domingo, maio 11, 2008
Mulheres e seus direitos: ser ou não ser mãe
Mulheres e os direitos à existência
MIGUEL SROUGI
A sociedade tem a obrigação de participar, exigindo dos governantes compromisso inegociável com a defesa dos direitos da mulher
HÁ UM ano, neste espaço e nesta data, decidi homenagear as mulheres. Na ocasião, procurei mostrar que elas têm um papel insubstituível na superação da miséria e na construção de sociedades mais justas. Terminei dirigindo um olhar de gratidão a todas as mulheres e a minha mãe Ivone. Hoje, volto a falar delas, mas, diferentemente da outra vez, quero homenagear todas as Ivones do mundo neste início de texto -temo que, no final, minhas aflições me impeçam de fazê-lo com ternura.
Fiquei desconcertado com as novas leituras. Segundo a OMS, são realizados a cada ano cerca de 50 milhões de abortos no mundo, 19 milhões dos quais de forma clandestina e insegura. No Brasil, de acordo com dados do Ipas e da Uerj, são efetuados cerca de 1,1 milhão de abortos anualmente, 75% deles induzidos voluntariamente e executados de maneira insegura.
O desconforto aumentou quando descobri que, em 2005, 230 mil mulheres foram internadas em hospitais da rede pública devido a complicações do aborto. Em decorrência, talvez tenham morrido cerca de 11 mil brasileiras. Quase todas pertencentes às classes mais desassistidas, muitas nos primórdios da sua existência, todas elas vítimas da desigualdade de gênero e da discriminação que prevalecem na nossa sociedade.
O significado das estatísticas fica mais incômodo se forem lembrados alguns números. Se às brasileiras fosse dado o direito e o fácil acesso ao aborto seguro, morreriam menos de mil mulheres ao ano. Ainda muito quando falamos de vidas, mas menos indecente que 11 mil. E seriam economizadas somas significativas de recursos despendidos no tratamento das complicações do aborto inseguro.
A dimensão material desse problema pode ser compreendida por dados das Nações Unidas. Para cada dólar aplicado em planejamento familiar e saúde da mulher, são poupados entre 16 e 31 dólares gastos com as complicações decorrentes do aborto. E, num olhar mais humano, centenas de milhares de mulheres seriam poupadas das seqüelas do procedimento clandestino, como agravos psicológicos e sexuais irremediáveis, esterilidade definitiva, lesões genitais mutilantes ou infecções crônicas debilitantes.
Mesmo ciente das minhas carências para debater as questões filosóficas, éticas e religiosas que circundam o aborto, como médico e cidadão não consigo me calar diante de um problema que afronta a dignidade, impõe sofrimentos e pode tolher a existência de seres humanos.
O aborto sempre se misturará com a história da humanidade e nunca poderá ser inteiramente abolido. Sempre existirão as gestações indesejadas, ilegítimas, arriscadas ou inviáveis. Por isso, o esforço de todos os protagonistas desse enredo, governos e sociedade, deveria ser orientado no sentido de impedir que ele se torne necessário e de forjar condições para que as tragédias decorrentes possam ser sanadas com eficiência e rapidez.
Como fazer isso? Os governos, deixando de dirigir ao problema apenas olhares fugazes. Agindo com vontade sincera e coragem para promover o debate, descriminalizando ou não o aborto, de acordo com os anseios da sociedade. Não menos importante, promovendo a criação e a disseminação de programas sobre planejamento familiar, a inserção do ensino sobre saúde sexual e reprodutora nos currículos escolares, o acesso fácil e continuado aos métodos de contracepção e estabelecendo rede qualificada de atenção médica de emergência para mulheres no pós-aborto. Finalmente, concedendo às mulheres os mesmos direitos desfrutados pelos homens no trabalho, na propriedade, na política.
Para ter uma idéia do impacto dessas ações, vale lembrar a experiência vivida pelos romenos. No período do ditador Ceausescu e de leis extremamente restritivas, morriam por complicações do aborto 148 mulheres para cada 100.000 nascimentos vivos. Com a liberação do regime, maior respeito aos direitos humanos e legalização do aborto, o número de óbitos caiu para 9 em 100.000, com redução proporcional no número de mulheres injuriadas pelo processo.
A sociedade tem a obrigação de se inserir nesse concerto, exigindo dos governantes um compromisso inegociável com a defesa dos direitos da mulher e da condição humana. E tem que aceitar uma nova construção social em que a mulher não seja vista como mero instrumento de perpetuação da espécie. Mais que isso, permitindo que ela participe das decisões maiores que afetam seus destinos.
Termino enfatizando que, ao contrário do que o texto possa sugerir, não tenho convicção formada sobre a pertinência da legalização do aborto.
Ausência de convicção não só pelas minhas insuficiências, mas também porque às vezes me custa aceitar que um pequeno ser, como eu já fui, tenha o curso de sua existência tolhido nos seus primórdios. Realidade que talvez Riobaldo, o jagunço filósofo de Guimarães Rosa, tenha tentado descortinar: "Viver é um descuido prosseguido". O que deve valer tanto para uma mulher como para um pequeno ser.
MIGUEL SROUGI , 61, médico, pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.
Da Folha em 11 de maio de 2008
quinta-feira, maio 08, 2008
Conanda se posiciona contra depoimento do irmão de Isabella Nardoni
Imagem de uma criança daqui do Google, não é o irmão de Isabela
Conanda se posiciona contra depoimento do irmão de Isabella Nardoni
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) protocolou hoje (08/05), no Fórum de Santana – em São Paulo (SP) – ofício com a posição do Conselho sobre a possibilidade de Pietro (3 anos), irmão de Isabella Nardoni, ser arrolado como testemunha do caso.
O Conanda não recomenda a inquirição da criança por razões como o fato de o denominado "depoimento sem dano" ainda não ter sido implementado em São Paulo (e no Rio Grande do Sul, onde já existe, funciona apenas para vítimas e não para testemunhas); de o artigo 206 do Código de Processo Penal desobrigar pais, mães, filhos e cônjuges de depor; de o artigo 208 do mesmo Código prever que a testemunha com menos de 14 anos não presta compromisso, estando, portanto, desobrigada a depor; e do processo traumático já vivenciado pela criança que pode ser agravado com o depoimento e com a exposição que este ato poderá acarretar.
No documento, o Conselho ressalta seu respeito às competências e atribuições do Ministério Público e do Poder Judiciário, bem como suas características de imparcialidade e discricionariedade, razão pela qual apresenta seu posicionamento e recomendação.
Informações:
Ariel de Castro – Conselheiro do Conanda
Tel: (11) 9127-5341
Maria Luiza Moura Oliveira – Presidente do Conanda
Tel: (61) 9249-8836 / (62) 3227-1717 / 3207-4145
Abaixo, a íntegra da nota:
NOTA PÚBLICA
Posicionamento do Conanda sobre a participação de criança de 3 (três) anos como testemunha em processo criminal do Tribunal do Júri
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), principal órgão do Sistema de Garantias dos Direitos da Infância e Adolescência do País, vem manifestar sua preocupação e posicionar-se de forma contrária à participação de criança em processo criminal perante o Tribunal do Júri prestando depoimento na condição de testemunha.
Os casos de violência contra crianças e adolescentes não são isolados. Eles ocorrem com significativa freqüência na sociedade brasileira e precisam ser enfrentados de forma exemplar e prioritária, no âmbito preventivo e punitivo. Essa, certamente, é a principal preocupação do Conanda.
Entendemos que os casos de violência precisam ser noticiados visando prevenir outras ocorrências e enfrentar a impunidade. Nesse sentido, os meios de comunicação exercem um papel nobre e relevante. Porém, alguns excessos de comunicação, com forte carga de apelo emocional, também constroem caminhos que podem levar a situações de excessiva exposição e conseqüente desproteção da criança e/ou do adolescente, que já se encontra bastante vulnerável.
Diante deste contexto, o Conselho identifica que no caso do assassinato da menina Isabella, de 5 anos, morta ao ser asfixiada e em seguida atirada do 6º (sexto) andar do prédio, supostamente por seu próprio pai e pela madrasta, nos alerta sobre os riscos com relação à tomada do depoimento do irmão de apenas 3 anos, como testemunha, tendo em vista a conclusão da polícia que o menino teria presenciado todos os fatos. Tal situação aventa a possibilidade desta criança testemunhar no processo criminal da morte da irmã, onde os acusados são seus próprios pais.
O Conanda não recomenda a inquirição da criança como testemunha no caso citado pelas seguintes razões:
1) O denominado "depoimento sem dano" ainda não foi implementado no Estado de São Paulo. No Estado do Rio Grande do Sul, onde foi implementado, são ouvidas "vítimas" e não "testemunhas";
2) O artigo 206 do Código de Processo Penal prevê que pais, mães, filhos e cônjuges podem se eximir da obrigação de depor. Nesse caso, a criança de 3 anos não tem como manifestar sua vontade real e inequívoca de depor ou não depor;
3) O artigo 208 do Código de Processo Penal também prevê que a testemunha de menos de 14 anos não presta compromisso, portanto também não é obrigada a depor. Dessa forma, o depoimento, mesmo que ocorresse, teria um valor relativo;
4) O artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) dispõe que "é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor". Certamente, a inquirição de qualquer criança acarretaria conseqüências para seu desenvolvimento psíquico, independentemente da forma utilizada. Em um caso complexo e de tanta repercussão, onde todas as informações são exaustivamente tornadas públicas imediatamente, certamente geraria grande constrangimento para uma criança de três anos. Eis que além de ter sua imagem e privacidade extremamente devassadas, acentuaria as dificuldades de convivência familiar e comunitária. Além disso, avaliamos as dimensões e repercussões emocionais ao longo do desenvolvimento desta criança ao se culpar e/ou ser culpada pela possível prisão dos pais. Isso não significa que o crime e a superação dos traumas não devam ser trabalhados nas terapias. O que não podemos aceitar é a exposição desta criança perante a Justiça e, conseqüentemente, perante toda a sociedade brasileira.
5) Considerar a proteção do mundo subjetivo da criança também é pensar na garantia dos direitos humanos de uma pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, que tem direito de calar e elaborar seus conflitos. Outra reflexão é o risco da exposição do universo psicológico de uma criança e com isso romperem-se as fronteiras da proteção em momentos de extrema fragilidade psicológica.
6) A questão que se coloca nesta problematização é a de que inquirir qualquer criança é algo polêmico e muito delicado. No caso específico, nos parece que a criança, aos três anos de idade, se encontra no período de estruturação psíquica e vivenciando repetidos acontecimentos traumáticos. Portanto, não vislumbramos qualquer benefício ao processo e principalmente à criança, que já se encontra extremamente vulnerável, a citada inquirição como testemunha.
7) Nesse sentido, respeitando as competências e atribuições, além da imparcialidade e discricionariedade do Ministério Público e do Poder Judiciário, apresentamos o presente posicionamento e recomendação.
Brasília, 08 de maio de 2008
Maria Luiza Moura Oliveira
Presidente do Conanda
Daqui: A pauta dos direitos da infância e da adolescência
Rio Grande do Norte - 08/05/2008
quarta-feira, maio 07, 2008
Sessão de Cinema e Psicanálise
"O inocente"
Luchino Visconti
Dia 9 de maio, às 20:00 hs, na Aliança Francesa de Natal
Ficha Técnica
Direção: Luchino Visconti
Roteiro: Luchino Visconti, Suso Cecchi d'Amico, Enrico Medioli
Produção: Giovanni Bertolucci
Música Original: Franco Mannino
Música Não Original: Wolfgang Amadeus Mozart, Christoph von Glück
Fotografia: Pasqualino De Santis
Edição: Ruggero Mastroianni
Design de Produção: Mario Garbuglia
Direção de Arte: Luchino Visconti
Figurino: Piero Tosi
Maquiagem: Aldo Signoretti
País: Itália, França
Gênero: Drama
Prêmios: Prêmios David di Donatello - David de Melhor Música
Elenco:
Ator / Atriz
Personagem
Giancarlo Giannini
Tullio Ermile
Laura Antonelli
Giuliana Ermile
Jennifer O'Neill
Condessa Teresa Raffo
Rina Morelli
Mãe de Tullio
Massimo Girotti
Conde Stefano Egano
Marc Porel
Filippo d'Arborio
Didier Haudepin
Federico Ermile
Marie Dubois
A Princesa
Claude Mann
O Príncipe
Comentário
Na abertura do filme, uma mão gasta pelo tempo folheia as páginas de um grosso volume do romance de Gabrielle D’Annunzio, “L’innocente”, sobre um tecido vermelho. Vermelho é a cor predominante neste drama. Trata-se do último filme de Visconti, finalizado três meses antes da sua morte. É um filme intimista, dramático; a subjetividade dos personagens é privilegiada, é o que dá veracidade e complexidade à trama. É dessa subjetividade que emerge a intensidade dramática do filme. Já tendo rompido com o neo-realismo, Visconti faz uma livre adaptação do livro homônimo do polêmico escritor.
A esgrima, o sarau, o figurino e a ambientação não deixam dúvidas, desde a primeira seqüência, de que se trata de um filme de época. Entretanto ele aborda um tema atemporal e universal, pois trata da estrutura do desejo, do amor e do gozo. Tudo isto é entrelaçado e posto em jogo nos triângulos amorosos.
Roma, final do século XIX. Nas primeiras seqüências, com elegância e o perfeccionismo habitual, Visconti já nos apresenta os elementos dessa trama.
Túlio, um nobre, intelectual, ateu e sem preceitos morais vai com a sua mulher Giuliana, inicialmente passiva, discreta e reservada, ao sarau oferecido pela melhor amiga dela .
Ao som da marcha turca de Mozart aparece Teresa Raffa, amante de Túlio que, por alguns instantes encara Giuliana. Minutos após, no salão ao lado, tudo se harmoniza com o vestido vermelho de Teresa. De um lado, mulheres de preto e homens de smoking; do outro lado, combinando com o vermelho da parede está Teresa, bela, fatal, livre e sem preconceitos, como ela mesma se define. Objeto de desejo de todos os homens, ela também causa o desejo de Túlio, mas quer exclusividade.
Esta seqüência revela também a posição de Giuliana diante dessa paixão forte, obstinada, imperativa. Submissa e resignada, ela aceita calada que Túlio se retire do sarau com a amante.
Diante da exigência de Teresa de ser a única para Túlio, ele encontra uma solução bastante prática: decide partir em férias para Florença com a amante e pede que Giuliana o espere.
Lembra a ela o pacto que fizeram no início do casamento: o amor deveria existir enquanto fosse intenso; depois deveria ser substituído pelo afeto, pela estima, interesses comuns e pela amizade. Caberia a um deles aceitar ou não.
Giuliana sempre havia aceitado sem reagir. Por amor? Pelo medo de mudar de vida? Pela esperança de recuperar a intensidade da paixão do início do casamento? Para evitar escândalos? Por masoquismo? Túlio pede pra que ela o espere. O que ela deve esperar? Talvez que a paixão por Teresa decresça e nada mude no modo pelo qual o casal arranja o seu gozo.
Giuliana o interroga: “Teresa é viúva, é livre. O que o impede de juntar-se a ela se é isso que deseja?” Talvez Túlio dissocie muito bem, ao modo masculino, desejo e amor. Talvez Túlio saiba que o desejo é efêmero, que ele desliza de um objeto para outro, de uma mulher para outra.
Teresa é sedutora, gosta de ser cortejada pelos homens, levá-los ao desespero e assim certificar-se do quanto é desejada. Túlio atormenta-se por que ela está sempre escapando. Diz ele: “Ela é infiel. No momento em que a sente sua, completamente sua, ela lhe escapa. Está com você, mas sente que está perseguindo outros fantasmas, outros desejos.”
Teresa o faz acreditar que deseja para além dele enquanto Giuliana o faz crer que lhe pertence, que é previsível e fiel.
Túlio quer apreender o ser da mulher, colocando-a no lugar da sua fantasia, mas se ela o ocupar, o desejo desaparece. A sua mulher cai no engodo de fazê-lo crer nesta ilusão. A sua vida com Giuliana lhe parece morna, fraternal e a sua resignação, a certeza da sua fidelidade e de que ela vai sempre estar a sua espera reforça isto. Túlio pede a fidelidade, a posse, mas se ele consegue, a mulher deixa de ser causa de desejo para ele. Há algo de mortificado nesse casamento, como se o gozo estivesse ausente.
Um diálogo com Giuliana mostra um pouco do quanto há de gozo nessa relação atormentada com o ciúme, o medo da infidelidade. Diz Túlio:
-“(...)A coisa mais perigosa pra mim é que o estado de desespero em que me encontro me deixa tão infeliz, mas ao mesmo tempo me deixa vivo.(...)
- Fala como se eu nunca tivesse existido.
- Tem razão. Sou injusto. Desculpe, tem que ter paciência comigo. Como um doente.
-Um doente que se regozija da sua própria doença.”
Túlio fica mesmo doente, muda a expressão, fuma muito, não sai de casa. Parece mal de amor, mas a se guiar pelos acontecimentos que se seguem, parece que a função de Tereza estava em saber causar o seu desejo e manter o gozo do qual ele depende: uma espécie de torpor, de encontrar a felicidade no tormento.
“Uma nova razão”, um toque no tambor, um novo passo, a cabeça que se volta: o novo amor (Rimbaud). Giuliana distraiu-se, surgiu um novo amor, um encontro, um acaso. Abandonada, triste, quase desfalecida, humilhada, conhece Fillipo D’Arborio, escritor da moda. Não sabemos muito sobre esse amor, apenas um comentário de Túlio indica que dormiram algumas noites e ela já o amaria por toda vida. “É extraordinário o dom que as mulheres têm de adaptar a realidade aos ideais românticos da pior literatura”, diz Túlio.
“Uma nova razão” também surge para Túlio ao começar a perceber mudanças na sua mulher: um novo perfume, um capricho ao se arrumar, uma mentira, um novo véu recobre o seu rosto.
A partir de então, Teresa é imediatamente e literalmente esquecida enquanto passamos a nos deparar com uma face do amor louco, desmedido. Numa luta para capturar o pensamento de Giuliana, que está alhures, e apreender o seu ser, que, este, ninguém apreende, a não ser na morte, Túlio procura descobrir o segredo de Giuliana, atormentando-a.
Em momentos de grande esmero visual, ele e Giuliana passeiam no campo. Giuliana aparece e se esconde por entre as árvores.
Para Lacan é nessa abordagem do ser pelo amor que reside o extremo do amor e que desemboca no ódio (Seminário XX - Mais, Ainda).
O amor nessa vertente ilimitada é o que Túlio chama de experiência inebriante, mórbida, onde amor e gozo se conjugam.
A mudança de Giuliana leva Túlio ao êxtase, pois ele depende de um terceiro para garantir esse gozo, ou melhor, colocar-se ele mesmo como um terceiro, imaginando o que o outro tem para causar o desejo de Giuliana.
Lacan introduz um neologismo para falar do gozo do ciúme, advindo do ódio-ciumento. O termo é jalouissance, uma mistura de jalouse (ciúme) e jouissance (gozo). O exemplo paradigmático disso é o de Santo Agostinho que olha o irmão mamando no colo da mãe. O terceiro é ele mesmo e a criança olhada ele supõe que tem o que Lacan chama o ‘a’, algo que funciona como causa de desejo (Seminário XX - Mais, Ainda).
Túlio é o terceiro na relação entre Giuliana e Fillipo D’Arborio. Ele não pode olhar, mas imaginariza o que ela pensa, em que ela pensa. Para ele, Fillipo o tem, o ‘a’.
O filme revela um final surpreendente, diferente do romance de Gabrielle D’Annunzio. O único final cabível neste filme requintado, de grande cuidado visual e ao mesmo tempo, cruel e implacável. Há beleza também no último minuto do filme: o drama se desfaz enquanto a imagem de Teresa se afasta na neblina.
Natal, 4 de maio de 2008
Tereza Sampaio
domingo, maio 04, 2008
Narcisismo de homens e mulheres
Todos querem ser amados para sempre, amor indelével.
Ai está a questão- 'this is the question', caríssimos...
Foto daqui
CONTARDO CALLIGARIS
Narcisismo de homens e mulheres
O homem vive um narcisismo valentão; a mulher questiona: "Será que gostam de mim?"
NA COLUNA da quinta retrasada, "O Trauma do Amor", escrevi o seguinte: "Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem".
Acrescentei que deixaria para outra vez a explicação dessa especificidade feminina. Respondendo aos pedidos de vários leitores e leitoras, aqui vai UMA explicação.
Muitas culturas (não só a nossa) preferem que, no início do jogo amoroso, os homens façam o primeiro passo. Ultimamente, o recato deixou de ser uma qualidade feminina essencial: uma mulher que se arrisque a ser a primeira a mostrar seu interesse não é mais uma atrevida (ou pior). Mas o hábito permanece: "Que os homens se manifestem, e as mulheres aceitem ou rejeitem".
Há, nesse costume antigo, uma certa sabedoria, pois, para os homens, em geral, é mais fácil lidar com uma negativa. Raramente a recusa os leva a uma dúvida radical sobre eles mesmos. Muito antes de perguntar-se "Será que não sou aquela maravilha toda que minha mãe e minhas tias diziam que eu era (e, se não disseram, deveriam ter dito)?", os homens conseguem inculpar detalhes contingentes ("Hoje, excepcionalmente, o desodorante me largou") e, sobretudo, acusam a própria mulher que os recusou: se ela não quis, é porque é "uma puta". Paradoxal, não é?
Pois é, mas o paradoxo é revelador. Para o homem, como era de esperar, a única que não seja "puta" é a mãe, que, supostamente, gostava e gosta só dele.
As outras, que não se extasiam diante de seus vagidos, são "putas" porque podem lhe preferir terceiros quaisquer. Por sorte (de todos nós), essa "segurança" narcisista do homem tem uma pequena falha: a própria mãe, por mais que se extasiasse com ele, fechava-se no quarto com o pai, de vez em quando (para o menino, aliás, não é um bom negócio que a mãe se esqueça de ser mulher).
Seja como for, o narcisismo masculino não se deixa abalar por uma recusa. A convicção de ter sido objeto exclusivo e insubstituível do amor materno é um recurso (quase) seguro: "Pouco importa que as outras não gostem de mim, pois a única que importa gostava e gosta".
Para a maioria das mulheres, acontece o contrário. Uma recusa e uma negativa valem como uma espécie de confirmação do que era suspeitado por elas desde sempre: "Não agrado e nunca fui verdadeiramente amada".
Hoje, depois de décadas de um lento processo de mudança cultural em que o feminino foi valorizado, afirma-se que o amor de mãe é o mesmo para menino ou menina. Mas a "Escolha de Sofia" (o romance, note-se, foi escrito por um homem) seria, provavelmente, a mesma: acuada, tendo que escolher entre o filho e a filha, Sofia ainda salvaria o menino.
O sentimento de que um filho satisfaz a mãe mais do que uma filha continua na cultura, solidamente.
Quer seja pela ilusão de que o filho homem não sumirá pelo mundo afora, mas, por eternizar o sobrenome, ele ficará na tribo (perto da mãe).
Quer seja pela sensação de completude que talvez acompanhe a constatação materna de ter conseguido dar à luz um ser tão diferente dela, um ser do outro sexo.
A conseqüência dessa disparidade do amor materno é a tragicomédia cotidiana, em que uma mulher, mesmo em seu melhor dia, precisa perguntar a seu companheiro se ele a acha bonita. E um homem, deformado por churrascos e cerveja, julga-se irresistível.
Em suma, homens e mulheres, em geral, padecem de narcisismos diferentes: o homem é blindado por uma segurança eficiente e um pouco obtusa, e a mulher é constantemente exposta ao risco de um dúvida radical sobre o amor que ela recebe.
O discurso comum pensa que a mulher, mais cuidadosa com sua aparência, seja "mais narcisista" do que o homem.
Não é nada disso: o homem vive um narcisismo valentão, enquanto a mulher não pára de questionar: "Será que gostam de mim?". Corolário: a mulher, por isso mesmo, é melhor psicóloga do que o homem -mais perspicaz na leitura das palavras e dos gestos dos outros.
Conclusão: a rejeição, para uma mulher, é uma experiência que coloca em perigo sua precária certeza de ser aceita no mundo, é uma experiência que abala seu ser, que a fere além da conta. Inclusive além da conta possível de perdas e danos numa separação.
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