Estado de São Paulo
Muitos países adotam um regime penal baseado no conceito de jovem adulto: em cada caso se decide a maioridade ou minoridade penal
04 de maio de 2013 | 16h 45
Primitivamente, o tema da
minoridade não é educativo, psicológico ou jurídico, mas filosófico. No século
18, Kant veio a definir a maioridade como uso livre da razão no espaço público
introduzindo o conceito de autonomia, em oposição à minoridade da infância, na
qual somos tutelados pela família e pelo Estado. Desde então, autonomia
associa-se a um percurso de individuação, envolvendo competências morais,
discursivas e cognitivas convergentes com o processo de incorporação da lei.
Geralmente entendemos que esse processo se conclui quando o sujeito é capaz de
seguir a lei porque ela adquiriu um sentido impessoal e necessário, não porque
estamos coagidos pelo medo ou pelo desejo, orientados por inclinações ou
interesses, movidos por exemplos e normas, mas porque livremente escolhemos nos
submeter a lei. Daí que autonomia carregue consigo o sentido da autoridade,
como se fôssemos todos autores da lei. Essa é a teoria moral do dever, que
encontrou seu correlato psicológico em Piaget e Kohlberg e seu equivalente sociológico
em Habermas e Rawls. Ser autônomo é ser capaz de se reconhecer nas leis que nos
governam e se fazer reconhecer perante elas, inclusive de modo a aplicar,
questionar ou transgredi-las. A psicanálise acrescentou um importante adendo a
essa concepção ao notar que nossa relação com a lei é homóloga à relação que
temos com o desejo.
Postular a redução da
maioridade penal deveria basear-se em uma concepção de responsabilidade e
autonomia. Essa depende de como, para um determinado sujeito, combinam-se suas
condições para agir, saber e posicionar-se diante do prazer. Contudo, o litoral
entre saber e gozo é um mar revolto durante a adolescência. Em uma semana o
sujeito dá mostras do mais elevado pensamento lógico formal e reflexivo, para
na situação seguinte agir por princípios de flagrante heteronomia irreflexiva
ou mera impulsividade. A capacidade de contrapor casos e regras, definir
exceções e generalizações, criar e negociar a lei pela qual os laços com o
outro se organizam, dão forma ao saber que chamamos de responsabilidade. A
terrível travessia adolescente é ainda mais perigosa porque, além de
princípios, o sujeito é convocado a dar provas de maioridade, ou seja, a
produzir atos.
Atos de reconhecimento e
bravura, testes de desafio e incerteza, obediência e fé em um líder humano,
inumano ou extra-humano ao qual supomos autoridade fazem parte da lógica do
acesso à maioridade. O domínio do corpo, das emoções e dos prazeres, de seus
usos e abusos, compõe o terceiro ângulo de verificação da responsabilidade. A
antiga noção de caráter nada mais era do que essa amálgama entre experiências
corporais, geralmente decorrentes do mundo do trabalho, experiências de saber,
criadas pelos dispositivos de educação moral e as experiências de teste, prova
ou qualificação, chamadas pelos antropólogos de rituais de passagem.
A forma como a lei de seu
desejo se articula narrativa e discursivamente com o Outro social deveria
definir o regime de retribuição, reparação ou de equilíbrio a que ele deve se
submeter. É por isso que muitos países adotam um regime penal baseado no
conceito de jovem adulto, no qual em cada caso decide-se a maioridade ou
minoridade penal do infrator. No Brasil, curiosamente, essa ideia não pegou.
Talvez porque isso incremente imaginariamente a excepcionalidade do infrator
que instrumentaliza sua condição de menor para praticar crimes.
Nos países que adotam uma
estratégia mais gradualista para a decisão de imputabilidade, essa depende de
uma junta formada por instâncias jurídicas, educativas, médicas e psicológicas.
Distribuem-se assim as determinações pelas quais a posição de autoridade se
exerce na formação do caso social, antes da partição entre caso jurídico ou
caso educacional. O que o sujeito diz sobre o que ele fez, o modo como ele se
coloca diante de seu ato, define a diferença de seu destino penal ou educativo
e indica o tipo de tratamento médico ou psicológico que ele receberá.
Responder pelos atos é uma
função de linguagem, que presume a existência de perguntas. Responder não é só
pagar, mas também assumir e impor consequências. Pensar que a redução da
maioridade penal exercerá um efeito de medo suficiente para criar a autoridade
que falta para impedir crimes é apenas mais um exemplo da menoridade de nosso
pensamento penal.
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CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER É PSICANALISTA, PROFESSOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DA USP E AUTOR DE ESTRUTURA E CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA (ANNABLUME)
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