domingo, maio 11, 2008

Mulheres e seus direitos: ser ou não ser mãe






Mulheres e os direitos à existência


MIGUEL SROUGI


A sociedade tem a obrigação de participar, exigindo dos governantes compromisso inegociável com a defesa dos direitos da mulher

HÁ UM ano, neste espaço e nesta data, decidi homenagear as mulheres. Na ocasião, procurei mostrar que elas têm um papel insubstituível na superação da miséria e na construção de sociedades mais justas. Terminei dirigindo um olhar de gratidão a todas as mulheres e a minha mãe Ivone. Hoje, volto a falar delas, mas, diferentemente da outra vez, quero homenagear todas as Ivones do mundo neste início de texto -temo que, no final, minhas aflições me impeçam de fazê-lo com ternura.
Fiquei desconcertado com as novas leituras. Segundo a OMS, são realizados a cada ano cerca de 50 milhões de abortos no mundo, 19 milhões dos quais de forma clandestina e insegura. No Brasil, de acordo com dados do Ipas e da Uerj, são efetuados cerca de 1,1 milhão de abortos anualmente, 75% deles induzidos voluntariamente e executados de maneira insegura.
O desconforto aumentou quando descobri que, em 2005, 230 mil mulheres foram internadas em hospitais da rede pública devido a complicações do aborto. Em decorrência, talvez tenham morrido cerca de 11 mil brasileiras. Quase todas pertencentes às classes mais desassistidas, muitas nos primórdios da sua existência, todas elas vítimas da desigualdade de gênero e da discriminação que prevalecem na nossa sociedade.
O significado das estatísticas fica mais incômodo se forem lembrados alguns números. Se às brasileiras fosse dado o direito e o fácil acesso ao aborto seguro, morreriam menos de mil mulheres ao ano. Ainda muito quando falamos de vidas, mas menos indecente que 11 mil. E seriam economizadas somas significativas de recursos despendidos no tratamento das complicações do aborto inseguro.
A dimensão material desse problema pode ser compreendida por dados das Nações Unidas. Para cada dólar aplicado em planejamento familiar e saúde da mulher, são poupados entre 16 e 31 dólares gastos com as complicações decorrentes do aborto. E, num olhar mais humano, centenas de milhares de mulheres seriam poupadas das seqüelas do procedimento clandestino, como agravos psicológicos e sexuais irremediáveis, esterilidade definitiva, lesões genitais mutilantes ou infecções crônicas debilitantes.
Mesmo ciente das minhas carências para debater as questões filosóficas, éticas e religiosas que circundam o aborto, como médico e cidadão não consigo me calar diante de um problema que afronta a dignidade, impõe sofrimentos e pode tolher a existência de seres humanos.
O aborto sempre se misturará com a história da humanidade e nunca poderá ser inteiramente abolido. Sempre existirão as gestações indesejadas, ilegítimas, arriscadas ou inviáveis. Por isso, o esforço de todos os protagonistas desse enredo, governos e sociedade, deveria ser orientado no sentido de impedir que ele se torne necessário e de forjar condições para que as tragédias decorrentes possam ser sanadas com eficiência e rapidez.
Como fazer isso? Os governos, deixando de dirigir ao problema apenas olhares fugazes. Agindo com vontade sincera e coragem para promover o debate, descriminalizando ou não o aborto, de acordo com os anseios da sociedade. Não menos importante, promovendo a criação e a disseminação de programas sobre planejamento familiar, a inserção do ensino sobre saúde sexual e reprodutora nos currículos escolares, o acesso fácil e continuado aos métodos de contracepção e estabelecendo rede qualificada de atenção médica de emergência para mulheres no pós-aborto. Finalmente, concedendo às mulheres os mesmos direitos desfrutados pelos homens no trabalho, na propriedade, na política.
Para ter uma idéia do impacto dessas ações, vale lembrar a experiência vivida pelos romenos. No período do ditador Ceausescu e de leis extremamente restritivas, morriam por complicações do aborto 148 mulheres para cada 100.000 nascimentos vivos. Com a liberação do regime, maior respeito aos direitos humanos e legalização do aborto, o número de óbitos caiu para 9 em 100.000, com redução proporcional no número de mulheres injuriadas pelo processo.
A sociedade tem a obrigação de se inserir nesse concerto, exigindo dos governantes um compromisso inegociável com a defesa dos direitos da mulher e da condição humana. E tem que aceitar uma nova construção social em que a mulher não seja vista como mero instrumento de perpetuação da espécie. Mais que isso, permitindo que ela participe das decisões maiores que afetam seus destinos.
Termino enfatizando que, ao contrário do que o texto possa sugerir, não tenho convicção formada sobre a pertinência da legalização do aborto.
Ausência de convicção não só pelas minhas insuficiências, mas também porque às vezes me custa aceitar que um pequeno ser, como eu já fui, tenha o curso de sua existência tolhido nos seus primórdios. Realidade que talvez Riobaldo, o jagunço filósofo de Guimarães Rosa, tenha tentado descortinar: "Viver é um descuido prosseguido". O que deve valer tanto para uma mulher como para um pequeno ser.

MIGUEL SROUGI
, 61, médico, pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.

Da Folha em 11 de maio de 2008

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