quinta-feira, julho 04, 2013

Sigmund Freud - A Invenção da Psicanálise (1997)


Freud e nossa atitude diante da morte




 

“Nossa atitude insincera perante à morte torna a vida insípida e vazia”: Freud e nossa atitude diante da morte

Esse texto é poderoso não só porque é um ensaio do grande médico e fundador da Psicanálise Sigmund Freud (1956-1939) sobre o modo “evitacionista” (sic) como nossa cultura aborda a morte, mas porque aponta como essa cultura, que mantemos até hoje – talvez piorada, acaba por tornar a vida de muitos de nós medíocre, insípida e vazia. O ensaio intitulado “A Nossa Atitude Diante da Morte” foi escrito em 1915 (quase 100 anos atrás) e apesar de ser protagonizado pelo tema da guerra, no trecho específico transcrito abaixo se amplia para muito além dela, eu diria para os dias de hoje, talvez até mais do que para os de ontem. Não tomar a morte como real cria uma percepção afetada da vida, ou como diria o grande poeta e filósofo português:
“O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”.
~ Fernando Pessoa
O que acontece com uma morte que não se vê ou não se toma por real é uma vida que não se vive. Nas palavras do próprio Freud: “Resta então apenas procurar no mundo da ficção, na literatura, no teatro, a compensação do que na vida minguou“. Será que não é isso que buscamos na farta cultura ocidental de entretenimento e diversão onde tantos se aventuram, arriscam, matam, morrem, perdem tudo, ganham tudo, se transformam, etc? “No campo da ficção, deparamos com a pluralidade de vidas de que necessitamos“, continua Freud. “Aí encontramos homens que sabem morrer, mais ainda, que conseguem também matar os outros”.
OBS: É interessante como esse trecho abaixo está em consonância com outra visão, a do lama tibetano Sogyal Rinpoche, mestre de outra vertente de conhecimento e de outro hemisfério do planeta, n”O Livro Tibetano do Viver e do Morrer“, onde ele expressa a mesma percepção da maneira como os ocidentais tratam a realidade da morte. Veja no post “O grave problema de ignorar ou negar o significado da morte, por Sogyal Rinpoche“, publicado aqui em 2011.
O ensaio completo de Freud pode ser encontrado em português nos livros “Obras Psicológicas Completas”, Sigmund Freud (2010), “Porquê a Guerra?”, Sigmund Freud (1997), e “Escritos Sobre a Guerra e a Morte”, Sigmund Freud (2009).
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“A NOSSA ATITUDE DIANTE DA MORTE” [Ensaio]
Por Sigmund Freud
(…) O segundo factor de que deduzo que hoje nos sentimos desorientados neste mundo, antes tão belo e familiar, é a perturbação da atitude, até agora imutável, perante a morte.
Esta atitude não era sincera. Se alguém nos escutasse, estaríamos naturalmente dispostos a afirmar que a morte era o desenlace necessário de toda a vida, que cada um de nós estava em dívida de morte para com a Natureza e deveria estar preparado para pagar tal dívida, em suma, que a morte era natural, indiscutível e inevitável. Na realidade, porém, costumávamos comportar-nos como se fosse de outro modo. Temos uma tendência patente a prescindir da morte, a eliminá-la da vida. Tentámos silenciá-la; temos até o provérbio: pensamos em algo como na morte. Como na própria, claro está! A morte própria é, pois, inimaginável, e quantas vezes o tentamos pudemos observar que, em rigor, permanecemos sempre como espectadores. Assim, foi possível arriscar na escola psicanalítica esta asserção: no fundo, ninguém acredita na sua própria morte ou, o que é a mesma coisa, no inconsciente, cada qual está convencido da sua imortalidade.
No tocante à morte dos outros, o homem civilizado evitará cuidadosamente falar de tal possibilidade, quando o destinado a morrer o possa ouvir. Só as crianças infringem esta restrição; ameaçam-se sem pejo umas às outras com as probabilidades de morrer e chegam, inclusive, a dizer na cara de uma pessoa amada coisas como esta: «Querida mamã, quando morreres, farei isto ou aquilo.» O adulto civilizado não admitirá de bom grado nos seus pensamentos a morte de outra pessoa, sem aparecer aos seus próprios olhos como insensível ou mau; a não ser que como médico, advogado, etc., tenha a ver com a morte. E muito menos se permitirá pensar na morte de outro quando a tal acontecimento está ligado um ganho de liberdade, de fortuna ou de posição social. Naturalmente, esta nossa delicadeza não evita as mortes, mas quando estas acontecem, sentimonos sempre profundamente comovidos e como que abalados nas nossas expectações. Acentuamos com regularidade a motivação casual da morte o acidente, a enfermidade, a infecção, a idade avançada, e traímos assim o nosso empenho em rebaixar a morte de necessidade a casualidade. Uma acumulação de casos mortais afigura-se-nos como algo de sobremaneira horrível. Diante do próprio morto adoptamos um comportamento peculiar, quase como de admiração por alguém que levou a cabo algo de muito difícil. Excluímos a crítica a seu respeito, fazemos vista grossa sobre qualquer injustiça sua, determinamos que de mortuis nil nisi bene (dos mortos apenas se diz bem), e achamos justificado que na oração fúnebre e na inscrição sepulcral ele seja honrado e exaltado. A consideração para com o morto, de 2 que ele já não precisa, está para nós acima da verdade, e para a maioria de nós, decerto também, acima da consideração para com os vivos.
Esta atitude convencional da nossa civilização perante a morte é complementada pelo nosso total colapso quando a morte feriu uma pessoa que nos é muito chegada, o pai ou a mãe, o esposo ou a esposa, um filho, um irmão ou um amigo querido. Enterramos com ele as nossas esperanças as nossas aspirações e os nossos gozos, não queremos consolar-nos e recusamo-nos a toda a substituição do ente querido. Comportamo-nos então como os ‘Asras’, que morrem quando morrem os que eles amam.
Esta nossa atitude face à morte exerce, porém, uma poderosa influência na nossa vida. A vida empobrece-se, perde interesse, quando a aposta máxima no jogo da vida, ou seja a própria vida, se não tem de arriscar. Torna-se tão insípida vazia, como porventura um flirt americano, no qual se sabe de antemão que nada pode acontecer, diferentemente de uma relação amorosa continental em que ambos os parceiros devem ter sempre presente a possibilidade de graves consequências. Os nossos laços sentimentais, a intensidade intolerável da nossa pena levam a desviar-nos dos perigos para nós e para os nossos. Não nos atrevemos a ter em conta uma série inteira de empreendimentos que são perigosos, mas inevitáveis, como as tentativas dos aviadores, as expedições a terras longínquas, as experiências com substâncias explosivas. Paralisa-nos o escrúpulo de quem substituirá o filho ao lado da mãe, o homem ao lado da mulher, o pai junto dos filhos, se suceder alguma desgraça. A tendência para excluir a morte da conta da vida traz consigo muitas outras renúncias e exclusões. E, todavia, o lema da Confederação hanseática reza assim: Navigare necesse est, vivere non necesse! Necessário é navegar, não viver!
Resta então apenas procurar no mundo da ficção, na literatura, no teatro, a compensação do que na vida minguou. Aí encontramos homens que sabem morrer, mais ainda, que conseguem também matar os outros. Só aí se realiza também a condição sob a qual poderíamos reconciliar-nos com a morte, a saber, a de que por trás de todas as vicissitudes da vida nos ficou ainda uma vida intangível. É demasiado triste que na vida venha a suceder como no xadrez, onde uma falsa jogada nos pode forçar a dar por perdida a partida, mas com a diferença de que já não podemos começar uma segunda partida de desforra. No campo da ficção, deparamos com a pluralidade de vidas de que necessitamos. Morremos na identificação com um herói, mas sobrevivemos-lhe e estamos dispostos a morrer outra vez, igualmente indemnes, com outro herói.”
(…)
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