domingo, novembro 16, 2008

Amor sem pudor


Amor sem pudor


Comecei a ler este artigo e não consegui parar. Não o conhecia, deve ser excelente escritor. Leiam abaixo e me digam o que acham.

Copiei do Caderno MAIS!, Folha de S. Paulo, 16/11/08

Principal nome da nova geração de escritores norte-americanos, Jonathan Franzen descreve como o uso do celular modificou o espaço público e criou novas formas de sensibilidade

JONATHAN FRANZEN

Um dos grandes fatores irritantes da tecnologia moderna é que, quando alguma novidade tecnológica faz minha vida ficar sensivelmente pior e continua a encontrar maneiras novas e diferentes de me causar problemas, sou autorizado a me queixar dela por apenas um ano ou dois, antes que os marqueteiros do "cool" comecem a me mandar parar com isso -vovô, a vida hoje em dia é assim mesmo!
Não sou contra as novidades tecnológicas. A secretária eletrônica digital e a identificação do número de telefone de quem liga para você -que, juntas, acabaram com a tirania do telefone tocando- me parecem ser duas das invenções realmente importantes do final do século 20.
E como amo meu BlackBerry, que me permite responder a e-mails longos e indesejados com algumas linhas telegráficas ofegantes pelas quais, mesmo assim, o destinatário é obrigado a sentir-se grato, já que as escrevi com meus polegares. A privacidade, para mim, não quer dizer manter minha vida pessoal escondida de outras pessoas.
Os avanços tecnológicos com os quais tenho problema são os insultos que continuam a insultar, as dores do passado que continuam a provocar dor.
A TV dos aeroportos, por exemplo: parece que é assistida ativamente por não mais que 1 viajante em cada 10 (a não ser que estejam exibindo futebol), mas incomoda ativamente os outros nove.
Ano após ano, em um aeroporto após o outro, ela é responsável por uma diminuição pequena, mas aparentemente permanente, na qualidade de vida do viajante médio.
Outro exemplo: a obsolescência planejada de grandes softwares e sua substituição por softwares ruins. Ainda não me conformo com o fato de que o melhor processador de texto já escrito, o WordPerfect 5.0 para DOS, não funcione mais em nenhum computador que eu possa comprar hoje.
Mas essas são apenas irritações menores. O avanço tecnológico que causou danos duradouros de importância social real -e que, apesar de continuar a fazê-lo, faz você correr o risco de ser ridicularizado se se queixar dele publicamente hoje- é o telefone celular.

Cigarro e celular
Há dez anos, Nova York (onde vivo) era repleta de espaços públicos mantidos coletivamente em que os cidadãos demonstravam respeito por sua comunidade, não a obrigando a tomar conhecimento de suas vidas amorosas banais.
O mundo de dez anos atrás ainda não tinha sido totalmente dominado pela verborréia. Ainda era possível ver o uso de Nokias como uma ostentação ou afetação de ricos. Ou, sob uma óptica mais tolerante, como um mal, uma deficiência ou uma muleta.
Afinal, na Nova York do final dos anos 1990, a transmissão de cultura da nicotina para cultura do celular ainda estava em processo. Num dia o volume no bolso da camisa era um maço de Marlboro; no dia seguinte, era um Motorola.
Um dia a garota bonita, vulnerável por estar desacompanhada, estava ocupando suas mãos, sua boca e sua atenção com um cigarro; no dia seguinte, ocupava-o com uma conversa muito importante com uma pessoa que não era você.
Num dia uma multidão se reunia em torno do primeiro adolescente no playground a carregar um maço de cigarros; no dia seguinte, se reunia em volta do primeiro a ostentar uma tela colorida.
Num dia, os viajantes acendiam seus isqueiros assim que desciam do avião; no dia seguinte, estavam discando números em seus celulares.
Dependências de um maço de cigarros por dia viraram contas mensais de US$ 100. A poluição por fumaça virou poluição sonora.
E, apesar de o fator irritante ter mudado da noite para o dia, o sofrimento imposto a uma maioria contida por uma minoria compulsiva, em restaurantes, aeroportos e outros espaços públicos, continuou a ser uma constante estranha.
Em 1998, pouco depois de abandonar o cigarro, eu ficava sentado no metrô, observando outros passageiros abrirem e fecharem seus celulares, nervosos, ou mastigarem as antenas (que lembravam tetas e que todos os telefones tinham à época) ou então simplesmente segurarem firme seus telefones, como se estivessem agarrando as mãos de suas mães, e sentia algo como compaixão por eles.

Sem resistência
Ainda me parecia ser questionável até onde iria a tendência: se Nova York queria realmente virar uma cidade de viciados em telefone, perambulando pelas ruas como sonâmbulos, envoltos em pequenas nuvens pegajosas de vida privada, ou se a noção de um eu público mais contido conseguiria prevalecer.
É desnecessário dizer que não houve disputa nenhuma. O celular não foi uma daquelas novidades modernas, como o Ritalin [nome comercial do metilfenidato] ou os guarda-chuvas extragrandes. Seu triunfo foi rápido e total.
Seus abusos foram lamentados e criticados em ensaios, colunas e cartas a editores diversos e, então, lamentados e criticados com ainda mais contundência quando os abusos pareceram apenas se intensificar, mas foi só isso.
As queixas foram registradas, foram feitos alguns ajustes simbólicos (o "vagão silencioso" nos trens Amtrak, plaquinhas discretas pedindo contenção no uso do celular em restaurantes e academias) e a tecnologia do celular ficou livre para continuar a provocar seus danos sem medo de ser alvo de mais críticas, porque novas críticas seriam antiquadas e nada "cool", vovô.
Mas o simples fato de o problema já ser familiar não significa que o vapor metafórico deixe de sair dos ouvidos de motoristas presos atrás de um sujeito que dirige na pista da esquerda, batendo papo ao telefone enquanto se mantém paralelo ao veículo que está na pista mais lenta.
Apesar disso, tudo em nossa cultura comercial diz ao motorista tagarela que ele está com a razão e assinala a todos os outros que estamos errados -que estamos deixando de entrar na onda do programa barato de liberdade, mobilidade e minutos ilimitados.
A cultura comercial nos diz que, se estamos irritados com o motorista tagarela, deve ser porque não estamos nos divertindo tanto quanto ele.
O que há de errado conosco, afinal? Por que não podemos abrir um sorriso e tirar do bolso nossos próprios telefones, com nossos próprios planos de ligações mais baratas para familiares e amigos e começar a nos divertir mais ali mesmo, na pista de rolamento?
As pessoas socialmente retardadas não começam a agir de modo mais adulto de repente, quando os críticos sociais são forçados a silenciar devido à pressão de seus pares. Ficam mais mal-educadas, só isso.

Fila do caixa
Uma praga nacional de hoje que só vem se agravando é a do cliente que continua absorto num telefonema enquanto efetua uma compra em um caixa de um supermercado ou em uma loja.
A combinação típica em meu bairro, em Manhattan, envolve uma jovem branca, recém-graduada de alguma escola cara, e uma mulher local, negra ou hispânica, de aproximadamente a mesma idade, mas que teve menos vantagens na vida.
É claro que é uma vaidade liberal esperar que a caixa interaja com você ou aprecie as exigências de seu trabalho; ela é autorizada a tratá-lo com tédio ou indiferença; na pior das hipóteses, é uma atitude pouco profissional da parte dela.
Mas isso não alivia você de sua própria obrigação moral de reconhecer a existência dela como pessoa.
E, embora seja verdade que algumas caixas e balconistas pareçam não se incomodar em serem ignoradas, uma porcentagem notavelmente maior delas se irrita, se aborrece ou se entristece visivelmente quando uma cliente se mostra incapaz de afastar-se do celular para lhe dedicar pelo menos dois segundos de interação direta.
Desnecessário dizer que a própria infratora, como o motorista tagarela na rodovia, ignora alegremente o fato de estar irritando alguém.
E, em minha experiência, quanto mais longa a fila que se forma atrás dela, maior é a probabilidade de ela pagar sua compra de US$ 1,98 com cartão de crédito.
Existe, é claro, uma conseqüência social positiva do agravamento desses maus comportamentos. A noção abstrata de espaços públicos civilizados como recursos raros que merecem ser defendidos pode estar praticamente morta, mas ainda é possível encontrar consolo nas comunidades momentâneas e pontuais de sofredores criadas por esses maus comportamentos.
Olhar pela janela de seu carro e ver o vapor metafórico saindo dos ouvidos de outro motorista ou encontrar o olhar da caixa irritada do supermercado e acenar a cabeça, solidarizando-se com ele -essas coisas fazem a gente sentir-se menos só.
É por essa razão que, de todas as variedades cada vez piores de mau comportamento ao celular, aquela que mais profundamente me irrita é a que, pelo fato de não fazer vítimas evidentes, aparentemente não irrita a mais ninguém.
Refiro-me ao hábito -incomum há dez anos, mas hoje onipresente- de encerrar conversas ao celular gritando "amo você!". Ou, ainda mais opressivo e exasperador, "eu te amo!". Isso faz sentir vontade de me mudar para a China, onde não entendo a língua que as pessoas falam. Me dá vontade de gritar.

Imposição pessoal
O componente celular de minha irritação é simples e direto.
Simplesmente não quero -enquanto estou comprando meias na Gap ou na fila para comprar um ingresso e me ocupando com meus pensamentos pessoais ou tentando ler um romance num avião quando o embarque ainda não foi encerrado- ser arrastado em minha imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo.
A própria essência do que é tão desagradável no celular como fenômeno social é que ele possibilita e incentiva o ato de impor o pessoal e individual ao público e comunal.
E não existe declaração de mais alto calibre que "eu te amo" -não há nada pior que um indivíduo possa impor a um espaço público comum. Mesmo "vá à merda, imbecil!" é menos invasivo, na medida em que é o tipo de coisa que pessoas iradas às vezes gritam em público e que pode igualmente bem ser dirigido a um estranho.
Minha amiga Elisabeth me assegura que a nova praga nacional do "amo você" é uma coisa boa -uma reação saudável contra a dinâmica familiar reprimida de nossas infâncias protestantes de algumas décadas atrás.
O que pode haver de errado, diz Elisabeth, em você dizer a sua mãe que a ama ou ouvir dela que o ama? E se um de vocês dois morrer antes que vocês possam voltar a se falar? Não é bom que possamos nos dizer essas coisas com tanta liberdade hoje em dia?
Vou admitir a possibilidade de que, comparado a todas as outras pessoas no aeroporto, eu seja uma pessoa extraordinariamente fria e pouco amorosa; que a sensação repentina e avassaladora de amar alguém (um amigo, cônjuge, pai, mãe ou irmão) -que para mim é uma sensação tão importante e única que faço questão de não desgastar pelo uso a frase que melhor a expressa- é para outras pessoas tão comum e corriqueira que pode ser revivida e reexpressa muitas vezes em um único dia sem perda significativa de seu poder.
Entretanto, também é possível que a repetição habitual e excessivamente freqüente esvazie frases de seu significado.
[A cantora canadense] Joni Mitchell, em "Both Sides Now", falou do espanto solene de poder dizer "eu te amo" "em voz alta": de dar à luz vocalmente uma intensidade tão grande de sentimento. Stevie Wonder, em letra escrita 17 anos depois, canta sobre telefonar a alguém numa tarde qualquer simplesmente para dizer "eu te amo".

Confirmação
E, pelo fato de ser Stevie Wonder (que provavelmente, de fato, é uma pessoa mais amorosa que eu), mais ou menos consegue me fazer acreditar em sua sinceridade -pelo menos até o último verso do refrão, em que acha necessário acrescentar: "E digo isso do fundo do meu coração".
Nenhuma confirmação desse tipo seria cogitada por alguém que realmente dissesse algo do fundo de seu coração.
E assim, quando estou comprando minhas meias na Gap e a mãe que está na fila atrás de mim berra "eu te amo!" em seu pequeno telefone, não posso deixar de sentir que algo está sendo representado, sobre-representado, representado publicamente, imposto em tom desafiador.
Sim, muitas coisas domésticas são gritadas em público que não se destinam realmente ao consumo público; sim, as pessoas se deixam levar. Mas a frase "eu te amo" é demasiado importante e carregada, e seu uso como despedida é demasiado consciente para que eu possa acreditar que estou sendo forçado a ouvi-la por acaso.
Se a declaração de amor da mãe tivesse peso genuíno, reservadamente emocional, ela não tomaria pelo menos um pouco de cuidado para protegê-la de ser ouvida publicamente?
Se estivesse de fato falando a sério, do fundo de seu coração, não seria obrigada a dizê-lo em voz baixa? Sendo um estranho que a ouve dizê-la por acaso, tenho a sensação de ser convertido em participante de uma afirmação agressiva de direitos.
Ou será que eu, em minha irritação, que, admito, já começa a soar lunática, estou simplesmente projetando tudo isso?
O telefone celular chegou à maioridade em 11 de setembro de 2001. Ficou gravada em nossa consciência coletiva naquele dia a imagem de celulares como canais de expressão de intimidade pelos desesperados.
Em cada "eu te amo" dito em voz demasiado alta hoje em dia, assim como na orgia nacional mais generalizada de conectividade -o imperativo de pais e filhos se comunicarem pelo telefone uma, duas, cinco ou dez vezes por dia-, é difícil não ouvir um eco daqueles "eu te amos" terríveis, dolorosos, de partir o coração, inteiramente apropriados, ditos nos quatro aviões e naquelas duas torres fadados à destruição. E é precisamente esse eco, o fato de ser um eco, o sentimentalismo dele, que tanto me irrita.

As duas torres
Minha própria experiência do 11 de Setembro foi anômala devido à ausência de televisão. Às 9h recebi um telefonema do editor de meus livros, que, da janela de seu escritório, acabara de ver o segundo avião chocar-se com as torres.
Fui imediatamente à TV mais próxima, na sala de conferências da imobiliária situada no térreo de meu edifício e, ao lado de um grupo de corretores, assisti à queda de primeiro uma das torres e depois da outra.
Mas, então, minha namorada voltou para casa e passamos o resto do dia ouvindo o rádio, acompanhando os fatos pela web, tranqüilizando nossas famílias e assistindo da cobertura de nosso prédio e do meio da avenida Lexington (que ficou repleta de pedestres), enquanto a poeira e a fumaça da parte baixa de Manhattan se espalharam, formando uma nuvem nauseante que cobriu tudo.
À noite, percorremos a rua 42, encontramos um amigo que mora fora da cidade e descobrimos um restaurante italiano na rua 40 que estava servindo jantar. As mesas estavam cheias de pessoas bebendo muito; o clima era de tempos de guerra.
Sentados num trem da estação Grand Central, esperando que partisse, observamos um passageiro nova-iorquino queixando-se com um cobrador, irado, sobre a falta dos trens expressos para o Bronx.
Três noites depois, das 23h até quase 3h, fiquei sentado numa sala gélida da ABC News, de onde podia ver o também nova-iorquino David Halberstam e falar por vídeo com Maya Angelou e alguns outros escritores de fora da cidade, enquanto aguardávamos para dar a Ted Koppel [então âncora no canal] uma perspectiva literária dos ataques da manhã da terça.
A espera não foi curta. Imagens dos ataques e cenas da queda das torres e dos incêndios subseqüentes foram exibidas repetidas vezes, intercaladas com longos segmentos sobre o preço emocional cobrado dos cidadãos comuns e de seus filhos impressionáveis.
De quando em quando, um ou dois de nós, escritores, tínhamos 60 segundos nos quais dizer algo em tom próprio de escritor, antes de a cobertura voltar a mostrar mais carnificina e entrevistas arrasadoras com amigos e familiares dos mortos e desaparecidos.

O não visto
Falei quatro vezes em três horas e meia. Na segunda vez, pediram-me para confirmar relatos segundo os quais os ataques da terça-feira teriam modificado profundamente a personalidade dos nova-iorquinos. Não pude confirmar os relatos.
Disse que as expressões que vi nos rostos das pessoas eram sombrias, não enfurecidas, e contei que vi pessoas fazendo compras nas lojas de meu bairro na tarde da quarta-feira, comprando roupas de outono.
Em sua resposta, Ted Koppel deixou claro que eu falhara na tarefa que passara metade da noite esperando para desempenhar. Franzindo o cenho, disse que sua própria impressão era muito diferente: que os ataques haviam de fato mudado profundamente a personalidade de Nova York.
Naturalmente, achei que estava falando a verdade e presumi que Koppel estivesse apenas retransmitindo opiniões recebidas de outros. Mas Koppel estivera assistindo à TV, e eu não.
Eu não entendera que o pior dano ao país estava sendo feito não pelo patógeno, mas pela maciça reação contrária exagerada do sistema imunológico, porque eu não tinha TV.
Eu estivera comparando mentalmente a contagem de mortos da terça-feira com outras contagens de mortes violentas -3.000 americanos mortos em acidentes de trânsito nos 30 dias que precederam o 11 de Setembro- porque, não tendo visto as imagens, eu pensara que os números eram importantes.
Eu dedicara energia a imaginar, ou resistir a imaginar, o horror de estar sentado ao lado da janela enquanto o avião em que você voava descia sobre a rodovia West Side, ou de estar preso no 95º andar e ouvir a estrutura de aço abaixo de você começar a gemer e ruir, enquanto o resto do país vivia o trauma real, em tempo real, assistindo às mesmas imagens inúmeras vezes repetidas.
Assim, eu não precisei da sessão televisionada nacional de terapia de grupo, a enorme "maratona de abraços" tecnológica que aconteceu nos dias, semanas e meses seguintes em resposta ao trauma da exposição às imagens televisionadas.
O que pude observar foi a repentina, misteriosa e desastrosa sentimentalização do discurso público americano.
E, assim como não posso deixar de colocar a culpa na tecnologia celular quando as pessoas despejam afeto parental ou filial em seus telefones e descortesia sobre todos os estranhos ao alcance de suas vozes, não posso deixar de colocar sobre a tecnologia da mídia a culpa do processo nacional de priorização do pessoal.
Diferentemente de 1941, por exemplo, quando os EUA responderam a um ataque terrível [em Pearl Harbor] com determinação, disciplina e sacrifício coletivos, em 2001 tivemos visuais fantásticos.

Trauma exposto
Tínhamos imagens amadoras e pudemos decompô-las quadro a quadro.
Tínhamos telas com as quais pudemos levar a violência nua e crua para dentro de todos os quartos do país; tínhamos gravações de secretárias eletrônicas que deixaram registrados os telefonemas derradeiros e desesperados dos fadados a morrer; tínhamos psicologia de último tipo para explicar e sanar nosso trauma.
Mas, com relação ao que os ataques realmente significaram e a qual poderia ser uma reação sensata, as atitudes variaram. Esta é a coisa fantástica da tecnologia digital: acabou-se a censura dolorosa dos sentimentos de todo o mundo! Todos têm o direito de expressar suas opiniões!
Assim, a questão de se Saddam Hussein tinha ou não comprado pessoalmente as passagens aéreas dos seqüestradores continuou aberta a discussões acaloradas.
O que foi consenso geral, em lugar disso, foi que os familiares das vítimas do 11 de Setembro tinham o direito de aprovar ou vetar os planos para o memorial a ser erguido no Ponto Zero [onde ficavam as Torres Gêmeas].
E todo mundo pôde compartilhar a dor vivida pelas famílias dos policiais e bombeiros que tombaram. E todos concordaram que a ironia morrera. Depois do 11 de Setembro, a ironia vazia e maléfica dos anos 1990 simplesmente "não era mais possível"; tínhamos ingressado numa nova era da sinceridade.
O lado positivo disso é que os americanos, em 2001, passaram a dizer "eu te amo" a seus filhos com muito mais facilidade do que o haviam feito seus pais ou avós. Mas e no quesito da competição econômica? No esforço conjunto como nação? Em derrotar nossos inimigos? Em formar alianças internacionais fortes? Nesses quesitos, o balanço talvez pese um pouco para o negativo. Meus pais se conheceram dois anos depois de Pearl Harbor, no outono de 1943, e poucos meses depois já estavam trocando cartões e cartas.
Meu pai trabalhava para a ferrovia Grand Northern e com freqüência estava na estrada, em cidadezinhas pequenas, inspecionando pontes, enquanto minha mãe permanecia em Minneapolis, trabalhando como recepcionista. Das cartas dele a ela que tenho em minha posse, a mais antiga é do Dia dos Namorados em 1944. Ele estava em Fairview (Montana) e minha mãe lhe enviara um cartão de Dia dos Namorados no mesmo estilo de todos os seus cartões no ano que antecedeu o casamento deles: desenhos de bebês, criancinhas ou filhotes de animais expressando sentimentos doces.

Correspondência
A parte dianteira do cartão (que meu pai também guardou) mostra uma menininha de maria-chiquinha e um menininho corado, cada um olhando para um lado, envergonhados, e com as mãos às costas. "Queria ser uma pedrinha,/ Porque assim, quando ficar velhinha/ Talvez me veja dengosa/ E um pouco mais "corrachosa"." A resposta de meu pai traz o carimbo postal de Fairview de 14 de fevereiro e diz: "Terça-feira à noite.
Querida Irene, Sinto muito tê-la decepcionado no Dia dos Namorados; eu me lembrei, sim, mas, não tendo conseguido um cartão na farmácia, me senti um pouco tolo pedindo um na mercearia ou na loja de ferragens. Estou certo de que as pessoas aqui já ouviram falar do Dia dos Namorados.
Seu cartão correspondeu perfeitamente à situação aqui, e não sei se foi intencional ou acidental, mas acho que devo, sim, ter lhe falado de nossos problemas com as rochas. Hoje ficamos sem pedras para trabalhar, então meu desejo é de pedras pequenas, pedras grandes ou qualquer outro tipo de pedra, já que não há nada a fazer enquanto não conseguirmos pedras.
Já há pouco para eu fazer quando o empreiteiro está trabalhando, e agora não há absolutamente nada. Hoje caminhei até a ponte em que estamos trabalhando, apenas para matar tempo e fazer um pouco de exercício; é uma distância de seis quilômetros, longe o suficiente, com um vento forte me fustigando. Se não conseguirmos pedras pela manhã, ficarei sentado aqui mesmo, lendo filosofia; não me parece correto que eu seja pago por passar meu dia dessa maneira.
Mais ou menos o único outro passatempo que existe por aqui é ficar sentado no saguão do hotel ouvindo as fofocas da cidade, e os velhos que freqüentam o lugar não medem as palavras. Você acharia divertido, porque há uma amostra ampla da vida humana representada aqui, desde o médico local até o bêbado da cidade. E este último é provavelmente o mais interessante: ouvi dizer que ele chegou a lecionar na Universidade de N.D. no passado, e realmente parece ser uma pessoa bastante inteligente, mesmo quando está bêbado.
Normalmente as conversas são bastante grosseiras, mais ou menos como as que Steinbeck [escritor norte-americano, autor de "As Vinhas da Ira'] deve ter usado como ponto de partida, mas nesta noite entrou no saguão uma mulher muito grande que se colocou totalmente à vontade. Isso me faz perceber como é protegida a vida que vivemos, nós, moradores da cidade grande. Cresci numa cidade pequena e me sinto à vontade aqui, mas hoje parece que vejo as coisas sob uma óptica diferente. Escreverei mais sobre isso.
Espero estar de volta a St. Paul no sábado à noite, mas ainda não sei ao certo. Telefonarei a você quando voltar. Com todo meu amor Earl" Meu pai completara 29 anos pouco antes disso. É impossível saber como minha mãe, em sua inocência e em seu otimismo, recebeu a carta dele na época, mas, de modo geral, considerando a mulher que eu cresci conhecendo, posso afirmar que essa não era em absoluto a espécie de carta que ela teria gostado de receber de seu par romântico.
O trocadilho bonitinho de seu cartão de Dia dos Namorados interpretado literalmente como referência a lastro de ferrovia? E ela, que passara a vida inteira procurando distanciar-se do bar de hotel em que seu pai trabalhara como barman, poderia divertir-se ouvindo a "conversa grosseira" do bêbado da cidade? Onde estavam as expressões de ternura? As palavras sonhadoras de amor? Era evidente que meu pai ainda tinha muito a aprender sobre ela.
A mim, entretanto, a carta dele parece repleta de amor. Amor por minha mãe, com certeza; tentou encontrar um cartão de Dia dos Namorados para ela, leu sua carta com cuidado, deseja que estivesse a seu lado, tem idéias que quer dividir com ela, está lhe enviando todo seu amor e diz que lhe telefonará assim que retornar.
Mas também amor pelo mundo mais amplo: pelos diversos tipos de pessoas que o habitam, pelas cidades pequenas e grandes, por filosofia e literatura, pelo trabalho duro e o pagamento justo, pela conversa, pela reflexão, por longas caminhadas ao vento, por palavras escolhidas com cuidado e ortografia perfeita. A carta me lembra das muitas coisas que eu amava em meu pai -sua decência, sua inteligência, seu humor inesperado, sua curiosidade, sua probidade, sua reserva e dignidade.
Apenas quando a coloco ao lado do cartão de Dia dos Namorados de minha mãe, com suas criancinhas de olhos grandes e sua preocupação com o puro sentimento, é que minha atenção se volta às décadas de desapontamento mútuo que se seguiram aos primeiros anos de felicidade quase cega deles. Mais tarde, minha mãe se queixaria comigo, dizendo que meu pai nunca lhe dissera que a amava. E talvez seja verdade, literalmente, que ele nunca proferiu as três palavras grandes -eu, com certeza, nunca o ouvi fazendo isso.
Mas não é verdade, definitivamente, que nunca escreveu as palavras.

O não dito
Uma razão pela qual levei anos para criar coragem de ler a correspondência antiga que trocaram é que a primeira carta de meu pai que li, após a morte de minha mãe, começava com uma expressão de carinho ("Irenie") que eu nunca o ouvi pronunciar nos 35 anos durante os quais o conheci e terminava com uma declaração ("eu te amo, Irene") que era mais do que eu pude suportar ver. Não soava nada como ele, e por isso guardei todas as cartas num baú no sótão da casa de meu irmão.
Recentemente, quando as recuperei e consegui lê-las, descobri que meu pai de fato declarou seu amor dúzias de vezes, usando as três palavras grandes, tanto antes quanto depois de casar-se com minha mãe. Mas é possível que, mesmo naquela época, tenha sido incapaz de pronunciar as palavras em voz alta e talvez tenha sido por isso que, na memória de minha mãe, ele nunca as "dissera". Também é possível que suas declarações escritas tenham soado tão estranhas a sua personalidade nos anos 1940 como soam a mim, hoje, e que minha mãe, em suas queixas, se recordasse de uma verdade mais profunda oculta sob as palavras aparentemente afetuosas dele. "Both Sides Now", na versão de Judy Collins, foi a primeira canção pop a ficar gravada em minha cabeça.
Era tocada constantemente no rádio quando eu tinha oito ou nove anos, e sua referência a declarar seu amor "em alto e bom som", somada à paixonite que eu nutria por sua voz, ajudou a fazer com que, para mim, o sentido primeiro de "eu te amo" fosse sexual.
Acabei vivendo os anos 1970 e me tornando capaz de, em raros acessos de emoção, dizer a meus irmãos e melhores amigos homens que os amava. Mas, durante todo o ensino fundamental, essas palavras tiveram um sentido para mim, e um sentido apenas. "Eu te amo" era o que eu queria ver rabiscado num bilhetinho da garota mais bonita da classe ou ouvir sussurrado nos bosques no piquenique da escola. Naqueles anos, aconteceu apenas duas vezes de uma garota de que eu gostasse de fato me dizer ou escrever isso. Mas, quando aconteceu, foi uma injeção de pura adrenalina.
Mesmo depois de ir à faculdade e começar a ler [o poeta] Wallace Stevens, descobrindo-o zombando, em "Le Monocle de Mon Oncle", de pessoas como eu, que procuravam o amor indiscriminadamente -"Se o sexo fosse tudo, então cada mão trêmula/ seria capaz de nos fazer gemer, como bonecos, as palavras tão ansiadas"-, aquelas palavras tão ansiadas continuaram a evocar o abrir de uma boca, a oferta de um corpo, a promessa de intimidade inebriante. Assim, era muito constrangedor pra mim que a pessoa de quem eu ouvia essas palavras constantemente fosse minha própria mãe.
Era a única mulher em uma casa de homens e vivia com um excesso tão grande de sentimentos sem reciprocidade que não podia deixar de buscar expressões românticas.
Eu também As cartas e as palavras de ternura que derramava sobre mim eram idênticas em espírito às que derramara sobre meu pai no passado. Muito tempo antes de eu nascer, meu pai já passara a enxergar suas expressões de sentimento como insuportavelmente infantis. Sobrevivi a muitos períodos de minha infância, as longas semanas durante as quais nós dois estávamos sozinhos em casa, me agarrando a distinções cruciais de intensidade entre as frases "eu te amo", "também te amo" e "amo você".
O crucial era nunca, jamais dizer "eu te amo" ou "eu te amo, mamãe". A alternativa menos difícil era um "te amo" resmungado, quase inaudível. Mas "também te amo", se pronunciado com rapidez suficiente e com ênfase suficiente no "também", que deixava subentendida uma reciprocidade obrigatória, garantiu minha passagem por muitos momentos de constrangimento. Não me recordo se ela me repreendeu especificamente por eu resmungar ou me deu bronca quando (como às vezes acontecia) eu era incapaz de responder com qualquer coisa senão um grunhido evasivo.
Mas tampouco me disse, em momento nenhum, que dizer "eu te amo" era simplesmente algo que gostava de fazer porque seu coração estava cheio de sentimento e que eu não deveria me sentir obrigado a dizer "eu te amo" de volta a cada vez. E assim, até hoje, quando sou agredido por alguém gritando "eu te amo" no celular, ouço como coerção. Meu pai, apesar de escrever cartas repletas de vida e curiosidade, não viu nada de errado em relegar minha mãe a quatro décadas encerrada em casa, cozinhando e fazendo a faxina, enquanto curtia seu trabalho lá fora, no mundo dos homens.
Parece ser a regra, tanto no mundinho pequeno do casamento quanto no grande mundo da vida americana, que aqueles que não têm vida ativa no trabalho têm sentimentalismo -e vice-versa. As várias histerias do pós-11 de Setembro, tanto a praga dos "eu te amos" quanto os amplamente disseminados medo e ódio dos "cabeças de turbante", foram histerias daqueles que não tinham poder, que se sentiam dominados. Se minha mãe tivesse desfrutado de mais possibilidades de auto-realização, talvez tivesse medido seus sentimentos de modo mais realista, adequando-os a seus objetos.

Respeito ao público
Por mais frio, reprimido ou sexista que meu pai possa parecer, pelos padrões contemporâneos, eu me sinto grato pelo fato de nunca ter me declarado abertamente que me amava. Meu pai amava a privacidade -ou seja, respeitava a esfera pública. Acreditava na contenção, no protocolo, na razão, porque, sem eles -acreditava- , seria impossível uma sociedade debater e tomar as decisões que melhor atendessem a seus interesses.
Talvez tivesse sido agradável, especialmente para mim, se ele tivesse aprendido a demonstrar mais seus sentimentos por minha mãe. Mas cada vez que ouço hoje em dia um daqueles "eu te amos" parentais berrados ao celular, me sinto um homem de sorte por ter tido o pai que tive. Ele amava seus filhos mais do que tudo.
E saber que ele sentia isso, mas não sabia declará-lo; saber que ele podia confiar que eu sabia disso e não esperava que ele o declarasse -esse era o próprio núcleo central do amor que eu sentia por ele. Amor esse que eu, por minha vez, tomei o cuidado de nunca declarar em voz alta a ele. Mas essa foi a parte fácil. Entre mim e a situação em que meu pai está agora -ou seja, morto-, nada pode ser transmitido, exceto o silêncio. Ninguém tem mais privacidade que os mortos.
Hoje meu pai e eu não nos dizemos muito menos do que nos dissemos em muitos dos anos em que ele viveu. A pessoa de quem eu me descubro sentindo saudades -discutindo mentalmente com ela, querendo mostrar coisas a ela, querendo que viesse conhecer meu apartamento, zombando dela, sentindo remorsos em relação a ela- é minha mãe. A parte de mim que se irrita com as intromissões dos celulares vem de meu pai. A parte de mim que ama meu BlackBerry e quer ficar mais leve e fazer parte do mundo vem de minha mãe. Era a mais moderna dos dois e, embora ele -e não ela- fosse a pessoa que trabalhava fora, ela acabou do lado vencedor.
Se ainda estivesse viva e vivendo em St. Louis e se você, por acaso, estivesse sentado ao meu lado no aeroporto, aguardando um vôo para Nova York, talvez fosse exposto à provação de me ouvir dizendo a ela que a amava.
Mas eu falaria em voz baixa.

JONATHAN FRANZEN é romancista norte-americano, autor de "As Correções" (Cia. das Letras), entre outros livros. A íntegra deste texto saiu na revista "Technology Review".
Tradução de Clara Allain.