientos
o sentimientos hasta entonces reprimidos, sigue defendiéndose negando que le pertenezca.
Esta palabra requiere ante todo algunas observaciones de orden terminológico.
1) En la conciencia lingüística común, no siempre existen en todos los idiomas claras distinciones
entre los términos que significan la acción de negar, y menos aún existen correspondencias
bi-unívocas entre los distintos términos de una lengua a otra.
En alemán, Verneinung designa la negation en el sentido lógico o gramatical del término (no
existe un verbo neinen o beneinen), pero también la denegation en sentido psicológico (rechazo
de una afirmación que yo he enunciado o que se me atribuye; por ejemplo: no, yo no he dicho
esto; yo no he pensado esto). Verleugnen (o leugnen) tiene un sentido que se aproxima al de
verneinen en esta última acepción: renegar, desdecir, desmentir.
En francés, puede distinguirse, por una parte, la negación (négation) en sentido gramatical o
lógico, y por otra parte la denegación (dénégation, déni), que implica oposición o repulsa.
2) En el empleo que hace Freud: al parecer podemos distinguir dos usos diferentes de verneinen
y verleugnen. En efecto, la palabra verleugnen tiende a reservarla Freud, hacia el fin de su obra,
para designar el rechazo de la percepción de un hecho que se impone en el mundo exterior; en
inglés, los editores de la Standard Edition, que han reconocido el sentido específico que
adquiere en Freud la palabra Verleugnung, han decidido traducirla por disavowal. Nosotros
proponemos en francés traducirla por «déni» (renegación)
En cuanto al empleo que hace Freud de la palabra Verneinung, resulta inevitable para el lector
francés la ambigüedad negation-denegation. Posiblemente esta misma ambigüedad sea uno de
los ejes de la riqueza del artículo que Freud dedicó a la Verneinung. Al traductor, le resulta
imposible en cada pasaje elegir entre «negation» o «denegation»; como solución nosotros
proponemos transcribir la Verneinung por «(dé)négation». En castellano utilizaremos negación.
Observemos que también se encuentra algunas veces en las obras de Freud la palabra alemana
de origen latino Negation.
Estas distinciones terminológicas y conceptuales que proponemos no siempre se han efectuado
hasta ahora en la literatura psicoanalítica y en las traducciones. Así, el traductor francés de El
Yo y los mecanismos de defensa (Das Ich und die Abwehrmechanismen, 1936) de Anna Freud
transcribe por «negación» (négation) el término Verleugnung, que esta autora utiliza en un
sentido similar al que le dio S. Freud.
Freud puso en evidencia el procedimiento de negación en la experiencia de la cura. Muy pronto
encontró en las histéricas que trataba una forma especial de resistencia: «[...] cuanto más se
profundiza, más difícilmente se aceptan los recuerdos que surgen, hasta el momento en que, en
las proximidades del núcleo, nos hallamos con que el paciente niega incluso su reactualización».
El Análisis de un caso de neurosis obsesiva proporciona un buen ejemplo de negación: el
paciente, siendo niño, había pensado que conseguiría el amor de una niña a condición de que le
ocurriera una desgracia: «[...] se le impuso la idea de que esta desgracia podría ser la muerte de
su padre. Rechazó inmediatamente tal idea con toda energía; todavía hoy se defiende contra la
posibilidad de haber experimentado semejante "deseo". Según él, había sido una simple
"asociación de ideas". -Yo le objeto: si no fue un deseo, ¿por qué se rebela contra él?
-Simplemente por el contenido de esta representación, de que mi padre pudiera morir». La
prosecución del análisis vino a demostrar que existía ciertamente un deseo hostil hacia su padre:
«[...] al primer "no" de rechazo se sumó pronto una confirmación, al principio indirecta».
La idea de que la toma de conciencia de lo reprimido se manifiesta a menudo, durante la cura,
por la negación, constituye el punto de partida del artículo que Freud consagra a ésta en 1925.
«No hay mejor prueba de que se ha logrado descubrir el inconsciente, que el hecho de ver cómo
el analizado reacciona con estas palabras: "Yo no he pensado esto" o bien "jamás he pensado
en esto"».
La negación posee el mismo valor de confirmación cuando se opone a la interpretación del
analista. De ahí nace una objeción de principio que no escapó a Freud, que se pregunta -en Las
construcciones en análisis (Konstruktionen in der Analyse, 1937)-: ¿tal hipótesis no ofrece el
peligro de asegurar siempre el triunfo del analista? «[...] cuando el analizado asiente, tiene razón,
pero cuando nos contradice, esto es un signo de su resistencia y también nos da la razón».
El propio Freud dio una respuesta matizada a tales críticas, incitando al analista a buscar la
confirmación en el contexto y en la evolución de la cura. A pesar de todo, la negación sigue
poseyendo para Freud el valor de un indicador que señala el momento en que empiezan a
resurgir una idea o un deseo inconscientes, y esto tanto en la cura como fuera de ella.
En La negación (Die Verneinung, 1925), Freud dio de este fenómeno una explicación
metapsicológica muy precisa, que desarrolla tres afirmaciones estrechamente solidarias entre sí:
1) «la negación constituye un medio de adquirir conocimiento de lo reprimido [...];
2) »[...] lo que se elimina es sólo una de las consecuencias del proceso de represión, a saber, el
hecho de que el contenido representativo no llegue a la conciencia. Como resultado, tiene lugar
una especie de aceptación intelectual de lo reprimido, mientras que persiste lo fundamental de la
represión;
3) »mediante el símbolo de la negación, el pensamiento se libera de las limitaciones de la
represión [...]».
Esta última proposición muestra que, para Freud, la negación en sentido psicoanalítico y la
negación en sentido lógico y lingüístico (el «símbolo de la negación») tienen el mismo origen, lo
cual constituye la tesis principal de su trabajo.
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