sábado, maio 04, 2013

A idade de cada um- Christian Ingo Lenz Dunker*



Início do conteúdo




Estado de São Paulo

Muitos países adotam um regime penal baseado no conceito de jovem adulto: em cada caso se decide a maioridade ou minoridade penal


04 de maio de 2013 | 16h 45


Primitivamente, o tema da minoridade não é educativo, psicológico ou jurídico, mas filosófico. No século 18, Kant veio a definir a maioridade como uso livre da razão no espaço público introduzindo o conceito de autonomia, em oposição à minoridade da infância, na qual somos tutelados pela família e pelo Estado. Desde então, autonomia associa-se a um percurso de individuação, envolvendo competências morais, discursivas e cognitivas convergentes com o processo de incorporação da lei. Geralmente entendemos que esse processo se conclui quando o sujeito é capaz de seguir a lei porque ela adquiriu um sentido impessoal e necessário, não porque estamos coagidos pelo medo ou pelo desejo, orientados por inclinações ou interesses, movidos por exemplos e normas, mas porque livremente escolhemos nos submeter a lei. Daí que autonomia carregue consigo o sentido da autoridade, como se fôssemos todos autores da lei. Essa é a teoria moral do dever, que encontrou seu correlato psicológico em Piaget e Kohlberg e seu equivalente sociológico em Habermas e Rawls. Ser autônomo é ser capaz de se reconhecer nas leis que nos governam e se fazer reconhecer perante elas, inclusive de modo a aplicar, questionar ou transgredi-las. A psicanálise acrescentou um importante adendo a essa concepção ao notar que nossa relação com a lei é homóloga à relação que temos com o desejo.
Postular a redução da maioridade penal deveria basear-se em uma concepção de responsabilidade e autonomia. Essa depende de como, para um determinado sujeito, combinam-se suas condições para agir, saber e posicionar-se diante do prazer. Contudo, o litoral entre saber e gozo é um mar revolto durante a adolescência. Em uma semana o sujeito dá mostras do mais elevado pensamento lógico formal e reflexivo, para na situação seguinte agir por princípios de flagrante heteronomia irreflexiva ou mera impulsividade. A capacidade de contrapor casos e regras, definir exceções e generalizações, criar e negociar a lei pela qual os laços com o outro se organizam, dão forma ao saber que chamamos de responsabilidade. A terrível travessia adolescente é ainda mais perigosa porque, além de princípios, o sujeito é convocado a dar provas de maioridade, ou seja, a produzir atos.
Atos de reconhecimento e bravura, testes de desafio e incerteza, obediência e fé em um líder humano, inumano ou extra-humano ao qual supomos autoridade fazem parte da lógica do acesso à maioridade. O domínio do corpo, das emoções e dos prazeres, de seus usos e abusos, compõe o terceiro ângulo de verificação da responsabilidade. A antiga noção de caráter nada mais era do que essa amálgama entre experiências corporais, geralmente decorrentes do mundo do trabalho, experiências de saber, criadas pelos dispositivos de educação moral e as experiências de teste, prova ou qualificação, chamadas pelos antropólogos de rituais de passagem.
A forma como a lei de seu desejo se articula narrativa e discursivamente com o Outro social deveria definir o regime de retribuição, reparação ou de equilíbrio a que ele deve se submeter. É por isso que muitos países adotam um regime penal baseado no conceito de jovem adulto, no qual em cada caso decide-se a maioridade ou minoridade penal do infrator. No Brasil, curiosamente, essa ideia não pegou. Talvez porque isso incremente imaginariamente a excepcionalidade do infrator que instrumentaliza sua condição de menor para praticar crimes.
Nos países que adotam uma estratégia mais gradualista para a decisão de imputabilidade, essa depende de uma junta formada por instâncias jurídicas, educativas, médicas e psicológicas. Distribuem-se assim as determinações pelas quais a posição de autoridade se exerce na formação do caso social, antes da partição entre caso jurídico ou caso educacional. O que o sujeito diz sobre o que ele fez, o modo como ele se coloca diante de seu ato, define a diferença de seu destino penal ou educativo e indica o tipo de tratamento médico ou psicológico que ele receberá.
Responder pelos atos é uma função de linguagem, que presume a existência de perguntas. Responder não é só pagar, mas também assumir e impor consequências. Pensar que a redução da maioridade penal exercerá um efeito de medo suficiente para criar a autoridade que falta para impedir crimes é apenas mais um exemplo da menoridade de nosso pensamento penal.
* CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER É PSICANALISTA, PROFESSOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP E AUTOR DE ESTRUTURA E CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA (ANNABLUME)


Nenhum comentário: