quinta-feira, novembro 29, 2012

Contardo Calligaris- Decisões morais







Artigo da Folha de São Paulo

É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.
Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.
Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.
Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?
Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?
Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?
Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?
Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?
Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.
O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.
Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.
Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.
"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).
O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.
Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.
Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.

terça-feira, setembro 11, 2012

Freud e a feminilidade

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                                                              RESENHA - FREUD E O FEMININO

FEMINILIDADE

Carmen Silvia Cervelatti

Substantivo abstrato, feminilidade é o que dá a substância, o ser, o que nomeia o feminino. Este é o nome dado por Freud a uma de suas “Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise”, a Conferência 33 (1933). Nela, Freud explicita que nem a anatomia nem a convenção podem definir masculinidade ou feminilidade.

A psicanálise não pretende descrever o que é ser mulher, o que é sem solução, nem mesmo poderá solucionar o enigma da feminilidade. Freud se dedicará sim a “investigar como uma criança predisposta à bissexualidade se torna uma mulher” . Duas tarefas a mais que o menino, a mudança de zona erógena e de objeto, fazem o “desenvolvimento” de uma menina ser mais complicado que o do menino. A situação edípica numa mulher é quase insolúvel, é “uma resolução provisória, uma posição de repouso que não se abandona tão cedo” .

O Édipo obscurece a percepção da ligação pré-edípica com a mãe, anteriormente considerada como destinada ao recalque. Depois da expulsão da menina da ligação com a mãe, o Édipo funcionaria como um porto seguro. A ligação com a mãe deixa restos quase insuperáveis nas mulheres; no entanto, Freud percebeu seus efeitos na clínica, especialmente na histeria e na paranoia, ao considerar que as relações libidinais com a mãe atravessam as três fases da sexualidade infantil. A paranoia tem seu germe no medo de ser envenenada ou de ser morta pela mãe. Na histeria, o apego e a fantasia de sedução são transferidos da mãe para o pai, ou seja, são provenientes do pré-edípico.

A coexistência dos estratos edípico e pré-edípico, o Édipo como resolução provisória para a mulher, e até mesmo a bissexualidade proposta por Freud como predisposição, são aspectos que, se aproximados, cada um a seu tempo, corroboram a divisão do feminino em duas vias, conforme proposto por Lacan com o não-todo para a posição feminina: há algo mais fora da referência fálica.

Daqui

domingo, setembro 02, 2012

Um novo vício- perigoso






É bom levar isso a sério. Viciados em Internet.
Leiam mais aqui.

Atendi, por pouco tempo, um jovem viciado- os pais o estimularam na infância a jogar- era cômodo. Quando veio para mim, não conseguia mais se comunicar com ninguém. Pensei que estivesse entrando numa esquizofrenia, mas, quem me indicou disse, mais tarde, que ele está fazendo faculdade. Continua quieto, mas estudando. Bom saber.
Comigo ele chorava, dizia que os pais não o amavam, queria passar num concurso e sair de casa. Não suportava mais a mãe- era completamente inadequada- veio na primeira entrevista, segundo pessoas da família que eu conheço, ela é desequilibrada.

Os pais tiraram-no do tratamento.

quinta-feira, agosto 23, 2012

Contardo Calligaris- Procuras de desejos perdidos







Casei, nada depende mais de mim; agora, ele (ou ela) me impede de me tornar o que eu tanto queria ser
No fim de semana, assisti a dois filmes que dialogam na minha cabeça.
Primeiro, vi "Um Divã para Dois", de David Frankel. Após 30 anos de casamento, Kay e Arnold, sexagenários, vivem uma rotina miserável. Faz quatro anos que eles não têm relações sexuais, mal se falam e mal se tocam. Talvez eles tenham se amado no passado, mas pouco ou nada disso aparece. Um dia, Kay não aguenta mais e decide recorrer a um terapeuta de casal que propõe terapias intensivas de uma semana no Maine, longe do Nebraska onde eles moram. Arnold acha bobagem e dinheiro posto fora, mas acaba seguindo a mulher até lá.
Quis ver o filme porque a história do casamento de Kay e Arnold é, ao mesmo tempo, trivial e raramente contada. Também me interessava o terapeuta, que, segundo alguns críticos, era um extravagante.
Bom, o terapeuta do filme não é extravagante. Alguns dos exercícios que ele sugere ao casal são extremos (e cômicos, como sexo oral num cinema), mas, no conjunto, não há nada de heterodoxo em pedir que os cônjuges se esforcem para voltar a se abraçar e tocar ou que revelem suas fantasias sexuais ao outro.
Uma vez instalada a distância na vida de um casal, "discutir a relação" não é suficiente (quando não piora o caso): é preciso romper, de entrada, diretamente, os hábitos constituídos do isolamento.
Em geral, nos dois membros de um casal que não se fala e não se toca, mas se obstina a conviver, há uma tremenda vergonha de estar traindo um grande desejo de parar com a palhaçada do afastamento e reencontrar o parceiro.
Mas trair o próprio desejo da gente é confortável. E, para muitos, o casamento serve para isso: é um pretexto para descansar da tarefa de desejar e de inventar a vida. Assim: casei, nada depende mais de mim, ele (ou ela) me prende nesta rotina e me impede de me tornar o que eu tanto queria ser -boa desculpa, hein?
O segundo filme, "A Vida de Outra Mulher", de Sylvie Testud, conta a história de Marie, que, num dia de 2011, aos 41, acorda para descobrir que ela esqueceu tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos de sua vida. Ela tem um filho, que ela "nunca" conheceu, e está se divorciando do homem por quem, pelo que ela se lembra, ela acaba de se apaixonar (só que isso foi 15 anos antes). Marie tentará reconquistar o marido que ela ama como o amava na época em que se apaixonou por ele.
A amnésia repentina de Marie (pouco provável clinicamente) é uma ótima parábola. Por que pessoas que se lançam na vida com paixão um pelo outro, com planos e apostas comuns, podem acordar um dia no rancor de uma separação?
Kay e Arnold, na hora de tentar entender o que foi que os afastou, estão tão perdidos quanto Marie. Mas Marie tem sorte: ela não pode transformar o que aconteceu nos últimos anos em tema de debate (Quem está com razão? Quem deixou de amar? Quem não soube cuidar? Quem traiu quem?). Ela não se lembra de nada e só pode voltar para sua última lembrança: o momento mágico do encontro e da primeira noite.
Para os mortais comuns, como Kay e Arnold, que podem até se calar, mas se lembram de tudo o que deu errado, o caminho é mais complicado.
Alguém dirá que, se Marie retomar seu casamento sem poder sequer refletir sobre os caminhos pelos quais ele se degradou (ela só pode supor, imaginar), então, inelutavelmente, nada mudará, e, alguns anos depois, Marie e o marido acabarão se separando numa repetição do mesmo divórcio.
Não sei se isso é verdade. A degradação de um casal é feita de um acúmulo de pequenas palavras e condutas, que parecem insignificantes na hora e mesmo depois, na memória: não liguei naquele dia, cheguei atrasado no outro, preferi dormir quando você queria outra coisa, não disse o que eu queria porque tanto faz... Nada precisa ser drástico e, no fundo, tudo é contingente: se eu estivesse apenas menos cansado, naquela noite, não teria dormido enquanto você falava... Conclusão: mesmo recomeçando sem poder recorrer às ditas "lições" do passado, talvez o desfecho não seja necessariamente o mesmo.
Além disso, mesmo se Marie retomar seu casamento (que, para ela, mal começou) na ignorância do que deu errado na primeira vez e se por isso, anos depois, ela divorciar novamente, qual é o problema? Aos poucos, eles cometerão os mesmos erros que cometeram no passado, e o casal não será para sempre? E daí, quem disse que só vale a pena o que for para sempre?

quinta-feira, agosto 16, 2012

Contardo Calligaris- "Paidrastos" (e "mãedrastas")






Domingo passado foi Dia dos Pais --como disse R., 9 anos, é o dia em que o pai dá um dinheiro para que a mãe compre um presente para ele, o qual será entregue pelas crianças.
Esta coluna chega com um pouco de atraso; por isso, é sobre os pais do segundo turno: os padrastos.
Não encontrei uma estatística que me dissesse quantas famílias, no Brasil, vivem com filhos de casamentos anteriores de um dos pais ou de ambos (talvez um leitor sociólogo possa me ajudar).
Mas é fácil constatar que muitas famílias são hoje compostas de pais, filhos e, como se expressou uma vez um de meus enteados, de "paidrastos" e "mãedrastas". O tema, claro, mereceria mais do que estas pequenas notas.
Sobre as madrastas, só o essencial: o homem que tem filhos de um casamento anterior acredita cegamente que sua nova mulher os amará como se fossem filhos dela (ser mãe, para uma mulher, seria um instinto irresistível). O pai de Cinderela, mesmo vivo, não se daria conta de que sua filha era a rival detestada e perseguida pela sua nova mulher e pelas suas enteadas.
Ora, com várias exceções (claro), para a nova mulher, os filhos do casamento anterior do marido são rivais, irmãozinhos metidos que disputam com ela o amor do "pai" comum --isso vale especialmente quando ela tem filhos de um casamento anterior ou planeja ter mais filhos no novo casamento.
Mas vamos aos padrastos, que são o nosso tema do dia.
1) Apesar dos testes de DNA, ser pai continua sendo uma questão mais simbólica que real, ou seja, o pai ainda é aquele que a mãe indica como pai. Uma consequência disso é que os homens são perfeitamente capazes de se esquecer de seus filhos depois de uma separação (a não ser que a mulher continue lhes repetindo, noite e dia, que eles são os pais das ditas crianças).
Por essa mesma razão, os homens são facilmente padrastos atenciosos --basta que a nova mulher lhes atribua essa função. Agora, por serem "atenciosos", eles não são menos precários: como acontece no caso dos próprios filhos, o laço do homem com seus enteados é subordinado ao laço com a mulher que é mãe deles. Em outras palavras, se o padrasto se separar da nova mulher, dificilmente ele manterá uma relação com os enteados, mesmo que eles tenham se criado com ele durante anos.
Triste? Talvez. Mas já imaginou a complicação no caso de vários casamentos sucessivos? Que tal um almoço de Dia dos Pais com pai, padrasto 1, padrasto 2 e padrasto 3?
2) Disse que os homens são facilmente padrastos atenciosos. Justamente, aqui surge um problema: ao redor da educação dos enteados, o padrasto quase sempre descobre que há, entre ele e sua nova mulher, diferenças de valores --que só aparecem na hora de cada um mostrar seus dotes pedagógicos. No eventual conflito, o padrasto está, de fato, quase impotente.
Primeiro, se ele quiser impor regras, a nova mulher entenderá isso como análogo ao que ela mesma gostaria de fazer com os filhos do casamento anterior do marido --ou seja, ela achará que o marido usa uma severidade seletiva, que ele nunca aplicaria aos seus próprios filhos.
Segundo, educar implica correr o risco de ser detestado --risco que um pai deve correr sem hesitação; mas o padrasto precisa e quer conquistar a simpatia dos enteados, sob pena de ouvir o fatídico: "Você não é meu pai!".
3) Os enteados não são anjos. Num primeiro momento, todos eles podem festejar a recomposição de um quadro familiar, seja ele qual for. Logo, os meninos tendem a se tornar paladinos da honra materna e paterna (como é que a mãe se interessa por outro homem que não seja eu? Quem é este cara que quer ocupar o lugar do meu pai?).
Quanto às meninas, elas oscilam entre três caminhos: lamentam que a mãe, e não elas, conquiste todos esses homens; receiam que, aceitando o padrasto, elas trairiam o pai e seriam desamadas por ele; enfim, bem mais do que os meninos, elas não querem compartilhar a mãe com ninguém.
A experiência do divórcio dos pais criou jovens interessantes. A sensação de que eles não foram uma razão suficiente para que os pais ficassem juntos produziu, em alguns, uma insegurança doentia para a vida toda, mas, em outros, deixou um fundo de sabedoria melancólica que resiste bravamente às ideias narcisistas mais estupidamente grandiosas.
Quanto às complexidades da vida numa segunda ou terceira família, está na hora de considerar suas consequências para as crianças e os adultos que delas virão. Voltarei ao tema.

quinta-feira, agosto 09, 2012

Contardo Callligaris- Epidemia de amor pelas crianças


09/08/2012 - 03h00



Epidemia de amor pelas crianças



1) É habitual que, na infância e na adolescência, um jovem sonhe com vitórias e aplausos, sem pensar nos esforços necessários para merecê-los.
Nestes dias, deparo-me com crianças ninadas por devaneios de glória olímpica. Sem querer, corto seu barato, explicando o que é indispensável fazer para que esses sonhos se transformem numa chance real de chegar lá.
As crianças respondem que elas não têm a intenção de realizar o tal sonho: apenas querem o prazer de devanear em paz. Até aqui, tudo bem, mas os pais me acusam de estragar, além dos sonhos, o futuro dos filhos, os quais, segundo eles, para triunfar na vida, precisariam confiar cegamente em seus dotes.
O problema é que os elogios incondicionais dos pais e dos adultos não produzem "autoconfiança", mas dependência: os filhos se tornam cronicamente dependentes da aprovação dos pais e, mais tarde, dos outros. "Treinados" dessa forma, eles passam a vida se esforçando, não para alcançar o que desejam, mas para ganhar um aplauso.
Claro, muitos pais gostam que assim seja, pois adoram se sentir indispensáveis (no cinema, uma mãe enfia a cara embaixo de seu próprio assento para atender o telefone que vibrou no meio do filme e sussurrar um importantíssimo: sim, pode tomar refrigerante).
2) Meu irmão, aos dez anos, quis que todos escutássemos uma música que ele acabava de "compor". Movimentando ao acaso os dedos sobre o teclado (não tínhamos a menor educação musical), ele cantou uma letra que começava assim: sou bonito e eu o sei. Minha mãe escutou, constrangida, e, no fim, declarou que a letra era uma besteira, e a música, inexistente. Mas, se meu irmão quisesse, ele poderia estudar piano --à condição que se engajasse a se exercitar uma hora por dia. Meu irmão (desafinado como eu) desistiu disso e se tornou um médico excelente.
3) Os pais dos meus pais davam, no máximo, um beijo na testa de seus filhos. Já meus pais nos beijavam e abraçavam. Mesmo assim, não éramos o centro da vida deles, enquanto nossos filhos são facilmente o centro da nossa.
Para a geração de meus avós e de meus pais, a vida dos adultos não devia ser decidida em função do interesse das crianças, até porque o principal interesse das crianças era sua transformação em adulto (criança tem um defeito, foi-me dito uma vez por um tio: o de ser ainda só uma criança).
Lá pelos meus oito anos, eu tinha passado o domingo com meus pais, visitando parentes. A noite chegou, e eu não tinha nem começado meu dever de casa. Pedi uma nota assinada que me desculpasse. Meu pai disse: esta criança está com sono e deve trabalhar, façam um café para ele. Detestei, mas também gostei de aprender que, mesmo na infância, há coisas mais importantes do que sono e bem-estar.
4) Na pré-estreia do último "Batman", em Aurora, Colorado, um atirador feriu 58 pessoas e matou 12. Um comentador da TV norte-americana (não sei mais qual canal) disse, de uma menina assassinada, que ela era "uma vítima inocente".
Se só a menina era inocente, quer dizer que os outros 11, por serem adultos, eram culpados e mereciam os tiros?
Tudo bem, estou sendo de má-fé: o comentador queria nos enternecer e supunha, com razão, que, para a gente, perder um adulto fosse menos grave do que perder uma criança, que tem sua vida pela frente e, como se diz, ainda é "um anjo". No entanto, eu não acredito em anjos e ainda menos acredito que crianças sejam anjos. Também não sei o que é mais grave perder: a esperança de um futuro ou o patrimônio das experiências acumuladas de uma vida? Você trocaria seus bens atuais por um bilhete da Mega-Sena de sábado que vem?
5) Cuidado, não sonho com uma impossível volta ao passado. Essas notas servem para propor uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos. Explico.
A partir do fim do século 18, no Ocidente, as crianças adquiriram um valor novo e especial. Únicas continuadoras de nossas vidas, elas foram encarregadas de compensar nossos fracassos por seu sucesso e sua felicidade.
Desde essa época, em que as crianças começaram a ser amadas e cuidadas extraordinariamente, nós nos preocupamos com os efeitos nelas de uma eventual falta de amor. Agora, começo a pensar que nossa preocupação com os estragos produzidos pela falta de amor sirva, sobretudo, para evitar de encarar os estragos produzidos pelos excessos de nosso amor pelas crianças.
Contardo Calligaris
Contardo Calligaris na Folha de São Paulo

quinta-feira, julho 19, 2012

Contardo Calligaris- "Na estrada"





"Na Estrada"

Preferimos segurança ou aventura? Quanta aventura sacrificamos à nossa segurança?

Assisti a "Na Estrada", de Walter Salles, na sexta passada, no Rio. E passei o fim de semana pensando na minha vida.
Li "Na Estrada", de Jack Kerouac, no fim dos anos 1960, provavelmente em Nova York -mas talvez em Houston. O texto que eu li era uma versão expurgada; isso, na época, eu não sabia. Não voltei ao texto em 2007, quando a Viking publicou o manuscrito original (em português pela L&PM). Mas o texto voltou em mim com força, na sexta-feira, quando assisti ao filme.
Nos anos 1960, eu era um hippie lendo um "beat". Na mesma época, "Almoço Nu", de William Burroughs, me seduzia, mas me assustava -longe demais de minha experiência (das drogas, do sexo e da vida). Também lia Allen Ginsberg e Gregory Corso, mas, aos dois, preferia Lawrence Ferlinghetti -outra escolha "bem comportada", dirá alguém.
O fato é que "Na Estrada" foi a parte da herança "beat" da qual eu me apropriei imediatamente. Por quê? As drogas, o álcool ou o sexo "livre" me pareciam secundários -apenas um jeito de dizer: "Não esperem que a gente viva como manda o figurino".
O essencial, para mim, era a junção da fome de aventura com uma raivosa vontade de escrever. A vida se confundia com um projeto literário que exigia os excessos: era preciso viver intensa e loucamente, de peito aberto, para que valesse a pena contar a história. Por isso, eu e outros podíamos, ao mesmo tempo, venerar Kerouac e Hemingway -os quais, álcool à parte, provavelmente, não se dariam.
Pensando bem, eu fui mais um "beat" atrasado do que um hippie. A procura por iluminações interiores e comunhões cósmicas da idade de Aquário, tudo isso me parecia pacotilha para "Hair", coisa da Broadway. Fiz minha peregrinação à Índia e ao Nepal, mas considerava com desconfiança o orientalismo que estava na moda: o budismo dos anos finais de Kerouac e Ginsberg não me parecia mais sério do que o hinduísmo dos Beatles.
O problema é que eu era um espécimen bastardo: "mezzo" hippie e "mezzo" maio-68 francês, "mezzo" descendente dos "beats" e "mezzo" filho marxista do pós-guerra europeu.
Kerouac não tinha simpatia pelo marxismo. Ele preferia o individualismo dos que procuram uma fronteira para desbravar -pouco a ver com um projeto de reforma social ou de revolução. Para os "beats", aliás, transformar a sociedade seria um problema. Certo, Neal Cassady e Gregory Corso passaram tempo na cadeia; e Burroughs, Kerouac e Ginsberg foram censurados. Mas, justamente, num mundo que não lhes resistisse, a vida dos "beats" perderia sua dimensão épica.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, fazendo um balanço, eu teria dito que, em mim, a herança marxista europeia prevalecera sobre a herança "beat". Hoje, penso o contrário -não sei se por decepção política ou por maturidade. Mas não tenho muitas certezas: por exemplo, minha errância pelo mundo foi uma experiência da estrada ou uma versão "chique" do cosmopolitismo forçado dos trabalhadores modernos?
E será que vivi como um fogo de artifício? Ou então durar e continuar vivo se tornou, para mim, mais importante do que me arriscar na intensidade das experiências?
O filme de Salles está sendo a ocasião imperdível de um balanço -ainda não decidi se festivo ou melancólico. Cuidado, o balanço não interessa só minha geração. Cada um de nós pode se perguntar, um dia, como resolveu a eterna e impossível contradição entre segurança e aventura: quanta aventura ele sacrificou à sua segurança?
Essa conta deveria ser feita sem esquecer que 1) a segurança é sempre ilusória (todos acabamos morrendo) e 2) qualquer aventura não passa de uma ficção, um sonho suspenso entre a expectativa e a lembrança.
Que você tenha lido ou não o livro de Kerouac, e seja qual for sua geração, assista ao filme e se interrogue: se uma noite, inesperadamente, Neal Cassady tocar a campainha de sua casa, louco de aventuras para serem vividas e com o olhar fundo de quem dirige há horas e ainda quer se jogar na estrada, você saberia e poderia, sem fazer mala alguma, simplesmente ir embora com ele?
Nota. Na semana passada, neste espaço, escrevi, como sempre, uma coluna (www.migre.me/9Ttsq). Aparentemente, Barbara Gancia leu outra. A essa outra coluna, que eu não escrevi, ela respondeu na sexta (www.migre.me/9TtFI). Não sei se um mal-entendido tamanho tem conserto ou interesse. Seja como for, hoje, comentar "Na Estrada" era decididamente mais importante, para mim.

quinta-feira, julho 12, 2012

Contardo Calligaris- Os outros que ajudam (ou não)






Os outros que ajudam (ou não)

Amigos e próximos, em vez de nos ajudar com reforços positivos, torcem contra nossos esforços para mudar

 Muitos anos atrás, conheci um alcoólatra, que, aos 40 anos, quis parar de beber. O que o levou a decidir foi um acidente no qual ele, bêbado, quase provocara a morte da companheira que ele amava, por quem se sentia amado e que esperava um filho dele.
O homem frequentou os Alcoólatras Anônimos. Deu certo, mas, depois de um tempo, houve uma recaída brutal. Desanimado, mas não menos decidido, com o consenso de seu grupo dos AA, o homem se internou numa clínica especializada, onde ficou quase um ano -renunciando a conviver com o filho bebê.
Ele voltou para casa (e para as reuniões dos AA), convencido de que nunca deixaria de ser um alcoólatra -apenas poderia se tornar, um dia, um "alcoólatra abstêmio".
Mesmo assim, um dia, depois de dois anos, ele se declarou relativamente fora de perigo. Naquele dia, o homem colocou o filhinho na cama e, enfim, sentou-se na mesa para festejar e jantar.
E eis que a mulher dele chegou da cozinha erguendo, triunfalmente, uma garrafa de "premier cru" de Château Lafite: agora que ele estava bem, certamente ele poderia apreciar um grande vinho, para brindar, não é?
O homem saiu na noite batendo a porta. A mulher que ele amava era uma idiota? Ou ela era (e sempre tinha sido) companheira, não da vida do marido, mas de sua autodestruição? Seja como for, a mulher dessa história não é um caso isolado.
Quem foi fumante e conseguiu parar, quase certamente encontrou um dia um amigo que lhe propôs um cigarro "sem drama": agora que você parou, vai poder fumar de vez em quando -só um não pode fazer mal.
Também há parentes e próximos que patrocinam qualquer exceção ao regime que você tenta manter estoicamente: se for só hoje, uma massa não vai fazer diferença, nem uma carne vermelha. Seja qual for a razão de seu regime e a autoridade de quem o prescreveu, para parentes e próximos, parece que há um prazer em você transgredir.
Em suma, há hábitos que encurtam a vida, comprometem as chances de se relacionar amorosa e sexualmente e, mais geralmente, levam o indivíduo a lidar com um desprezo do qual ele não sabe mais se vem dos outros ou dele mesmo.
Se você precisar se desfazer de um desses hábitos, procure encorajamento em qualquer programa que o leve a encontrar outros que vivem o mesmo drama e querem os mesmos resultados que você. É desses outros que você pode esperar respeito pelo seu esforço -e até elogio (quando merecido).
Hoje, encontrar esses outros é fácil. Há comunidades on-line de pessoas que querem se livrar de seu sedentarismo, de sua obesidade, do fumo, do alcoolismo, da toxicomania etc. Os membros de uma comunidade registram e transmitem, todos os dias, seus fracassos e seus sucessos. No caso do peso, por exemplo, há uma comunidade cujos membros instalam em casa uma balança conectada à internet: o indivíduo se pesa, e a comunidade sabe imediatamente se ele progrediu ou não.
Parêntese. A balança on-line não funciona pela vergonha que provoca em quem engorda, mas pelos elogios conquistados por quem emagrece. Podemos modificar nossos hábitos por sentirmos que nossos esforços estão sendo reconhecidos e encorajados, mas as punições não têm a mesma eficácia. Ou seja, Skinner e o comportamentalismo têm razão: uma chave da mudança de comportamento, quando ela se revela possível, está no reforço que vem dos outros ("Valeu! Força!").
Já as ideias de Pavlov são menos úteis: os reflexos condicionados existem, mas, em geral, se você estapeia alguém a cada vez que ele come, fuma ou bebe demais, ele não parará de comer, fumar ou beber -apenas passará a comer, fumar e beber com medo.
Volto ao que me importa: por que, na hora de tentar mudar um hábito, é aconselhável procurar um grupo de companheiros de infortúnio desconhecidos? Por que os próximos da gente, na hora em que um reforço positivo seria bem-vindo, preferem nos encorajar a trair nossas próprias intenções?
Há duas hipóteses. Uma é que eles tenham (ou tenham tido) propósitos parecidos com os nossos, mas fracassados; produzindo nosso malogro, eles encontrariam uma reconfortante explicação pelo seu.
Outra, aparentemente mais nobre, diz que é porque eles nos amam e, portanto, querem ser nossa exceção, ou seja, querem ser aqueles que nós amamos mais do que nossa própria decisão de mudar. Como disse Voltaire, "Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu"

quinta-feira, julho 05, 2012

Contardo Calligaris- A cura gay








A cura gay


Da Folha de São Paulo




Em 1980, a homossexualidade sumiu do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais". Em 1990, ela foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde.
Médicos, psiquiatras e psicólogos não podem oferecer uma cura para uma condição que, em suas disciplinas, não é uma doença, nem um distúrbio, nem um transtorno. Isso foi lembrado por Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia, numa entrevista àFolha de 29 de junho.
No entanto, o deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, pede que, por decreto legislativo, os psicólogos sejam autorizados a "curar" os homossexuais que desejem se livrar de sua homossexualidade.
Um pressuposto desse pedido é a ideia de que os psicólogos saberiam como mudar a orientação sexual de alguém (transformá-lo de hétero em homossexual e vice-versa), mas seriam impedidos de exercer essa arte --por razões ideológicas, morais, politicamente corretas etc.
Ora, no estado atual de suas disciplinas, mesmo se eles quisessem, psicólogos e psiquiatras não saberiam modificar a orientação sexual de alguém --tampouco, aliás, eles saberiam modificar a "fantasia sexual" de alguém (ou seja, o cenário, consciente ou inconsciente, com o qual ele alimenta seu desejo).
Claro, ao longo de uma terapia, alguém pode conseguir conviver melhor com seu próprio desejo, mas sem mudar fundamentalmente sua orientação e sua fantasia.
Por via química ou cirúrgica (administração de hormônios ou castração real --todos os horrores já foram tentados), consegue-se diminuir o interesse de alguém na vida sexual em geral, mas não afastá-lo de sua orientação ou de sua fantasia, que permanecem as mesmas, embora impedidas de serem atuadas. A terapia pela palavra (psicodinâmica ou comportamental que seja) tampouco permite mudar radicalmente a orientação ou a fantasia de alguém.
O que acontece, perguntará João Campos, nos casos de homossexualidade com a qual o próprio indivíduo não concorda? Posso ser homossexual e não querer isso para mim: será que ninguém me ajudará?
Sim, é possível curar o sofrimento de quem discorda de sua própria sexualidade (é a dita egodistonia), mas o alívio é no sentido de permitir que o indivíduo aceite sua sexualidade e pare de se condenar e de tentar se reprimir além da conta.
Por exemplo, se eu não concordo com minha homossexualidade (porque ela faz a infelicidade de meus pais, porque sou discriminado por causa dela, porque sou evangélico ou católico), não posso mudar minha orientação para aliviar meu sofrimento, mas posso, isso sim, mudar o ambiente no qual eu vivo e as ideias, conscientes ou inconscientes, que me levam a não admitir minha orientação sexual.
Campos preferiria outro caminho: o terapeuta deveria fortalecer as ideias que, de dentro do paciente, opõem-se à homossexualidade dele. Mas o desejo sexual humano é teimoso: uma psicoterapia que vise reforçar os argumentos (internos ou externos) pelos quais o indivíduo se opõe à sua própria fantasia ou orientação não consegue mudança alguma, mas apenas acirra a contradição da qual o indivíduo sofre. Conclusão, o paciente acaba vivendo na culpa de estar se traindo sempre --traindo quer seja seu desejo, quer seja os princípios em nome dos quais ele queria e não consegue reprimir seu desejo.
Isso vale também e especialmente em casos extremos, em que é absolutamente necessário que o indivíduo controle seu desejo. Se eu fosse terapeuta no Irã, para ajudar meus pacientes homossexuais a evitar a forca, eu não os encorajaria a reprimir seu desejo (que sempre explodiria na hora e do jeito mais perigosos), mas tentaria levá-los, ao contrário, a aceitar seu desejo, primeiro passo para eles conseguirem vivê-lo às escondidas.
O mesmo vale para os indivíduos que são animados por fantasias que a nossa lei reprova e pune. Prometer-lhes uma mudança de fantasia só significa expô-los (e expor a comunidade) a suas recidivas incontroláveis. Levá-los a reconhecer a fantasia da qual eles não têm como se desfazer é o jeito para que eles consigam, eventualmente, controlar seus atos.
Agora, não entendo por que João Campos precisa recorrer à psicologia ou à psiquiatria para prometer sua "cura" da homossexualidade. Ele poderia criar e nomear seus especialistas; que tal "psicopompos"? Ou, então, não é melhor mesmo "exorcistas"?

sexta-feira, junho 22, 2012

Sobre laços, amor e discursos- Marina Vieira Espinoza*; Vera Lopes Besset

Sobre laços, amor e discursos Marina Vieira Espinoza*; Vera Lopes Besset** Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO Este artigo tem como objetivo discutir o tratamento dado ao mal-estar pela psicanálise no mundo contemporâneo, tendo em vista o modo como o sujeito se apresenta: submetido ao discurso do capitalista, desconectado do campo do Outro. Propomos uma manobra a mais no momento das entrevistas preliminares, visando a um enlaçamento entre analista e paciente, pela transferência, entendida como condição de possibilidade a todo tratamento analítico. Defendemos que, pela via do encontro com o discurso do analista e do amor de transferência, é possível promover a articulação do campo do sujeito com o campo do Outro, princípio de todo laço social, e permitir que o sujeito construa uma nova saída para lidar com o mal-estar, implicando-se em sua queixa e no sofrimento que relata. Palavras-chave: psicanálise; mal-estar; laço social; discurso analítico; transferência Considerações preliminares "Pânico, depressão, ansiedade, fobia e stress, formas de apresentação do sofrimento nas queixas dos sujeitos que buscam um tratamento, denominações atuais para o que Freud (1930) chamou de mal-estar na cultura. Em seu texto sobre o tema, escrito em 1929, o autor afirma que alcançar e manter a felicidade, propósito da vida dos seres humanos, é um programa irrealizável. Isso porque a felicidade corresponderia à satisfação imediata de necessidades: “Se uma situação ansiada pelo princípio do prazer perdura, em nenhum caso se obtém mais do que um ligeiro sentimento de bem estar; estamos organizados de tal modo que só podemos gozar com intensidade o contraste e muito pouco com o estado” (Freud 1986/1930 [1929], p. 76) (tradução nossa). Segundo ele, seriam três as fontes privilegiadas de sofrimento para o homem: o próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento com os outros (Freud, 1986/1930 [1929], p. 76). Resume, então, o mal-estar ao qual se refere: A vida, como nos é imposta, resulta árdua: nos traz fartas dores, desenganos, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos prescindir de calmantes. Eles existem, talvez, de três classes: poderosas distrações substitutivas, que nos fazem amenizar um pouco nossa miséria; satisfações substitutivas, que a reduzem; e substâncias entorpecentes que nos tornam insensíveis a elas (Freud, 1986/1930) (tradução nossa). Em contraponto a isso, as diretrizes de nossa cultura, radicalizando os princípios da modernidade (Lipovetsky, 2004), indicam que os sujeitos devem ser felizes e completos. Assim, devem eliminar os fatores que causam desconforto e os desviam da rota da plenitude. Nesse contexto, inúmeros são os objetos elevados ao status de portadores da solução contra qualquer tipo de sofrimento. O aumento da oferta desses produtos é fruto da exaltação do prazer a qualquer custo, em consonância com a lógica da sociedade de consumo, que incentiva a aquisição e o descarte de bens (Bauman, 2003; Miller, 2004). No entanto, essa “técnica” fracassa em sua função de garantir o bem-estar e, desse modo, a felicidade. Isso porque, invariavelmente, o objeto escolhido para tamponar a falta não sustenta essa função e o sofrimento retorna. No melhor dos casos, sob a forma de sintoma. Sendo assim, registram-se várias propostas de tratamento. Nesse contexto, observa-se uma diminuição no interesse do sujeito em deixar-se interpelar por seu sofrimento, mostrando-se cada vez mais acomodado em uma posição de vítima ou de objeto. As novidades produzidas pela ciência são difundidas pela rede mundial da internet: diversos tipos de terapia, remédios, livros de autoajuda. Nesse mesmo movimento, vemos o incremento da avaliação e dos protocolos como forma de universalizar e padronizar a partir da média, que acaba por excluir o que há de particular em cada sujeito (Miller, 2004; 2005; Miller; Milner, 2006). Com a proliferação dos diagnósticos, que acabam funcionando como rótulos, tudo pode ser justificado, pois tem uma causa e se resume no “transtorno”, na “doença”. Quando a sintonia de seu quadro sintomático é abalada, por vezes, um sujeito procura um tratamento. Em geral, buscando a restituição de uma situação anterior, de harmonia com seu sintoma. Isso, a partir de uma solução que não demande muito investimento, seja de tempo, de renúncia ou de elaboração. Sobre isso nos diz Palomera: O sujeito não ignora o mal-estar do sintoma como resposta desprazeroza; o que ignora do que não quer saber é a verdade que responde ao sintoma, o ser de verdade que sobre ele, como sujeito, traz o sintoma à luz do dia (Palomera, 2004, p. 3) (tradução nossa). A proposta da psicanálise tem como condição uma abertura do sujeito à responsabilização por seu sofrimento. Imersa no cenário dos tempos hipermodernos, ela trabalha, entretanto, a partir de uma lógica diversa à do tamponamento ou do apaziguamento da dor de existir (Brousse, 2003, p. 69). Nela se trata de lidar com o sofrimento de maneira distinta, pois, no lugar dos objetos de consumo ou de promessas milagrosas de autocontrole e felicidade, um psicanalista oferece sua escuta. Nesse sentido, é a partir do acolhimento do sintoma que é possível à psicanálise operar. Sobre isso, Palomera assinala que o próprio sintoma aponta sua dimensão de verdade. Assim, a despeito de o sujeito não querer saber a verdade do que ele é em seu sintoma, “conforme o sintoma o divide, e como está dividido sem saber disso que há nele e que se manifesta no estranho do sintoma, vê-se induzido a saber” (Palomera, 2004, p. 3) (tradução nossa). O que do sintoma aparece como estranho, é o que Lacan assinala como sendo o seu sentido" ... Mais aqui.

Analista como parceiro sinthoma...



Daqui.

Psicanálise e toxicomania

Psicanálise e Toxicomania

" No discurso da ciência, a droga ocupa o lugar central e pouca importância se dá para sujeito. O seu manejo, via de regra, é comportamental,medicamentoso e, se porventura, falha, a responsabilidade é do individuo.
 O artigo de J. Reis é bem interessante para se pensar no sujeito e o lugar que a droga ocupa para a sua vida..."  http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/O_diagnóstico_diferencial_na_clínica_das_toxicomanias. www.opcaolacaniana.com.br

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quinta-feira, junho 21, 2012

A PASSAGEM DO DISCURSO CAPITALISTA PARA O DISCURSO ANALÍTICO ...


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A PASSAGEM DO DISCURSO CAPITALISTA PARA O DISCURSO ANALÍTICO SE FAZ PELA EMERGÊNCIA DE UM SIGNO DE AMOR


[...] "lo que hace existir el inconsciente como saber, es el amor. Por otra parte, la cuestión del amor, a partir del Seminario Aún conoce una promoción muy especial, porque el amor es lo que puede hacer mediación entre los unos solos. Por lo tanto, decir que es imaginario, en fin, produce una dificultad. Es decir que el inconsciente no existe. El inconsciente primario no existe como saber. Para que devenga un saber, para hacerlo existir como saber, hace falta el amor. Y es por lo cual Lacan podía decir al final de su Seminario Los nombres del Padre: un psicoanálisis, demanda amar a su inconsciente. Es el único medio de hacer, de establecer una relación entre S1 y S2."

(Jacques-Alain Miller - Conferencia en el IV Congreso de la AMP (2004): "Una fantasía" - citação publicada por Paula Contreras no mural de 'Amigos del Psicoanálisis en Paraguay')

O amor além do gozo


"O amor está para além do gozo sexual. Ele visa o ser e tem como efeito a produção da alma, cuja definição lacaniana é "aquilo que permite ao ser falante suportar o intolerável de seu mundo." Eis porque o amor se refere sempre à alma, - o almor alma a alma. O amor é a afirmação do ser e da vida. Nas situações mais extremas de ameaça, ao ser, ou seja, de risco absoluto de deixar de ser, de existir, de " not to be", o que se tem? A declaração de amor. "
Antonio Quinet

domingo, junho 10, 2012

Sobre hábitos- Da Folha


A força do hábito
Por que é tão difícil se livrar de costumes e dependências




RESUMO
Quase metade das ações que executamos diariamente não são produto de decisões deliberadas, mas do hábito. Livros recentes mostram como rotinas se tornam vícios, como empresas se aproveitam dos costumes dos clientes para aumentar vendas e como mudanças de hábitos podem reduzir mortes em hospitais.
HÉLIO SCHWARTSMAN
Qualquer comportamento humano é o resultado da interação de uma série de variáveis, que incluem desde inflexíveis características genéticas até detalhes exoticamente mundanos, como a temperatura em que foi deixado o ar condicionado, passando pelo mais puro acaso. Se há uma força que se destaca nessa multidão de impulsos e disposições, é o hábito.
Pesquisadores da Universidade Duke estimaram, num trabalho de 2006, que mais de 40% das ações que executamos diariamente não são produto de decisões deliberadas, mas do hábito. Seria difícil superestimar sua importância.
Hábitos nos permitem executar uma miríade de atividades intimamente associadas a nosso bem-estar e são uma das principais forças a movimentar a economia mundial. A capacidade de modificá-los está intimamente associada ao sucesso de pessoas e empresas.
Do lado negativo, hábitos estão ligados à dependência de drogas e a outros comportamentos destrutivos e são o ponto a partir do qual políticos, publicitários e outros segmentos da mídia tentam (e muitas vezes conseguem) influir em nossas decisões e manipular-nos o comportamento.
O hábito é basicamente uma rotina neurológica pela qual executamos uma tarefa de modo mais ou menos automático, como escovar os dentes, dirigir pelo trajeto de sempre, acender um cigarro após as refeições ou, no caso de uma tartaruga marinha, voltar sempre à mesma praia em que nasceu para depositar seus ovos.
Trata-se de uma ferramenta de aprendizado, a forma favorita da natureza de fixar comportamentos úteis para a sobrevivência. É pelo hábito que a maior parte dos vertebrados navega pelo mundo.
Nós, humanos, ao lado de alguns outros mamíferos, somos um pouco diferentes. Temos uma certa flexibilidade e, por isso, não nos fiamos inteiramente no hábito.
O problema é que o comportamento flexível demanda enormes recursos atencionais e, portanto, energéticos (o sistema nervoso central consome sozinho cerca de 25% do oxigênio que respiramos).
Sempre que pode, o cérebro tenta converter atividades rotineiras em hábitos e, com isso, poupar energia e liberar espaço para outras tarefas.
VÍCIO
Em termos neurológicos, os gânglios basais parecem ser o lugar onde armazenamos nossos hábitos. Essas estruturas primitivas também já foram associadas ao controle de sistemas motores (elas têm um papel importante na doença de Parkinson) e aos centros de recompensa, envolvidos no aprendizado e no vício em drogas.
Um pouco desprezado pelos cientistas, que o viam como algo repetitivo e aborrecido e que evocava os piores momentos do behaviorismo, o hábito está dando sua volta por cima. Nos últimos anos, vários livros detalharam seus mecanismos de funcionamento e destrincharam suas implicações.
Um recente é  "The Power of Habit: Why We Do What We Do in Life and Business" [Random House, 400 págs., R$ 79] , de Charles Duhigg. O autor não é cientista nem divulgador de ciência. É repórter de negócios do "New York Times" e começou a se interessar pela força do hábito para modificar comportamentos quando cobria a guerra no Iraque.
No início da ocupação, o país era castigado por episódios quase diários de manifestações violentas. Mas havia uma notável exceção. A pequena cidade de Kufa despontava como ilha de tranquilidade. O responsável pela façanha era um major do Exército dos EUA, que, após analisar vídeos de protestos que descambavam para a violência, resolveu fazer um experimento. Mandou retirar todos os vendedores de comida da praça de Kufa. Deu certo.
O major identificara um padrão, um hábito organizacional. Os manifestantes se juntavam na praça aos poucos e iam atraindo a atenção de passantes, que paravam para observar, engrossando a multidão. Então apareciam os vendedores de comida. Alguém gritava um slogan antiamericano, jogava uma pedra ou uma garrafa e o pandemônio começava.
Sem os vendedores de comida, que haviam se tornado um dos gatilhos da rotina de violência, o ciclo não se completava. Os passantes, com fome e sem ter como saciá-la, preferiam ir para casa, desmobilizando os manifestantes.
"The Power of Habit" é um livro gostoso de ler. Duhigg escreve bem e recheia a narrativa com casos humanos e boas histórias sobre empresas, algumas com potencial para nos deixar preocupados, como veremos adiante. Poderia ter sido um pouco mais meticuloso ao descrever a ciência do hábito, mas a verdade é que a neurofisiologia é uma disciplina que não costuma atrair multidões de fãs.
Na versão simplificada, hábitos se materializam como um circuito de três fases. Eles são desencadeados por uma sugestão que funciona como gatilho, disparando a rotina gravada nos gânglios basais. Essas rotinas podem ser tanto físicas (meter os dentes numa barra de chocolate) como mentais (lembrar a infância sempre que se come um biscoito).
Em seguida vem a recompensa, que costuma ser uma boa descarga de dopamina, conhecida jornalisticamente como molécula do prazer. Trata-se de um mecanismo de "feedback" positivo.
Isso significa que, quanto mais o usamos, mais ele se solidifica em nossas mentes. Daí a dificuldade em abandonar velhas práticas, notadamente as que nos fazem mal. Esse mecanismo se manifesta na forma de "craving" (fissura), que é o desejo incontido de executar a rotina despertado pelo gatilho.
Outra implicação é que nunca nos livramos de verdade nossos hábitos, mesmo quando nos esforçamos para mudá-los. A rotina antiga é alterada, mas fica armazenada em algum recôndito de nossas mentes. O bom é que não precisamos reaprender a dirigir sempre que voltamos de férias. O ruim é que, sob estresse, alcoólatras e outras vítimas de dependência podem recair nos velhos padrões.
EMPRESAS
Hábitos não estão limitados a pessoas. Eles também estão presentes na vida de empresas e organizações. Pior ainda, empresas e organizações tentam explorar os hábitos de pessoas, mais especificamente de consumidores, para aumentar seu faturamento.
Um exemplo é o do McDonald's. As lojas seguem uma planta standard e tentam ser o mais parecidas possível, inclusive nas fórmulas de tratamento usadas pelos funcionários. A ideia é que tudo sirva como gatilho para disparar as rotinas de alimentação dos clientes. Eles se sentirão reconfortados e recompensados. E quanto mais forem ao McDonald's, mais quererão voltar.
Um caso assustador narrado por Duhigg é o da rede Target. Grávidas são uma mina de ouro para o comércio, não só porque gastam muito nos enxovais, mas, principalmente, porque esse é um momento em que elas (e os maridos) são particularmente vulneráveis a alterar hábitos de consumo, potencialmente para o resto da vida.
Diante disso, a Target, que vende um pouco de tudo, de móveis e eletrodomésticos a comida, a preços atrativos, resolveu que precisava descobrir quais clientes estavam começando uma gravidez para ganhá-las para todo o sempre.
Para isso contratou o economista comportamental Andrew Pole, que desenvolveu um algoritmo matemático para, com base em alterações bruscas nos itens comprados -coisas como vitaminas, loções, bolsas grandes-, identificar quais estavam grávidas. Aí era só enviar-lhes os cupons certos, com descontos para lindos berços e estoques de fraldas, e fisgá-las.
É claro que nada pode ser tão explícito. Muitos ficariam irritados se descobrissem que seu supermercado xereta o que compram para ampliar vendas. Assim, a Target não poderia só enviar cupons de produtos relacionados a bebês para as grávidas. A solução, genial, foi mandar essa publicidade específica misturada à de outros itens, fazendo parecer que tudo não passou de feliz coincidência.
A moral da história, que dá razão aos paranoicos, é que é preciso ter cuidado ao passar o cartão de fidelidade no caixa. Sua loja favorita pode estar descobrindo seus segredos mais íntimos.
LESÕES
Esses exemplos mundanos podem dar a impressão de que o hábito ocupa um lugar marginal em nossas vidas mentais, mas seu papel é absolutamente central.
Pessoas com lesões nos gânglios basais perdem a capacidade até de decidir o que vão comer ou de abrir uma porta. Sem os atalhos proporcionados pelo hábito, ficam mentalmente paralisadas, impossibilitadas de ignorar os detalhes insignificantes que continuamente inundam nossas cabeças.
Para Duhigg, o segredo para mudar os hábitos é manter o gatilho e a recompensa antigos, mas alterar a rotina. Parece banal e de fato é. O detalhe é que as pessoas nem sempre estão cientes de quais gatilhos disparam seus costumes.
O que programas como o Alcoólicos Anônimos (AA) fazem é oferecer condições para que a pessoa perceba que situações acionam a "fissura" que a leva a beber e substitua a rotina por outras que também produzam satisfação. A visita ao bar é trocada por uma reunião ou conversa com o padrinho.
O autor sustenta que, em princípio, por esse esquema de reconhecimento e substituição, qualquer hábito pode ser modificado. Aqui está o ponto mais fraco do livro de Duhigg. É claro que, em princípio, toda rotina automática pode ser alterada.
Pessoas se curam até da dependência de heroína. Mas, quando vemos as legiões de fumantes incapazes de largar o vício e exércitos de obesos que não conseguem perder peso, vemos que fazê-lo tende a ser mais complicado do que sugere a teoria.
Ao não valorizar devidamente as dificuldades, que são epidemiologicamente aferíveis, Duhigg, se não chega ele próprio a resvalar na literatura de autoajuda, abre uma avenida para seus promotores.
Cuidado, não estou afirmando que todos os títulos de autoajuda são lixo. Muitos de fato o são, mas nem todos. Uma honrosa exceção é  "Switch: How to Change Things When Change Is Hard" [Crown Business. 320 págs. R$ 33 mais taxas] , dos irmãos Chip e Dan Heath, com várias publicações na área de negócios.
Embora "Switch" busque auxiliar o leitor a desenvolver estratégias para alterar seus hábitos e os das organizações de que faça parte, está calcado em boa ciência. Enquanto Duhigg caminha pelas sendas da neurociência, os irmãos Heath apostam na psicologia. Para eles, a dificuldade para alterar uma rotina decorre do fato de que nossas mentes são o campo de batalha onde razão e emoção se enfrentam pela supremacia sobre nossas ações. Enquanto o cérebro racional deseja uma silhueta esbelta, o emocional está mais interessado em repetir a sobremesa.
De modo geral, a razão gosta de mudança, enquanto a emoção prefere o conforto da rotina conhecida. Embora costumemos pensar em nós mesmos como seres racionais e ponderados, um enorme corpo de experimentos psicológicos esboça quadro mais complexo.
ELEFANTE
Emoções, para utilizar a imagem do psicólogo Jonathan Haidt, são um elefante; a razão, o condutor desse elefante. O animal obedecerá ao piloto, mas apenas enquanto estiver disposto a fazê-lo. Quando os dois estão de acordo, tudo transcorre bem, mas, quando divergem, o elefante tende a levar a melhor. Ele, afinal, é o mais forte e o mais resistente. Há outras circunstâncias, mais raras, em que o condutor convence o bicho a mudar de ideia. É aí que se inscrevem as mudanças de hábito.
Embora a prosa dos Heath não seja saborosa como a de Duhigg, eles também recorrem a casos interessantes, como o de Donald Berwick, médico e CEO do Institute for Healthcare Improvement.
Berwick queria reduzir o número de mortes por erros de procedimento em hospitais dos EUA. A taxa de "defeito", isto é, de erros como não ministrar a droga certa na quantidade e na hora especificadas, era de absurdos 10% no início dos anos 2000. Na maioria das indústrias, esse índice é inferior a 0,1%. Isso significava que dezenas de milhares morriam desnecessariamente a cada ano.
Nada disso era novidade. Os números eram conhecidos e todos sabiam mais ou menos o que deveria ser feito, mas as mudanças simplesmente não aconteciam. Foi aí que, em 14 de dezembro de 2004, numa convenção de administradores hospitalares, Berwick lançou o desafio. Propôs que, até as 9h de 14 de junho de 2006, ou seja, dali a 18 meses, as pessoas naquela sala salvassem 100 mil vidas.
A plateia ficou chocada, mas Berwick sugeriu que todos ali se comprometessem a implementar seis medidas específicas capazes de produzir enorme retorno. Algumas eram simples, como garantir que a cabeceira da cama de todos os pacientes estivesse com inclinação entre 30° e 45°, modo eficaz de prevenir pneumonia, complicação comum e frequentemente fatal.
Eles concordaram, mas não foi fácil. Aceitar as medidas implicava reconhecer que os hospitais tinham taxa elevada de erros e que produziam mortes desnecessárias, um pesadelo para os departamentos jurídicos. Mas a coisa ganhou força e, dois meses depois do discurso, mil hospitais haviam formalizado adesão à campanha.
Em 14 de junho de 2006, Berwick anunciava que os hospitais participantes da campanha das 100 mil vidas tinham evitado coletivamente 122.300 mortes, segundo cálculos dos epidemiologistas. Mais importante, a maior parte das seis medidas propostas havia sido institucionalizada. Os hospitais dos EUA se tornaram lugares um pouco menos perigosos.
Para os irmãos Heath, a receita da mudança de hábito tem três partes. Primeiro, dirija-se ao condutor do elefante. Muitas vezes, o que parece resistência é apenas falta de clareza. No caso de Berwick, as instruções ao piloto vieram na forma das seis intervenções.
Motive o elefante. O que parece preguiça pode ser só exaustão. O condutor não consegue opor-se ao animal por muito tempo, assim, é preciso colocar o lado emocional para trabalhar a favor da mudança. No exemplo, a motivação é salvar 100 mil vidas em 18 meses.
Modele o caminho. O que parece falha de caráter é às vezes só problema situacional, quando você altera um bocadinho as coisas para que a mudança pareça mais factível, ela se torna mais provável. Berwick modelou o caminho ao criar um sistema simples de adesão que logo se tornou corrente.
TRÁGICO
David DiSalvo, autor de  "What Makes Your Brain Happy and Why You Should Do the Opposite" [Prometheus, 280 págs., R$ 43] , tem visão mais trágica. Para ele, o cérebro evoluiu para tornar-se uma máquina de fazer previsões. Para tanto, especializou-se em identificar padrões, antecipar ameaças e forjar narrativas. Ele ama a estabilidade e tem horror à incerteza e à imprevisibilidade, ameaças existenciais.
O problema é que, ao desenvolver a capacidade de se defender dessas supostas ameaças, nossos cérebros deixaram para trás subprodutos que jamais conseguiremos desentranhar de nossas atitudes e nossos pensamentos. Exemplos dessas inclinações incluem nossa obsessão por certezas, a confiança excessiva na memória, a disposição para achar que tudo tem um significado especial, a vontade de estar no controle etc.
Embora esses vieses deixem nossos cérebros felizes, isso nem sempre serve a nossos interesses no mundo moderno. Lembre que nossas mentes foram criadas para operar no paleolítico, não em sociedades tecnológicas e plurais.
Sintomaticamente, o livro de DiSalvo é o que reúne menos exemplos. É também o que traça panorama mais completo dos recentes achados científicos sobre aspectos salientes da natureza humana. O hábito é um dos personagens, mas, como estamos num romance sem protagonistas, não faz tantas aparições quanto nos outros livros.
Para o autor, os últimos achados da neurociência e da psicologia cognitiva desferem um golpe na literatura de autoajuda, ao mostrar como a maioria dos conselhos são vazios e até fraudulentos. O caminho, diz DiSalvo, é usar a ciência para entender por que nossos cérebros encerram vieses que nos colocam em encrencas e por que temos dificuldade em sair delas.
Curiosamente, DiSalvo finaliza o livro com 50 pérolas de sabedoria extraídas de um corpo que parece consistente de evidências científicas. São conselhos como "cuidado com nossos vieses", "termine o que começou", "crie hábitos úteis" etc. -um fecho paradoxal para um autor tão crítico à autoajuda.
Uma explicação possível é que, entre os pendores inextinguíveis do gênero humano, estão o medo da incerteza com o futuro e a necessidade de estar no controle, que, juntos, asseguram que, enquanto os humanos forem humanos, haverá interesse pela autoajuda. As melhores evidências disponíveis provam que esse é um hábito que não conseguiremos mudar nem com o auxílio de muita ciência.

Da Folha de São Paulo- Ilustríssima.