sexta-feira, março 26, 2010

Por que é tão difícil fazer uma escolha?



Hoje recebi esta pergunta:

Já teve algum cliente seu que lhe relatasse o problema de ter
dificuldade em tomar decisões, começando inclusivamente por aquelas
mais simples, nomeadamente qual a marca do leite ou do iogurte que
escolher no supermercado nas compras da semana, e/ou em gastar a mais
ínfima soma de dinheiro, ficando sempre a namorar o que comprar mas
nunca conseguir comprar nada.Do que se trata este problema? É sério?
Aguardo sua opinião.

Minha resposta:

Escolher implica em perder. Como? Na hora em que você escolhe A e
não B, você perde o B.
Se você ama alguém e pensa em casar, isto implica em perder todas as outras
possibilidades prováveis- possíveis.
Escolher também quer dizer fazer uma mudança. Para esta pessoa, mudar é muito difícil- se escolhe A ou B muda algo- ganha,
recebe, sai do lugar alguma coisa. É como se fosse uma vertigem- entrar num
túnel sem saber onde sair. Assusta.
Exagerei?
Interessante o uso do ‘namorar’ os objetos no supermercado. Namorar é não assumir um compromisso maior. O risco seria iminente?

quinta-feira, março 25, 2010

Contardo Calligaris- Injeções de obediência




Foto G1





Injeções de obediência


Contardo Calligaris


A relação entre pais e filhos se transforma em luta de braço, e pais se desesperam de ser pais



Na semana passada, em Piracicaba (SP), Josiane Ferraz, 31 anos, acorrentou o filho à cama. Foi o jeito que ela encontrou para conter seu menino, de 13 anos, usuário de crack.
Sem grande esforço de memória e de pesquisa, lembro-me de que, faz um ano, em Cuiabá (MT), Neves e Cleuza de Souza acorrentaram seu filho de 13 anos, viciado, violento e incontrolável. Dois ou três anos atrás, um caso análogo aconteceu em Porto Alegre (RS), com um menino de 11 anos, também usuário de crack. Nos três casos, os pais procuraram ajuda: consultaram o Conselho Tutelar de sua cidade, dirigiram-se aos serviços públicos de saúde mental ou pediram a intervenção da polícia. Eles, simplesmente, não sabiam mais a que santo recorrer.
Neves de Souza, explicando sua decisão de acorrentar o filho, disse que "foi desespero". Josiane Ferraz, na semana passada, disse a mesma coisa: "É triste, mas é desespero de mãe de ver o filho nesse estado e agressivo a ponto de falar que vai matar a gente".
O medo de Josiane não é exagerado. Além de quebrar a casa na exasperação e na raiva, além de roubar tudo que possa ser vendido ou trocado por crack, os jovens viciados podem matar. Em novembro do ano passado, em Rincão dos Ribeiros (RS), um neto matou o avô com um golpe de faca de cozinha no pescoço. O neto tinha 21 anos, e o avô, 88. O neto pediu dinheiro, o avô negou.
É isso que aconteceu nos casos dos quais me lembrei, e é isso que acontece em inúmeros outros, que não chegam às páginas de crônica: os pais dizem não, mas, para os jovens, as vontades e as palavras dos pais são vontades e palavras quaisquer, sem autoridade própria.
"Você não vai sair, hoje." "Ah, é? Vou sair, sim, seu babaca, e ainda pego sua grana." Um pai vigoroso enfrenta o filho; uma mãe tenta acorrentá-lo enquanto dorme. Em ambos os casos, a relação entre pais e filhos se transforma em luta de braço, e os pais se desesperam de ser pais.
O que faz com que a gente reconheça a autoridade dos pais sem que ela tenha que se impor pela força? Respostas possíveis: a dívida com quem nos engendrou, o amor por quem nos amparou, o respeito pela experiência e pela suposta sabedoria dos mais velhos etc.
Agora, por que esses argumentos podem nos parecer estranhamente piegas? Simples: eles só fazem sentido num contexto social e cultural em que parecesse normal que condutas humanas não fossem orientadas nem por interesse nem pela coerção exercida pela força, mas por valores -ou seja, eles fazem sentido num mundo, por exemplo, em que a lei, para ser respeitada, não dependesse apenas da polícia. Esse não é bem nosso mundo.
E não pense que os pais recorram à força apenas em casebres insalubres e em casos extremos de filhos viciados além da conta. A tentação (ou mesmo a necessidade) de recorrer à força surge a cada vez que o afeto e as palavras são insuficientes para que os pais sejam ouvidos. Os pais arrancam a tomada do computador, escondem o celular, garantem que não abrirão a porta se os filhos chegarem depois de uma certa hora -sem contar aqueles momentos (mais frequentes do que a gente gosta de admitir) em que, de fato, pais e filhos se encaram, a um dedo do enfrentamento físico. E há outras formas de violência, mais "limpas".
A revista "Science" de 19 de março (327: 1515-1518) publicou uma pesquisa de Sheryl Smith e outros, que foi apresentada no caderno Ciência da Folha de 19/3 e que mostra o seguinte: para camundongos na puberdade, aprender é mais difícil do que para camundongos pré-púberes. Tudo indica que um receptor celular específico é responsável pela cabeça-dura dos camundongos adolescentes, e, presumivelmente, dos adolescentes humanos.
Quem sabe, supõe Smith, esse receptor tenha sido útil, ao longo da evolução, para que os adolescentes saíssem de casa e se tornassem independentes. Mas, hoje, o tempo de preparação para a vida adulta se estende à perda de vista e, com a convivência prolongada de pais e filhos, o receptor se tornou incômodo. Que tal inventar uma droga que silencie o tal receptor e torne nossos adolescentes tranquilos, atentos e obedientes como crianças? Se ela for possível, essa droga será inventada, patenteada e usada largamente. Não será mais preciso acorrentar meninos e meninas. Mas, no essencial, não mudará absolutamente nada. Continuaremos impondo a autoridade como violência real -em vez da corrente, a injeção ou o comprimido.


Daqui.

quarta-feira, março 24, 2010

Roland Barthes


Roland Barthes



“Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo a minha paixão).
Entretanto, Werther, que outrora desenhava bem e muito, não consegue fazer o retrato de Charlotte( Mal pode esboçar sua silhueta que é, precisamente, aquilo que o atraiu nela)- "Perdi...a força sagrada, vivificante, com a qual criava mundos em volta de mim"

" Na lua cheia de outono
Ao longo da noite
Fiz cem passos em volta do lago"

Haïku


Não existe indireta mais eficaz, para dizer a tristeza, que esse "ao longo da noite"...


Roland Barthes em "Fragmentos de um discurso amoroso"- meu livro preferido.

Barthes morreu atropelado ao atravessar a rua onde lecionava. Leia mais aqui.

terça-feira, março 23, 2010

segunda-feira, março 22, 2010

Você conhece Lacan?

Foto da rue de Lille, Paris-inundada, em 1910 Daqui

Li, no mês passado, um livrinho delicioso sobre Lacan- “5, rue de Lille”
É o depoimento de um paciente- ou cliente- de Lacan. Não sei quanto tempo ele esteve em tratamento- foram anos. Ele conta o que se passa na casa- consultório do mestre da psicanálise francesa, que ficava na rue de Lilli.
Ficamos sabendo detalhes da personalidade de Lacan muito curiosos. Desde sua fúria diante de alguém que não o paga suficientemente- até o aperto de sua mão- que poderia significar compreensão, força, amor. Vai até a morte de Lacan em 1981.
Passei a vê-lo de forma muitodiferente do que ouvia por ai- era genial, tempestuoso, amoroso, extremamente interessado nas pessoas. Eu o via como alguém arrogante- era bastante autoritário, mas mesmo nos momentos 'loucos' sabia o que fazia. E não era nada ortodoxo- tratava cada um de um jeito- sabemos que é assim que funciona- não há um estilo lacaniano, há psicanalistas que aprenderam a ouvir como Lacan- é diferente de imitações.
Vale a pena ler.

Agora estou lendo “Lacan, você conhece?”. Também é bom, mais teórico que o outro,que não tinha esta pretensão- traz falas de vários analistas que fizeram tratamento com Lacan e estudaram psicanálise com o mestre.

Lacan é o que está sentado.

quinta-feira, março 18, 2010

Contardo Calligaris- O custo de nossa fé na redenção






O custo de nossa fé na redenção
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Se não fosse tão difícil internarmos indivíduos perigosos, Glauco e Raoni estariam conosco
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GLAUCO MAL me conhecia, mas eu o conhecia bem: ele era presença familiar no meu café da manhã, a cada dia, há muitos anos. Dos personagens que ele inventou, em suas tiras na Folha, quais são meus preferidos? Gosto muito do silencioso Nojinsk, de Zé do Apocalipse e do Casal Neuras, mas Geraldão e Geraldinho são os que mais me tocam, talvez por serem retratos milagrosamente exatos da voracidade que é, hoje, um traço dominante, em todos nós, adultos e crianças. Por sorte, vou poder matar a saudade, pois os dois personagens ganharam coletâneas em livros (LPM e Companhia das Letras, respectivamente).
O assassino confesso de Glauco e de seu filho Raoni é um jovem de 24 anos, que frequentava a Céu de Maria, igreja do Santo Daime fundada pelo próprio Glauco. O jovem é ou era dependente químico e sofre ou sofria de transtornos mentais graves; pelo que entendi, havia a esperança de que ele encontrasse, no ritual do daime, uma saída -da droga e da desordem de seus afetos e pensamentos. Isso não impediu que, na noite do assassinato, ele se confundisse com um profeta ou com o próprio Jesus Cristo.
Às vezes, o convívio social proporcionado por uma igreja ajuda um drogado a abandonar sua dependência ou um louco a conter-se e a reencontrar algum equilíbrio mental. Essas "recuperações" são, de fato, precárias e incertas.
Cuidado, não estou minimizando apenas o poder terapêutico do convívio religioso. Critico o otimismo que nos leva a acreditar na possibilidade de transformações definitivas -pelo encontro com um deus, pela prática de uma religião, pelo uso de psicofármacos ou pela psicoterapia.
Esse otimismo é, provavelmente, um efeito da ideia cristã de que não existe um pecado que não possa ser esquecido e perdoado se o penitente for sincero. Na lista dos santos, muitos foram grandes pecadores, transfigurados irreversivelmente por uma iluminação ou pelo arrependimento. E o exemplo dos santos serve para afirmar que somos todos livres: suscetíveis de transformações radicais. A fé na possibilidade de cada um se regenerar é um traço central de nossa cultura porque parece ser uma condição da liberdade: nada do que somos hoje é definitivo, podemos mudar.
Agora, se a redenção é sempre possível, a decisão de excluir e prender se torna, para nós, envergonhada e culpada. É quase inadmissível internar um indivíduo perigoso na intenção de proteger a sociedade dos atos que ele poderia cometer, pois, internando, negaríamos o mantra segundo o qual a conversão e a redenção do indivíduo são sempre possíveis ou, por que não, prováveis. Em outras palavras, é impossível sancionar a periculosidade de um indivíduo, pois precisamos acreditar que ele possa mudar (para melhor, é claro).
Logo antes do Natal de 2009, em São Paulo, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Henrique de Carvalho Pereira, 21, foi golpeado brutalmente com um taco de beisebol por alguém que desconhecia. Seu agressor, em abril de 2009, tinha quebrado uma vitrina da mesma livraria, também a tacadas. Confuso, delirante e ameaçador, tinha sido preso e logo liberado, como se diz, após a assinatura de termo circunstanciado. Ninguém soube, pôde ou quis transformar aquela prisão em internação. Reconhecer que o homem era obviamente perigoso seria privá-lo da liberdade de mudar, não é? Pois é, se alguém tivesse reconhecido, sem culpa e sem vergonha, que é preciso internar um delirante de taco na mão, Henrique de Carvalho Pereira, em vez de permanecer em coma, ainda estaria circulando entre as estantes da Livraria Cultura.
Da mesma forma, o assassino de Glauco e Raoni deve ter dado mil sinais ameaçadores, que foram ouvidos por próximos, parentes, colegas e amigos. Segundo a polícia, há testemunhos que permitem afirmar que o assassinato foi premeditado, o que significa que, para alguém, a loucura do assassino não foi uma surpresa. Então, por que ninguém levou as ameaças a sério? Por que ninguém parou o assassino antes que matasse?
Pois é, se alguém tivesse dito ou até gritado que aquele jovem confuso era perigoso, dificilmente ele teria sido escutado. Ao contrário, os alertas seriam malvistos: você está querendo o quê? Prender o cara só porque está estranho, sem lhe dar uma chance de ficar melhor? Por esse caminho, continuaremos contando e chorando as vítimas.



Daqui.

quinta-feira, março 11, 2010

Em defesa dos habitantes das Falklands





Contardo Calligaris


As pessoas que vivem num território devem poder escolher a qual comunidade pertencem



NA SEMANA retrasada, durante a Cúpula da América Latina e do Caribe, o presidente Lula perguntou: "Qual é a explicação geográfica, política e econômica de a Inglaterra estar nas Malvinas? Qual a explicação política de as Nações Unidas já não terem tomado uma decisão dizendo: não é possível que a Argentina não seja dona das Malvinas e seja um país [a Grã-Bretanha] a 14 mil quilômetros de distância?".
Concluo que o Brasil está prestes a se lançar numa aventura militar audaciosa. Já devem existir planos para a invasão da Guiana Francesa: afinal, não se entende por que pertenceria à França, que está a 12 mil quilômetros de distância, enquanto basta olhar um mapa para constatar que é geograficamente brasileira (sem considerar que a bandeira da Guiana é verde e amarela).
Infelizmente, um ataque imediato comprometeria a entrega de nossas encomendas de armas francesas. Mas, se soubermos esperar, a guerra, tanto para os franceses quanto para os brasileiros, será uma ocasião maravilhosa de testar em combate os aviões Mirage (que, justamente, nunca foram testados).
Na espera da invasão da Guiana Francesa, a diplomacia brasileira poderá continuar se ilustrando. Bastará promover com coerência a tese defendida no caso das Malvinas: um território deve pertencer ao país que o engloba ou que lhe é mais próximo geograficamente.
A ilha de Pantelleria, erroneamente italiana, deve ser devolvida à Tunísia, cuja costa é bem mais perto da ilha do que a costa da Sicília.
Não faz sentido algum a ilha da Madeira ser portuguesa, visto que ela é situada na placa tectônica africana e mais próxima do Marrocos do que de Portugal.
O Marrocos deve também ser reintegrado na posse das Ilhas Canárias. Nesse caso, a Espanha está totalmente fora do páreo. Para disputar as Canárias ao Marrocos, só a Frente Polisário do Saara Ocidental.
Por que esses casos nos parecem ridículos, absurdos? Porque, em nosso foro íntimo, sabemos que as razões "geográficas, políticas e econômicas" de tal território pertencer a tal nação são irrisórias diante de um princípio que é infinitamente mais importante do que essas razões: as pessoas concretas que vivem num território devem poder escolher a qual comunidade de destino elas pertencem.
Há muitos casos em que a aplicação desse princípio é difícil e conflitiva, porque há territórios cujos habitantes não querem ou não podem constituir uma comunidade: Chipre é dividida entre gregos e turcos; a nação curda é dispersa entre Iraque, Irã e Turquia; fracassa a implementação da "solução de dois Estados" no Oriente Médio. E por aí vai.
Mas o caso das Malvinas é parecido com o da Madeira, o das Canárias etc. Desde o século 19, as "Malvinas" são habitadas só por pessoas que são e se consideram inglesas (sem minorias étnicas ou culturais). Como é possível desprezar a vontade explícita e coesa da população?
Na imprensa, sempre aparece esta perífrase: "As ilhas Malvinas, chamadas pelos britânicos de Falklands". É um enigma: tudo bem que Londres chame essas ilhas de Falklands, mas o que importa é que elas são chamadas de Falklands por todos os seus habitantes. Portanto o normal seria dizer: "As ilhas Falkland, chamadas pelos argentinos de Malvinas" (o que, acidentalmente, é bizarro, pois quem chamou essas ilhas de "Malouines" foram, no século 18, os franceses, originários do porto de Saint-Malô).
Espero que Argentina e Grã-Bretanha inventem jeitos de cooperar na exploração do petróleo das Falklands (se é que ele existe). Será no interesse de ambos e da própria população das ilhas.
No mais, no episódio que mencionei, o presidente Lula deve ter sido mal assessorado, pois, em regra, ele não é insensível ao destino das pessoas concretas. Em sua recente visita a Cuba, Lula não ousou defender os presos políticos cubanos; mais tarde, ele lamentou a morte de Orlando Zapata; anteontem, reviravolta: ele pediu respeito às decisões do governo cubano. Em suma, ele oscila entre uma bajulação do castrismo (saudade do que ele representou no passado) e a solidariedade com quem luta por direitos e liberdade.
Quem não mostrou solidariedade alguma foi o assessor do presidente, Marco Aurélio Garcia, que assim comentou, cinicamente, a morte de Zapata: "Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro". Alguém dirá que é uma resposta "política", assim como seriam "políticas" as razões de apoiar as pretensões argentinas sobre as Falklands. Pode ser, mas, para mim, a única política que interessa é a que se preocupa com a vida concreta das pessoas.

Da Folha

segunda-feira, março 08, 2010

Dia Internacional da Mulher- Zilda Arns





Zilda Arns, a maior perda dos últimos tempos. Para ela minha lembrança emocionada no dia de hoje- eu gostaria de tê-la conhecido- é a mulher que mais admirei e a pessoa que eu gostaria de ser. Ideal de ego- como dizem os psis. Felizmente deixou frutos.

Que se multipliquem figuras como ela neste país de tanta pobreza- o que choca diante do consumismo cada vez mais expressivo.

Foi, além da médica especial, que todos sabem, mãe admirável.

Obrigada, Zilda, por ter existido. Que se multipliquem figuras como ela neste país de tanta pobreza- o que choca diante do consumismo cada vez mais expressivo.




A continuação do filme- aqui, são sete vídeos.

quinta-feira, março 04, 2010

Contardo Calligaris- Lembranças e brigas




Lembranças e brigas


Sempre que evocamos os eventos passados, nossas lembranças são reescritas e corrigidas


TUDO COMEÇOU em 1990, quando George Franklin, um aposentado californiano, foi acusado de um infanticídio que ele teria cometido 21 anos antes.
Repentinamente, Eileen, a filha de George, declarou que, quando criança, ela tinha visto seu próprio pai matar uma menina de oito anos. Eileen explicou seu longo silêncio por uma amnésia: ela presenciara um evento tão horrível que, por duas décadas, ela reprimira radicalmente toda lembrança dos fatos. A jornada de George Franklin terminou sete anos mais tarde, quando um tribunal federal o soltou, considerando duvidoso o testemunho de Eileen.
O processo de Franklin inaugurou uma guerra que durou mais de uma década. De um lado, havia um grupo de psicoterapeutas que acreditavam no seguinte: eventos traumáticos podem ser totalmente apagados da memória e reconstruídos, mais tarde, com a ajuda e o incentivo de um terapeuta. Do outro (é esse lado que prevaleceu), havia estudiosos do funcionamento da memória, que, à força de pesquisas experimentais, mostravam que 1) os eventos traumáticos nunca são propriamente apagados da memória e 2) a "reconstrução" de uma lembrança perdida, ainda mais com ajuda e incentivo de um terapeuta, é quase sempre um processo criativo, ou seja, invenção.
Quem se interessar por essa guerra pode ler o clássico "Victims of Memory" (vítimas da memória), de Mark Pendergrast (Upper Access, 1996), ou "Remembering Our Child- hood" (lembrando-se da infância), de Karl Sabbagh (Oxford, 2009).
O fato é que, graças à dita disputa, o funcionamento da memória foi pesquisado ativamente. E o que me importa hoje é justamente uma propriedade de nossa memória que foi documentada durante o debate dos anos 90 e que explica por que seria inexato dizer que Eileen Franklin, por exemplo, mentiu. Aqui vai: a cada vez que evocamos ou aprimoramos nossa lembrança de um evento, nossas palavras modificam o evento aos nossos olhos, de tal forma que estamos prestes a jurar que ele aconteceu exatamente como diz nosso relato mais recente.
Um exemplo. Eu tinha ("tinha", no passado) uma lembrança infantil, dos meus dois anos. Como muitas lembranças da primeira infância, ela era uma simples percepção: a silhueta de uma criança correndo, destacando-se, em contraluz, diante de uma porta de vidro. Evoquei e descrevi essa lembrança pela primeira vez durante minha análise e, desde então, repetidamente, ao longo de minha vida, tentei "entendê-la", "recordá-la" melhor. Resultado, hoje, minha lembrança é a seguinte: a criança que corre sou eu (o que é curioso, pois a dita criança está bem em frente de meus olhos) - e sou eu aos quatro anos, não aos dois (a porta de vidro é, "claramente", a da sala do apê dos meus quatro anos). Além disso, posso dizer com convicção para onde estou correndo e por que estou extraordinariamente feliz (estado de ânimo que, aliás, não fazia parte da imagem inicial).
Não sei se algo disso corresponde ao acontecimento que deixou em minha memória a silhueta de uma criança em contraluz. Igual, é só por hábito profissional que me obstino a desconfiar de minha lembrança assim como ela se apresenta agora; se não fosse por essa desconfiança do ofício, aquela imagem enigmática de criancinha correndo em contraluz estaria mesmo completamente perdida - transformada, irremediavelmente, por todas as minhas narrações, explicações e interpretações.
Como os historiadores sabem há tempo, a cada vez que evocamos eventos passados, nossas lembranças são imediatamente reescritas e corrigidas por essa evocação.
Há uma consequência desse fenômeno, que todos verificamos, uma vez ou outra. Um casal briga ao redor de um acontecimento recente: "Você disse que.."; "Eu só disse aquilo porque você me provocou"; "Não, quem provocou primeiro foi você", e por aí vai. Imaginemos que ambos sejam de boa-fé e que cada um queira apresentar honestamente sua versão dos fatos; eles deveriam facilmente entender como surgiu o mal-entendido, não é?
Pois é, isso não acontece quase nunca. Ao contrário, em geral, a briga piora: o outro, que contesta minha versão e a contrapropõe a sua, é mentiroso, pois contesta não "minha versão", mas os próprios fatos, assim como eles, ao meu ver, foram impressos diretamente em minha memória. Moral da história: seria bom que o uso da memória nos inspirasse alguma prudência. Afinal, a cada vez que nos lembramos de algo, quer queira, quer não, transformamos nosso passado.

Da Folha aqui.

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Contardo Calligaris- Um herói americano





Adeus a um amigo que enlouqueceu pela exigência impossível de viver livre, sem amarras


Em 1967, Diane Bond e eu nos casamos. Ficamos casados até meados dos anos 70, e não sei por que a gente se separou.
Dos irmãos de Diane, eu conheci Gerald quando ele viajou pela Europa, no fim de seu serviço militar na Alemanha. E conheci Debbie e James no Colorado, em 68 ou 69. Ficamos na casa de James, em Boulder, perto de Denver, e, desde então, James Bond, para mim, foi meu cunhado, e não um agente secreto.
De Boulder, fomos acampar, pescar e caçar pelo Parque Nacional da Rocky Mountain. Não pescamos nada que pudéssemos colocar na panela e não achamos nenhum peru selvagem. Mas o marido de Debbie, que acabava de voltar do Vietnã, matava esquilos por nada e com um ódio que a gente não entendia.
Também de Boulder, fomos a Cascade, perto de Colorado Springs, só para ver de fora a casa em que James, Diane e Gerald tinham passado a infância (Debbie, mais jovem, deve ter chegado quando a família já estava para se mudar). Era uma casa de madeira, encostada na montanha.
A família era de classe média. No Colorado, naqueles anos, isso significava comida farta, carro, e, sobretudo, um cavalo para as crianças que tivessem idade para subir na sela.
No começo da primavera, os cavalos eram soltos para que corressem e pastassem, livres e selvagens, pelos bosques e gramados do Parque Nacional de Pike's Peak. Depois de um certo tempo (semanas talvez), as crianças saiam à procura dos cavalos, sacudindo baldes de grãos, para que, de longe, os cavalos ouvissem.
Em geral, a procura levava dias, e as crianças acampavam nos bosques. Quando, enfim, os cavalos eram encontrados, eles já estavam acostumados a errar livres pela montanha, e era difícil montá-los: você baixava a cabeça agarrando o pescoço de seu cavalo, fechava os olhos e deixava o animal galopar até ele não poder mais. Aí você conseguia levá-lo de volta para casa.
Na semana passada, James morreu. Nos anos 70, incapaz de ficar parado, ele se afastara da mulher e dos filhos ainda pequenos e se tornara carpinteiro, marceneiro, poeta e escritor andarilho.
Enlouquecido pelo anseio de uma liberdade absoluta e pela cocaína, James passou 30 anos de internação em internação, psiquiátrica ou penal. No fim de cada uma dessas estadias manicomiais, ele estava mais calmo, medicado e desintoxicado.
Mas não durava muito. Ele recaía -na droga, é claro, mas, talvez mais grave, na instância impossível de viver sem amarra alguma.
Um dia, ele escreveu para Diane: "Tenho uma vocação obstinada: estou sempre preocupado em fazer o que eu quero, o que inclui a liberdade completa de estar com o pé na estrada, diante de Jack Kerouac e de Lao Tzu".
Como muitos de nossa geração, James acreditava que a divindade estivesse em cada canto da criação; nisso, ele era taoísta.
Diane, Debbie e Gerald jogaram as cinzas de James no vento de Pike's Peak.
Diane reuniu os manuscritos deixados por James. Havia poemas, o começo de um romance intitulado "VagaBond", e milhares de páginas em que aparecia uma verdade paradoxal: a liberdade pode ser uma exigência terrivelmente impiedosa.
Nessas páginas, estava repetida uma mesma ordem, "Quero que James Bond seja o maior cavalo de coca no mundo inteiro", assinada por qualquer figura de autoridade, do xerife Billings (da polícia de Pueblo, responsável por uma das prisões de James) ao prefeito de Houston, Texas, e a Barack Obama. "Cavalo de coca", estranha expressão, não é? Talvez, na coca e na estrada, James procurasse a liberdade absurda daquelas galopadas da infância, levando os cavalos de volta para a casa de Cascade.
Diane não sabia o que fazer com os escritos de James; recorreu a dois amigos índios siú, que inventaram um ritual para queimar os manuscritos. James teria apreciado; quem sabe, dispersando-se na fumaça, as palavras fossem, enfim, soltas, desatadas, como a vida que ele desejava.
É um momento difícil para os Estados Unidos, e não paro de ler americanistas (improvisados ou não) se debruçando sobre a nação dividida entre, sei lá, progressistas urbanos da Costa Leste, conservadores evangélicos do centro e do sul etc. Um conselho: se quiser entender o que são os EUA comece com a loucura libertária de James, que é o grande fundo trágico da alma americana.
Goodbye, James. Se o grande espírito permitir, a gente ainda se encontrará um dia, e subiremos galopando pelas encostas de Pike's Peak.

Daqui da Folha de São Paulo

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Contardo Calligaris- A lealdade das mulheres


Foto daqui



Basta olhar as filas das visitas nos presídios para saber que lealdade não é qualidade masculina


Na tarde de quinta-feira passada, estive no Presídio Feminino do Butantã, situado na rodovia Raposo Tavares, longe do bairro paulistano do Butantã.
Aconteceu assim: antes do fim de ano, Wagner Paulo da Silva, que eu não conhecia, me escreveu explicando que ele organizava um grupo de leitura regular para detentas desse presídio. O grupo (mais ou menos 25 mulheres) tinha discutido uma de minhas colunas; quem sabe eu me dispusesse a proporcionar um "encontro com o autor"?
Soube depois que Wagner da Silva e Durvalino Peco animam há anos esse grupo de leitura para detentas do presídio do Butantã e, agora, com o apoio do Estado de São Paulo, estendem o programa a 26 penitenciárias da região metropolitana (para isso, eles promovem, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, um curso gratuito de formação de mediadores -as inscrições já estão encerradas, mas vale a pena conferir: www.fespsp. org.br/leiturativa/).
Enfim, voltando das férias, liberei uma tarde para aceitar o convite e encontrar minhas leitoras. Ficamos conversando mais ou menos duas horas, e saí de lá com algumas reflexões. Eis uma delas.
A prisão, para as mulheres, é uma punição mais severa do que para os homens, e a causa dessa diferença é um atributo feminino.
Claro, há homens leais e mulheres desleais, mas, em regra, a lealdade é uma qualidade mais feminina do que masculina. Não estou pensando na fidelidade amorosa e sexual -nesse campo, homens e mulheres são capazes das mesmas "traições". Penso numa lealdade mais fundamental, que uma comparação vai explicar facilmente.
Em dia de visita numa penitenciária masculina, a fila de mulheres (esposas, mães, filhas, irmãs) é longa: facilmente, é mais de uma visita feminina por cada preso.
Em dia de visita numa penitenciária feminina, a fila é curta e, em sua grande maioria, composta pelas mães das detentas; os homens aparecem num número irrisório. Sei lá, por 700 mulheres no presídio, uma dúzia de gatos pingados visitando. Os homens se esquecem de suas companheiras assim que as portas do presídio se fecham sobre elas. Abandonada pelo companheiro ou marido, a mulher (outra prova de lealdade) prefere duvidar de si: será que o marido nunca comparece porque ela não é, nunca foi, a mulher que ele queria?
A deslealdade masculina aparece também quando os homens são presos; eles são bem felizes de receber a visita das mulheres que voltam a cada semana, lealmente, anos a fio, mas, com frequência, se esquecem dos filhos que deixaram fora do presídio.
As mulheres presas, ao contrário, só pensam nas crianças que estão lá fora (em geral, com a avó; quase nunca com o pai). E, de novo, a lealdade com as crianças as leva a duvidarem de si mesmas: no dia em que sairão do presídio, os filhos não as reconhecerão, ou então, de qualquer forma, eles já gostam de avós, vizinhas, tutores e tutoras mais do que delas -e por aí vai.
Facilmente, as mães detentas vivem o afastamento das crianças não como consequência da punição pelos crimes que elas cometeram, mas, bem mais sofrido, como punição por elas não "merecerem" ser mães -como se os filhos estivessem longe porque elas não souberam e não saberiam ser mães.
As mulheres, qualquer criminologista sabe, agem criminosamente por razões diversas das dos homens. Em regra, matam por paixão amorosa; quando traficam ou assaltam é, frequentemente, para acompanhar o parceiro. Com isso, a prisão feminina é uma espécie de pena do talião: crimes cometidos por amor são punidos pelo sumiço dos homens amados e pelo medo da perda do amor das crianças.
Na época em que trabalhei em instituições psiquiátricas fechadas, quando o expediente terminava e estava na hora de ir embora, no fim do dia, eu era acometido por uma tristeza profunda. Acabava de compartilhar um bom tempo com os que estavam lá internados, e eis que, agora, eu ia embora, para uma casa, uma companhia, o convívio dos amigos. E eles, não; eles ficavam. A tristeza era uma espécie de culpa por abandoná-los no que era, de fato, uma desolação. Pois bem, ao sair da penitenciária do Butantã, não senti nada disso, pois não havia desolação. Não teria como fazer elogio maior à direção do presídio, à equipe que lá trabalha e às detentas que encontrei, pela resiliência de sua vontade de viver.

Da Folha.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Contardo Calligaris- A injeção do dia seguinte





Foto daqui




A injeção do dia depois



Você sofreu um assalto? Morfina intravenosa previne estresse pós-traumático



Em janeiro , o "New England Journal of Medicine" (362; 2) publicou uma pesquisa, de Holbrook e outros, que mostra o seguinte: os feridos de guerra que recebem rapidamente morfina por via intravenosa tendem a sofrer menos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).


Só para explicar, sofrer de TEPT significa, meses e anos depois do evento traumático, ser invadido por lembranças e pesadelos recorrentes que forçam a revivê-lo, perder-se em "flashbacks" que podem durar horas, sofrer psicológica e fisiologicamente quando se esbarra em algo que evoque um aspecto qualquer do evento, estar constantemente numa hipervigilância assustadiça e por aí vai. Quem sofre de TEPT tenta evitar estímulos associados ao trauma, a ponto de se tornar, às vezes, amnésico e, geralmente, de preferir um isolamento apático ao comércio com outras pessoas.


Ora, a pesquisa selecionou 696 militares feridos em combate no Iraque, para os quais eram disponíveis dados médicos detalhados.


Até dois anos depois do ferimento, mais ou menos um terço tinha desenvolvido um transtorno de estresse pós-traumático. Comparando o tratamento desse terço com o dos dois terços que não apresentaram TEPT, foi possível concluir que o uso de morfina no tratamento imediato de uma ferida reduz o risco de que, mais tarde, o paciente desenvolva um transtorno de estresse pós-traumático.


Outros analgésicos, embora suprimam a dor, não inibem o TEPT de maneira comparável com a eficácia da morfina, a qual, por ser um opioide, suprime tanto a dor física quanto a dor emocional. Com essa supressão, a memória do evento traumático não se consolida: sem aflição, a lembrança se torna fragmentária e, no fundo, trivial.


Inevitavelmente, a grande imprensa norte-americana (por exemplo, o "The New York Times" de 14/ 1) apressou-se a ampliar o alcance da pesquisa: se a morfina pode prevenir o TEPT porque ela evita a consolidação da lembrança do trauma, então ela pode ser usada para cada tipo de trauma -não só para feridas de guerra.


A lista é longa dos eventos que podem ser traumáticos e levar, às vezes, a um transtorno de estresse: agressões violentas (estupro, assalto), sequestro, encarceramento, calamidades, acidentes de carro, diagnósticos de doenças que ameaçam a vida etc. E, para que esses eventos sejam traumáticos, não é necessário ser vítima deles. É suficiente ser espectador ou, às vezes, apenas aprender que eles aconteceram.


Levando em conta que o TEPT é uma condição severa e invalidante (o que implica custos sociais e perdas econômicas), poderíamos administrar o fármaco preventivamente, a cada vez que alguém esbarra num evento potencialmente traumático. As farmácias seriam equipadas para injetar morfina intravenosa a quem se apresentasse imediatamente após um trauma. "Acabo de assistir a um assalto no farol"; nenhum problema: "Deite aqui e aperte o punho". Seria a injeção do dia depois, ou melhor, da hora seguinte.


Mas vamos mais fundo: qualquer clínico sabe que a potencialidade traumática de um evento é singular, depende de cada um de nós. Pela unicidade de nossa constituição, acontece que eu serei traumatizado pelo atropelamento de um cachorro enquanto você precisará, no mínimo, de um ser humano ou dois. Para alguém, assistir ao noticiário sobre o terremoto no Haiti pode ser traumático. Para outro, serão mais traumáticos um filme de ficção ou um romance.
Na ausência de um critério geral do que pode ser traumático, minha sugestão é que se instale em cada cidadão uma bomba subcutânea de morfina, ativada por um botão controlado pelo usuário. Reconhecendo situações que poderiam nos traumatizar, injetaríamos imediatamente uma dose (sem perigo; há, nessas bombas, um mecanismo que impede a hipermedicação).


Imagine só. Alguém me xinga no trânsito? Bomba. Meu tio entrou na UTI? Bomba. Três da manhã e nosso filho ainda não voltou? Bomba duas vezes. O resultado seria, certamente, uma diminuição dos transtornos de estresse pós-traumático.

Agora, haveria também uma diminuição generalizada da intensidade da experiência. Mas, enfim, parodiando a sabedoria dos estóicos, na falta da felicidade propriamente dita (na qual só os ingênuos ainda acreditam), quem sabe a morfina para todos nos permita viver num mundo sem excessos, tranquilo, de dores e alegrias suavemente entorpecidas.


Moral da história: infelizmente, viver é se machucar; para não se machucar, é sempre possível deixar de viver.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Contardo Calligaris- A fraqueza faz a força


By Gabriela Sokolowska


A fraqueza faz a força


Contardo Calligaris


O ideal masculino hoje é o homem corroído ou, no mínimo, arranhado por demônios internos


Na semana passada, escrevi sobre a dilacerante tristeza dos crepúsculos. Uma leitora, Júlia Hokama, perguntou-me, brincando: "Psicanalistas também sofrem de melancolia?".
Bom, em "Uma Mente Inquieta" (WMF Martins Fontes), Kay Redfield Jamison, uma grande psicóloga clínica, contou seu próprio calvário ao ser sacudida por seus humores variáveis, entre mania e depressão profunda. O livro ainda é, ao meu ver, a contribuição mais tocante e decisiva em matéria de transtornos bipolares. Jamison escreveu também "Touched by Fire" (tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico), em que diagnosticou como maníaco-depressivos uma série de grandes escritores, deixando-nos com a pergunta: foram escritores e grandes por causa de sua doença ou pelo esforço de ultrapassá-la pela arte?
Seja como for, em 1941, bem antes de Jamison, Edmund Wilson, o crítico literário, publicou "The Wound and the Bow" (a ferida e o arco). Em seis ensaios, ele mostrou como Dickens, Kipling, Wharton, Hemingway, Joyce e Casanova transformaram sua ferida mais dolorosa e central em arte, ou seja, mostrou como eles encontraram sua força em sua maior fraqueza.
Em mais um ensaio, que dá nome ao livro, Wilson aborda uma tragédia de Sófocles, "Filoctetes", que era um guerreiro grego, dono e usuário legítimo do arco e das flechas que tinham pertencido a Héracles (armas poderosíssimas).
À caminho de Troia, Filoctetes foi mordido por uma serpente, e sua ferida doía e fedia terrivelmente; os gregos, cansados do fedor e das lamentações do guerreiro, abandonaram-no na ilha de Lemnos.
Dez anos mais tarde, os mesmos gregos entenderam que, sem Filoctetes, eles não ganhariam a guerra; eles voltaram a Lemnos para pegar, ao menos, o famoso arco. Um jovem convenceu a todos de que o arco sem Filoctetes seria inútil. Enfim, Filoctetes se reintegrou na armada grega e foi um dos guerreiros escondidos no ventre do famoso cavalo de Troia.
Para Wilson, Filoctetes é o protótipo do herói trágico segundo Sófocles, o herói cuja força e habilidade extraordinárias são inseparáveis do fedor e da dor de uma ferida, física ou moral, que nunca sara.
Essa ideia, de que a força é indissociável da fraqueza e talvez, às vezes, coincida com ela, é tão antiga quanto a invenção mítica de heróis e heroínas. Aquiles não seria ninguém sem seu calcanhar, o Super-homem seria insosso sem sua sensibilidade à kryptonita etc.
Em particular, mesmo nos anos 1950-1970, quando Hollywood parecia preferir que seus "machos" fossem heróis sem falha ou quase, sempre apareciam Filoctetes feridos, que conquistavam a admiração dos homens e o amor das mulheres.
Entre as fileiras dos John Waynes, insinuava-se, sei lá, James Stewart desesperadoramente fóbico das alturas, em "Um Corpo que Cai", de Hitchcock, ou Montgomery Clift compondo um Freud atormentado, em "Freud, Além da Alma", de John Houston.
Esses dois tipos de herói brigavam entre si -nos corações das plateias e na realidade do set: por exemplo, durante a filmagem de "Rio Vermelho", de Howard Hawks, John Wayne e Walter Brennan manifestavam publicamente sua indignação com a "bichice" de Montgomery Clift.
Talvez os heróis "de uma peça só" (digamos assim) ainda prevaleçam, mas há claros sinais de que o ideal masculino da década que acaba é o do homem corroído ou, no mínimo, arranhado por seus próprios demônios internos.
Na televisão, por exemplo, a década começou com um chefão da máfia tendo que recorrer a uma psicoterapeuta ("Família Soprano", HBO) e acabou com o terapeuta de "In Treatment" (HBO), que é verossímil (e adorável, aliás) justamente por ser tão perturbado quanto seus pacientes. Além disso, tanto o herói de "The Mentalist" (Warner) quanto o de "Lie To Me" (Fox) parecem dever suas aptidões extraordinárias às feridas de seu passado. O mesmo, provavelmente, vale para "House" (Universal).
Em 2009, foi montada, em São Paulo e no Rio, uma peça de minha autoria, "O Homem da Tarja Preta" (sinto-me autorizado a mencioná-la pois ela está no fim de sua última temporada, em Salvador). Pois bem, quando eu a escrevi, cinco anos atrás, parecia-me ousado expor assim a fragilidade do "macho". Hoje, já acho que as dúvidas, os conflitos psíquicos e as fraquezas atormentadas são o equivalente da ferida de Filoctetes, ou seja, quase o fundamento da eventual força do homem contemporâneo. É um progresso, não é?

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Contardo Calligaris- Volta com pôr do sol






A viagem seduz os viajantes, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás


NO SÁBADO passado, no aeroporto de Chicago, esperava o voo que me levaria de volta a São Paulo. Diante de mim, uma longa parede de vidro mostrava, além dos aviões estacionados, um pôr do sol glorioso e dilacerante.
Por alguma sabedoria (consciente ou não), meus companheiros de espera estavam quase todos sentados de costas para a janela. Alguns poucos, pela posição de seus assentos, teriam condição de contemplar o pôr do sol, mas não levantavam os olhos de seu notebook.
Oscar Wilde afirmava que o pôr do sol só passou a existir com as pinturas de William Turner, no começo do século 19; era um jeito de dizer que a natureza está lá desde sempre, mas é a arte que nos ensina a enxergá-la. Concordo. E há outras razões pelas quais o pôr do sol é uma experiência especificamente moderna.
Nos últimos 300 anos, atribuímos mais importância à existência individual de cada um do que à vida de grupos, tribos e nações, ou seja, salvo momentos vacilantes de fé em ressurreição ou reencarnação, nossa morte nos parece acabar com tudo o que importa. Somos, portanto, especialmente sensíveis ao fim do dia, cujo espetáculo acarreta consigo a lembrança dolorosa do fim de nossa jornada, que se aproxima.
A psicopatologia reconhece, aliás, a existência, em alguns indivíduos, de variações sazonais do humor: depressão no outono e no começo do inverno e, às vezes, exaltação maníaca na primavera. Pode ser que a alternância das estações, sobretudo onde elas são mais marcadas, longe do Equador e dos trópicos, produza mudanças no metabolismo. Mas pode ser, simplesmente, que a alternância das estações lembre o ciclo de nossa vida, e o outono seja o equivalente anual do fim da tarde de cada dia.
No caso do pôr do sol de sábado, em Chicago, visto da sala de espera de um aeroporto, era como se a iminência da viagem tornasse a experiência mais triste. Por quê?
Há um quadro de Jean-François Millet, que todo mundo conhece, "O Ângelus", pintado em 1859. Nele, um casal de camponeses, no meio da lavoura, ouve os sinos do ângelus vespertino (à distância, vê-se o campanário de uma igreja). Os sinos dizem que é a hora de rezar e que o dia acabou.
Deveria emanar do quadro uma sensação intensa de paz: seu ofício cumprido, o casal logo voltará para o calor pobre, mas digno, de seu lar. Mas esse retrato de uma vida simples e reta sempre foi, para mim (e não só para mim), estranhamente aflitivo. Acontece que o ângelus vespertino é um toque de paz só para quem tem uma casa para a qual voltar. Para os outros, é o sinal melancólico de uma perda sem remédio.
Tudo bem, viajei muito. Várias vezes, ao longo da vida, mudei de língua e país, mas o que importa aqui não são os acidentes de minha história. A modernidade se define pela viagem, pela decisão de não aceitar que o lugar onde nascemos seja nosso destino -por exemplo, pela vontade de deixar o campo e ir para a cidade. É assim desde o século 13 ou 14, quando a gente começou mesmo a circular -primeiro pela Europa, depois pelos mares e por terras incógnitas e agora pelos céus e mundo afora.
Na "Divina Commedia" (que é uma enciclopédia da modernidade incipiente), Dante descreve assim o fim da tarde (minha tradução em prosa de "Purgatório, 8, 1-6"): "Já era a hora em que o desejo volta aos navegantes, e seu coração é enternecido pela lembrança do dia em que disseram adeus a seus doces amigos; é também a hora que fere de amor o novo viajante, se ele ouve de longe um sino que parece chorar o dia que está morrendo."
Pelo gênio de Dante, o desejo dos navegantes não é, como se esperaria, o anseio de novas terras no horizonte de sua viagem. Claro, a viagem os seduz, mas seu desejo é nostalgia do que eles deixaram atrás, do que perderam por se tornarem viajantes.
E perderam o quê? Sobre que perdas se funda a subjetividade moderna -a nossa, livre e andarilha? Este é o custo básico da liberdade e da autonomia que prezamos acima de tudo: a gente renuncia, antes de mais nada, ao calor do lar -aquele lar que nos esperaria ao fim de cada dia, se tivéssemos ficado no campo, com os camponeses de Millet.
Alguém dirá: que drama é esse? Perde-se a casa dos pais, mas a gente faz outra. Não tem um ditado que diz: "Quem casa quer casa?".
Tem, sim, e, justamente, uma razão pela qual casar-se é tão complicado, é que a gente casa porque quer não "uma" casa, mas "aquela" casa, a que a gente perdeu e nunca vai reencontrar. Enfim, tudo isso escrito enquanto, justamente, volto para casa.

quinta-feira, dezembro 17, 2009

Contardo Calligaris- Salas dos passos perdidos/ atualizado




Salas dos passos perdidos

O Natal anuncia que a vida é uma viagem, que somos todos -como Jesus- viajantes


NATAL É uma das épocas do ano em que mais viajamos.
Isso é especialmente verdadeiro no hemisfério Sul. Ao Norte do equador, as pessoas tentam reunir suas famílias, que foram dispersas pelo tempo, pelos casamentos, pelas perspectivas de trabalho ou, simplesmente, por cada indivíduo ter anseios de independência e vontade de tocar a vida por conta própria. Ao Sul do equador, a essa vontade de reunião de família, acrescenta-se a proximidade das férias de verão: junte Natal com o Ano Novo, use 15 dias de férias, e lá vamos nós.
Por essa razão, no Natal, as rodoviárias e os aeroportos são sempre abarrotados, pelos viajantes e por seus restos voluntários (lixo) e involuntários (malas extraviadas e crianças perdidas). A quem viaja, aconselha-se levar consigo o necessário para encarar, sem demasiado tédio, filas e esperas intermináveis. É um paradoxo: "Chegue antes porque, de fato, o voo partirá só bem depois do horário previsto".
Seja como for, muitos de nós passarão um bom tempo naqueles espaços intermediários que são os saguões, as salas de espera, as salas de embarque, em suma, os cenários (menos fugazes do que gostaríamos) de nosso trânsito.
Uma bonita expressão francesa designa esses espaços como "salles des pas perdus", com ou sem hífen, que significa "salas dos passos perdidos". Não sei se existe uma etimologia definitiva dessa expressão, mas parece que, originalmente, salas dos passos perdidos são os átrios dos tribunais de Justiça, onde as partes, depois de ter exposto seus argumentos, esperam a decisão da corte em intermináveis idas e voltas de passos "perdidos", ou seja, movidos só pela ansiedade e pela incerteza quanto ao futuro.
Hoje, a expressão se refere também às salas de espera e aos vestíbulos centrais dos aeroportos e das estações ferroviárias, em suma, a aqueles lugares onde fazemos a hora batendo pernas, lugares que, simplesmente, não são nem nossa origem nem nosso destino, mas sempre apenas transições.
Já assisti a noticiários televisivos de 25 de dezembro em que a notícia eram os "infelizes" que, entre atrasos, tempestades e "overbooking", passaram a noite do dia 24 no saguão de uma aeroporto. Logo no Natal; é o cúmulo, não é?
Nem tanto. Pense bem, o Natal cristão celebra um nascimento, o de Jesus, que acontece num estábulo, que, para quem viajava a dorso de mula ou de jumento, 2.000 anos atrás, era o equivalente de uma rodoviária ou de um aeroporto.
O Natal anuncia que a vida é uma viagem, não só porque estaríamos em trânsito para outro lugar onde seremos recompensados ou punidos para sempre, mas porque somos todos, como o recém-nascido da festa, viajantes: ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu ou pela tradição a qual ele pertence, mas cada um vale pelo que ele conseguirá fazer com sua vida.
Leitura natalina: no começo do romance de W. G. Sebald, "Austerlitz" (Companhia das Letras), o narrador encontra o professor Austerlitz na sala dos passos perdidos da estação de Antuérpia. Detalhe: se o professor Austerlitz tem um interesse muito especial pelas estações de trem, seus átrios e suas salas de espera, é porque o mundo é uma gigantesca sala dos passos perdidos, em que estamos todos, sempre, em trânsito ou talvez (numa veia mais kafkiana) caminhando em círculos, angustiados, na espera de algum oficial público que nos diga, enfim, qual foi a decisão da corte.
Música natalina: "Salle des Pas Perdus", de 2001, é o primeiro CD de Coralie Clément (uma jovem cantora francesa, que canta com uma voz ofegante, estilo anos 1960-70). Na letra da música que dá o título ao CD, uma jovem escreve a um moço, propondo-lhe um encontro num café, depois de ter cruzado com ele no vestíbulo do prédio (em que ambos moram, talvez) e no átrio da estação St. Lazare. "Você sente meu perfume a cada noite, no vestíbulo do prédio", mas, mesmo assim, a gente poderia nunca se encontrar.
Precisamos aprender a viver e a encontrar os outros nas salas dos passos perdidos. Precisamos inventar a arte de viver em trânsito.
E me ocorre que a maior (única?) artista da vida em trânsito é Sophie Calle. Sua maravilhosa exposição, "Cuide de Você", deixou São Paulo e está agora no Museu de Arte Moderna do Rio, até fevereiro 2010.
Mas estou divagando (é o que a gente faz nas salas dos passos perdidos); só queria dizer isto a quem viaja no Natal: console-se, Natal é também uma festa para transeuntes.

Da Folha

Um leitor disse:
"quero acrescentar uma contribuição
ao significado de "Sala dos Passos Perdidos": nas Oficinas
da Arte Real, é o espaço onde os obreiros se encontram
antes do início de cada sessão; lá também são colocados
avisos, informações, jornais e revistas que lhes possam
ser relevantes e úteis."

Certo.

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Contardo Calligaris




Presentes de Natal

Para quem os recebe, nossos presentes valem pouco mais da metade do que eles nos custam


TUDO INDICA que vai ser um "grande" mês de dezembro.
Compraremos e distribuiremos presentes como nunca; provaremos de vez que o país saiu da crise de 2008.
De qualquer forma, o Brasil já está entre os campeões mundiais em extravagância perdulária natalina.
Claro, há muitos países ricos que, no Natal, gastam mais do que a gente, mas o que vale, nessa classificação, não são os valores absolutos, mas as vendas do varejo no mês de dezembro comparadas com as dos meses contíguos. Ora, em dezembro, no Brasil, a gente gasta por volta de 40% a mais do que na média de novembro e janeiro.
Não quero criticar o costume de oferecer presentes e os "excessos" das festas. A questão que me interessa é outra: toda consideração moral à parte, será que os gastos natalinos são um bom negócio para a economia? Ou seja, gastando para presentes e ceias, estamos mesmo criando e distribuindo riqueza?
Joel Waldfogel, professor da Wharton (a famosa escola de administração da Universidade da Pensilvânia), acaba de publicar um pequeno livro, seriíssimo e divertido, "Scroogenomics - Why You Shouldn't Buy Presents for the Holidays" (Scroogeconomia - por que você não deve comprar presentes para as festas; Princeton Univ.
Press). O livro defende a tese seguinte: o Natal é uma calamidade econômica, durante a qual nossas sociedades, a cada ano, destroem riquezas consideráveis.
Para começar, Waldfogel repetiu em vários contextos culturais uma mesma experiência: perguntou a grupos de presenteados quanto eles se disporiam a pagar para adquirir os objetos que acabavam de receber.
No Brasil, em 2008, o resultado foi o seguinte: em média, os presenteados estariam dispostos a pagar, pelos presentes que tinham recebido, 47% a menos do que os ditos presentes tinham custado para os presenteadores. Ou seja, 47% do que foi gasto pelos presenteadores não produziu valor nenhum, perdeu-se na transação.
Digamos que comprei para você, por R$ 100, um objeto pelo qual você pagaria, no máximo, R$ 53. Claro, minha despesa subvencionou o comércio e a produção do objeto que comprei, mas ela foi uma catástrofe econômica: quase a metade do que gastei não serviu para nada. Joguei dinheiro fora.
Quer a gente goste ou não da tradição natalina de trocar presentes, seria bom, comenta Waldfogel, que conseguíssemos, ao menos, tornar essa troca mais produtiva. Obviamente, Waldfogel aprova o uso do vale-presente (embora, nos EUA, misteriosamente, um vale-presente em cada dez não seja nunca resgatado) e nos encoraja a oferecer dinheiro, sem constrangimento.
Talvez fosse bom mesmo racionalizar nossas trocas natalinas, mas, antes disso, três observações.
1) Por que oferecemos presentes?
Resposta óbvia: para produzir a maior satisfação possível no presenteado, para fazê-lo feliz.
Talvez, mas vamos devagar. Por exemplo, é bem possível que a troca natalina de presentes seja sobre tudo um gigantesco "potlatch", como dizem os antropólogos, ou seja, uma maneira de torrarmos festivamente nossos recursos (dinheiro, bens e tempo) só para manifestar nossa riqueza (grande ou pequena) aos outros, ao céu e a nós mesmos. Além disso, cada um presenteia amigos e inimigos por razões que pouco têm a ver com a intenção de fazer o outro feliz. Há presentes pedagógicos e paternalistas (ofereço um vale-livros ao primo que não gosta de ler e uma camiseta P ao maridão que virou um boto), assim como há presentes que servem só para intimidar os presenteados (no estilo: "Este, meu caro, você nunca vai poder retribuir".).
2) Será mesmo que qualquer presenteado saberia escolher seu próprio presente melhor do que qualquer presenteador, por generoso e bem intencionado que esse seja?
Duvido: basta considerar a montanha de trapos e quinquilharia que apodrece em nossos armários e estantes (tudo adquirido por nós mesmos) para saber que nossas próprias escolhas são tão incertas quanto as dos que tentam nos presentear.
3) Quando alguém que amo (e que me ama) me oferece um presente, não espero receber aquele objeto que quero e procuro há tempo -claro, vou gostar de receber isso, e vai ser uma festa, mas, cá entre nós, esse tipo de coisa posso encontrar e comprar sozinho. De quem me ama, espero muito mais: espero receber algo que, até então, literalmente, eu não sabia que eu queria. O verdadeiro presente é aquele que me revela meu próprio desejo.
Enfim, boas compras de Natal.

Da Folha.

quinta-feira, novembro 26, 2009

Contardo Calligaris- Adultos infantilizados


Adultos infantilizados


A infantilização do consumidor é peça chave do espírito do capitalismo atual



DURANTE O feriado, nos cinemas, só dava "Lua Nova", de Chris Weitz, "2012", de Roland Emmerich, e "Os Fantasmas de Scrooge", de Robert Zemeckis. Claro, havia outros filmes, mas meio que perdidos na programação.
Imaginemos que você preferisse ler um romance e consultasse a lista dos mais vendidos. Você encontraria cinco títulos de Stephenie Meyer (a autora da saga de vampiros, cujo segundo volume inspira o filme "Lua Nova"), dois volumes dos "Diários do Vampiro", de L. J. Smith, e, no fim, "O Pequeno Príncipe".
Ora, assisti a "Os Fantasmas de Scrooge" (não perderia um filme de Zemeckis, o diretor de "Forrest Gump") e achei excelente; vi de óculos, em 3D, deleitando-me com a atmosfera encantada: como disse uma menina, nevava na sala de cinema. Não vi "Lua Nova", mas gosto da saga de Meyer, sobre a qual escrevi nesta coluna, assim como escrevi sobre o primeiro filme da série, "Crepúsculo". Além disso, aposto que me divertiria com a fantasia catastrófica de "2012"; Emmerich já me divertiu com "Independence Day". Enfim, tenho uma lembrança comovida de "O Pequeno Príncipe".
Então, por que me queixaria dessa preponderância de filmes e livros obviamente infantojuvenis? Não me queixo, apenas constato: nas salas de cinema ou nas livrarias, aparentemente, os adultos devem ser uma pequena minoria, com a exceção, é claro, dos que acompanham suas crianças ou as presenteiam com livros. Estou sendo irônico: é claro que os grandes consumidores de filmes e livros infantojuvenis só podem ser os adultos.
Domingo, um amigo editor me explicava, justamente, que o filé mignon atual são os "crossovers", ou seja, as obras que "atravessam", que seduzem tanto as crianças quanto os adultos. O best-seller e o blockbuster ideais são histórias supostamente para crianças e adolescentes, mas capazes de conquistar os leitores e os espectadores adultos.
Se consultarmos a lista dos livros mais vendidos de não ficção, a conclusão é a mesma. Como assim? Os ensaios não são o domínio reservado e sisudo dos adultos? Artifício: o sucesso dos livros de autoajuda forçou os jornais a separá-los dos de não ficção, mas, de fato, os mais vendidos de não ficção são os livros de autoajuda. Ora, o texto de autoajuda se relaciona com o leitor como com alguém que precisa e prefere ser guiado, orientado, ajudado a pensar, decidir e agir, ou seja, relaciona-se com o leitor como com uma criança.
Pois bem, Benjamin Barber, no seu novo livro, "Consumido - Como o Mercado Corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos" (Record), apresenta a infantilização do consumidor não como um acidente cultural momentâneo, mas como a peça chave do espírito do capitalismo contemporâneo.
Barber é convincente e divertido: chegaram os "kidadults", os "criançultos". O drama do dia não é que as crianças sejam alvo do mercado, mas que o mercado esteja transformando os adultos em crianças.
Por que o mercado prefere lidar com "criançultos"? E o que nos predispõe a sermos infantilizados? Uma breve hipótese. Houve, sobretudo a partir da segunda metade do século 20, uma explosão de um tipo especial de amor dos pais pelos filhos, um amor feito de esperanças e expectativas monstruosas (as crianças serão o que quisemos e não conseguimos ser, nada lhes faltará). Esse tipo de amor parental cria consumidores ideais: por exemplo, indivíduos com pouquíssima tolerância à frustração (e alergia à própria ideia de que algo seja difícil ou, pior, impossível) e com uma imperiosa necessidade de satisfação imediata (e alergia a tudo o que posterga: preparação, estudo, reflexão, complexidade, poupança).
Alguém dirá: e daí, qual é o problema? Exemplo. João quer ser rapper na África do Sul e gasta, impulsivamente, o décimo terceiro da mãe na roupa certa para se parecer com seus ídolos. Para ser rapper na África do Sul, talvez fosse mais urgente que ele estudasse inglês seriamente. Mas essa observação poderia entristecer João. Melhor deixá-lo sonhar e confundir sua mascarada com o começo da realização de seu desejo; afinal, ele é feliz assim, não é? Pois é, suposição errada: quem cresce sem nunca se deparar com o impossível ou mesmo com o difícil, acaba, mais cedo mais tarde, vivendo no desespero. Por quê? Simples (como um filme para crianças): ele só consegue atribuir seus fracassos ao que lhe parece ser sua própria impotência.

Daqui da Folha de S.Paulo

Contardo acerta o alvo. Realmente... Elianne

quinta-feira, novembro 19, 2009

Contardo Calligaris- "In vino veritas"



A educação dos gostos pode parir inquietante uniformidade; é o que acontece com o vinho


DUAS SEMANAS atrás, enquanto saboreávamos uma garrafa de Pomerol, um amigo me contou que, durante uma viagem recente, seus anfitriões chineses tinham insistido para que ele experimentasse um vinho da parte da Mongólia que é região autônoma da China. Meu amigo se preparou para o pior, mas, surpresa, o vinho da Mongólia era um cabernet muito parecido com um bom Bordeaux.
Melhor para meu amigo. Mas duvido que a terra da Mongólia seja igual à das colinas bordelesas. Tampouco o cultivo da vinha cabernet é uma tradição mongol.
Em compensação, numa pesquisa na internet, encontrei ao menos um viticultor da Mongólia que declara envelhecer seu vinho, durante dois anos, em barris de carvalho importados da França. Esse processo confere ao vinho gosto e buquê específicos, que, nos últimos 20 anos, tornaram-se uma espécie de padrão do vinho da região de Bordeaux. Resultado: o vinho da Mongólia está pronto para satisfazer a maioria dos consumidores americanos, europeus etc., mas nunca saberemos o que teria sido um vinho da Mongólia, se ele tivesse existido. Os viticultores da Mongólia perderam a chance de inventar uma cultura do vinho que lhes seja própria, e nós, a de apreciar um gosto novo, diferente. O mundo perdeu um pouco de sua diversidade possível.
"In vino veritas" significa que o vinho solta a língua: quem bebe revela verdades. Lendo "Gosto e Poder", de Jonathan Nossiter (Companhia das Letras; Nossiter é o diretor do filme "Mondovino", de 2004), a expressão ganha outro sentido: a evolução do vinho, nas últimas três décadas, mundo afora, diz verdades incômodas sobre os perigos da globalização, ou seja, sobre um processo que transforma não só os produtos dos quais fruímos mas também o nosso gosto.
Em 1899, Thorstein Veblen previa que, "no futuro", o consumo ostensivo de artigos de luxo não seria suficiente para confirmar o privilégio de classe. O consumidor, ele pensava, deverá se tornar um entendedor, capaz de ostentar seu saber sobre os objetos que ele consome (Veblen listava: roupa, arquitetura, drogas e, é claro, bebida).
A necessidade de cultivar a faculdade estética e de conversar sobre o gosto levará os mais ricos a abandonar a vida ociosa para se instruir um pouco -o suficiente para justificar as escolhas e as preferências.
Essa transformação prevista por Veblen tem um lado simpático: afinal, mesmo quem não dispuser dos meios para adquirir e usufruir terá acesso ao saber sobre o que seria bom consumir, e esse saber "enobrecerá" o consumidor, promovendo-o socialmente pela educação dos gostos. Problema: a "educação dos gostos" é capaz de parir uma inquietante uniformidade do gosto. A história recente do vinho, mostra Nossiter, é um exemplo disso. Três tempos:
1) O consumidor "futuro" de Veblen pode aprender tudo sobre "domaines" e safras, mas esse esforço não o dispensa de justificar suas escolhas pelo próprio prazer que seu vinho preferido lhe proporciona. Aqui, ele encontra duas dificuldades. Como descrever e transmitir esse prazer? E como se certificar de que sua preferência não seja singular e arbitrária?
2) Imaginemos que, nesta hora, surja alguém (Robert Parker?) que invente uma linguagem para descrever as qualidades gustativas e olfativas do vinho. Se for uma linguagem barroca e um tanto tola, melhor ainda: seu uso meio hermético confortará o consumidor com a impressão de pertencer a uma "confraria".
E imaginemos que o mesmo Parker proponha seu próprio gosto como critério universal de classificação de todos os vinhos.
Eis que o consumidor "futuro" dispõe das palavras que ele procurava e de um sistema classificatório que, se ele o aceitar, tornará seu gosto menos questionável e "arbitrário". Claro, são as palavras e o gosto de um outro, mas nada é perfeito, não é?
3) Imaginemos agora que um enólogo amigo de Parker (Michel Rolland?) descubra e comercialize a receita para transformar os vinhos de quase qualquer território (por que não da Mongólia?) de modo que correspondam ao gosto de Parker, que se tornou o gosto de quase todos. Em suma, a dita educação dos gostos produziu o triunfo de um gosto só (e, é claro, um excelente negócio).
A todos, boa leitura e boa meditação sobre o futuro de nosso gosto globalizado. Só uma coisa: nem tudo é ruim na globalização. Por exemplo, sou a favor da aparição de queijos "tipo" taleggio, camembert etc. no meio da cultura autóctone do queijo de minas e do queijo prato. E talvez, sem os barris franceses, o vinho da Mongólia seja intragável. Mas essa é outra história.

quinta-feira, novembro 12, 2009

Contardo Calligaris- Impasse de um sonho moderno




O sonho de um mundo que seja uma nação só, integrando etnias e culturas, ainda vale?


NA SEMANA passada, na base militar de Fort Hood, Texas, um major-psiquiatra do Exército dos EUA, Nidal Malik Hasan, 39, saiu atirando. Com a exceção de um civil, suas vítimas (13 mortos e 27 feridos) foram seus companheiros de armas.
Hasan é muçulmano, nascido nos EUA de imigrantes palestinos, e estava na iminência de partir para a guerra do Afeganistão. Será que o Exército deveria ter previsto um conflito possível entre sua religião e seu serviço numa guerra contra o Taleban e outros extremistas islâmicos? Será que o Exército deveria ter considerado que, por ser muçulmano, Hasan não seria apto a servir? E será que, depois desse incidente, o Exército dos EUA adotará, explícita ou silenciosamente, a política de dispensar os muçulmanos do serviço militar ativo?
Do ponto de vista logístico, seria inócuo: há 3.000 soldados de religião muçulmana num exército de mais de meio milhão. Mas pense bem: você gostaria de ser cidadão de um país que desconfiasse de você, a ponto de lhe proibir servir nas Forças Armadas?
Domingo, no canal de TV CBS, o senador Lindsey Graham, republicano, declarou que o ato de Hasan "não tem nada a ver com religião, nada a ver com o fato de que esse homem é muçulmano".
Certo, tudo indica que Hasan não é um terrorista islâmico; também seria inexato dizer que sua religião o levou a sair atirando. Mas é ingênuo imaginar que a "explosão" de Hasan não tenha nada a ver com uma contradição entre sua religião e a iminência de seu serviço no Afeganistão ou mesmo com seu ofício do momento (quais expressões de ódio contra sua fé e sua ascendência ele ouviu dos veteranos traumatizados de quem ele se ocupava como psicoterapeuta, há meses?).
A explicação da declaração apressada de Graham está nas palavras do general George Casey, chefe de Estado-Maior do Exército, que quis imediatamente prevenir a tentação de excluir os muçulmanos das Forças Armadas: "Seria uma vergonha", ele disse, "se nossa diversidade fosse mais uma vítima (dessa matança)".
Se isso acontecer, seria, de fato, uma derrota não do Exército dos EUA, mas de um ideal moderno que os EUA, bem ou mal, tentam encarnar desde sua fundação -ou seja, o sonho de um país em que a ascendência, a etnia e a religião dos cidadãos não implicariam nenhuma diferença de cidadania (sonho reavivado, mundo afora, pela eleição de Obama).
Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA segregaram os descendentes de japoneses. Desconfiaram da etnia mais do que da ascendência, pois, à diferença do que aconteceu aqui, os descendentes de italianos ou alemães não foram segregados nem afastados do serviço militar.
Embora combatessem contra a nação que fora a pátria dos pais ou avós, esses soldados não viveram dramáticos conflitos entre patriotismos opostos. Podiam ser alemães ou italianos pelo passado, pela tradição, pela língua ou pela relação com a terra, mas eram americanos por algo diferente, que prevalecia: ideias, projetos, sonhos comuns.
Um desses sonhos (que vale para quase todas as nações americanas) é o sonho de uma nação parecida com o que seria o mundo se ele pudesse ser uma nação só, milagrosamente capaz de incluir e integrar cidadãos de qualquer etnia, história e cultura.
O problema (de Lindsey Graham, de George Casey e talvez de todos nós) é evitar que Hasan seja transformado numa espécie de homem-bomba cultural: uma prova de que há diferenças que resistem a quaisquer desejo e esforço de integração, intatas, no âmago do indivíduo, até explodirem um dia.

A novela da Uniban continua. Na sexta passada, por decisão do Conselho Universitário da Uniban, Geisy Arruda, ameaçada de estupro e linchamento coletivos, foi expulsa da universidade, porque, "claro", tudo isso aconteceu por ela ter tido posturas provocantes. Em caso de estupro, aliás, a gente sabe que a culpa é sempre da mulher; quem manda usar minivestido, hein? São todas putas, não é? Gostam de provocar e depois se queixam se os garotos as tratam como merecem.
Eu achava mesmo que esses papos sinistros só sobrevivessem nos piores botecos e, mesmo assim, em horário avançado. Talvez o Conselho da Uniban, para chegar à sua decisão, tenha se reunido num boteco. Numa universidade é que não pode ter sido.
Bom, na última segunda, o reitor da Uniban revogou a expulsão de Geisy. "Imparcial", também revogou a suspensão de seis alunos identificados entre os agressores.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Caetano Veloso sobre Claude Lévi-Strauss





"A visão do Brasil que está em "Tristes Trópicos" esquentou meu coração"


Caetano Veloso relembra como o pensamento de Claude Lévi-Strauss repercutiu em sua música



CAETANO VELOSO

ESPECIAL PARA A FOLHA DE SÃO PAULO


Nosso movimento, que queríamos chamar de "som universal", terminou ganhando o apelido de "tropicalismo" por causa da instalação de Hélio Oiticica que Luiz Carlos Barreto achou parecida com minha canção.
Foi Leon Hirschman quem, tendo visto na casa de um amigo um volume de "Tristes Trópicos", pensou que um livro com esse título deveria interessar a um dos criadores de tal movimento, ainda mais que se tratava de um que gostava de ler livros filosóficos e teóricos.
Ele simplesmente roubou o exemplar da casa em que o encontrou e me deu de presente. A palavra "estruturalismo" estava aparecendo em textos de jornais e em conversas. Eu vagamente sabia que o nome de Lévi-Strauss estava ligado a ela.
Abri o livro com uma curiosidade moderada. E fui tomado de um interesse intenso a partir das primeiras frases. "Tristes Trópicos" me arrebatou. Eu era fã de Sartre. Nunca esperei que uma inteligência de ordem tão diferente, mesmo antagônica, se impusesse com tanta rapidez sobre meu espírito.
O estilo (eu nunca tinha lido Proust) também me impressionou: a calma dos parágrafos longos e entremeados de observações secundárias que só lhe aumentavam a clareza era educativa, agradável e elegante.
Mas foi a visão do Brasil que apareceu ali que esquentou meu coração.
Um pessimismo relativo à civilização brasileira (mitigado pela bela passagem sobre a USP, em que "num claro instante" pode tornar-se possível uma intervenção relevante nos destinos do mundo, por parte de um bando de jovens paulistas inocentes -mas agravado pela incompreensão total do que seria Oswald de Andrade ou a possibilidade de um modernismo brasileiro que contasse além da repulsa que a suposta beleza do Rio causava no autor) contado paralelamente às descobertas sobre as culturas pré-cabralinas, ensinava novos modos de sentir-se o estar no mundo aqui.
Mais do que tudo, aparecia um homem excepcional: sempre modesto, ele mantinha um tom franco e inabalavelmente lúcido. Os esboços das posições originais que o tornariam mais e mais célebre apareciam com vigor, mas sem paixão.
Cheguei a escrever, alguns anos depois, para meu governo, que fazia sentido que, em oposição ao ateísmo apaixonado de Sartre, surgisse uma espécie de misticismo frio.
A profecia de que o Islã nunca seria a religião da tolerância que se pretendia (culminando numa impressionante comparação das figuras de Maomé e Buda) repercutiu em mim de modo indelével. Assim como o horror ao "eu" cartesiano, embora a racionalidade que ele sempre manteve nunca pudesse ser abalada, fosse pela "confusão entre sujeito e objeto" dos existencialistas (seguindo Husserl), fosse pela dialética hegeliano-marxista (que os existencialistas franceses terminaram por abraçar).
Marx e Freud eram, para ele, antes exemplos de pensadores que percebiam realidades inteligíveis em planos escondidos.
Enfim, se há alguns livros que ficaram acesos em minha memória desde que foram lidos -e para sempre-, "Tristes Trópicos" é um deles.
Por causa disso, li "O Pensamento Selvagem" (em Londres, em inglês, porque os donos da casa que aluguei tinham esquecido justo um exemplar dele na estante vazia), depois "O Cru e o Cozido". A polêmica com "Crítica da Razão Dialética" no primeiro e os argumentos contra a música atonal no segundo são trechos a que voltei inúmeras vezes através dos anos.
O texto sobre a música sempre foi especialmente instigante para mim. Considero aquilo um momento altíssimo na história do entendimento do que seja a música. Ali também estão embutidos argumentos anti-modernismo e anti-arte de vanguarda a que ele se apegou nas últimas décadas. Sinto uma natural desconfiança dessa inclinação, mas acho estimulante que algumas problematizações não fossem evitadas.
Amo a resposta que Augusto de Campos me deu quando lhe reportei a impressão que me causaram tais argumentos: "São muito inteligentes, mas quem levou a música para além do tom foram os músicos, os melhores entre eles -e eu confio mais em quem está com a mão na massa". Mas aconselho qualquer um a passar primeiro pela "ouverture" de "O Cru e o Cozido", relembrar a frase de Augusto e depois tentar pensar por conta própria.
Lévi-Strauss detestava a promiscuidade entre alta cultura e cultura popular que via sendo praticada por seus famosos contemporâneos mais jovens: "pop philosophie", pensadores citando Bob Dylan e escrevendo sobre cinema, linguistas estudando letras de rock -na entrevista com Didier Éribon, ele diz que jamais voltaria seu armamento teórico para nada abaixo de Baudelaire.
Eu o citei nominalmente numa letra de música (numa entrevista em que lhe perguntaram sobre a citação em "O Estrangeiro" -"O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara: pareceu-lhe uma boca banguela"-, ele disse, meio rindo, que tinha escrito essas palavras havia muito tempo); citei-o indiretamente em pelo menos duas outras: o "num claro instante" de "Um Índio" (diretamente do texto sobre a USP) e "amor-mentira" de "Tem que Ser Você" (aprendi com ele que os nhambiquara chamam os atos homossexuais praticados pelos jovens da tribo de "amor-mentira").
Ele possivelmente não gostaria de se ver citado por um músico pop. E brasileiro. Vai saber. Ele cultivava um certo amor pelo Brasil, a terra onde suas descobertas inaugurais surgiram, onde seu trabalho de etnógrafo fez possível suas investidas teóricas e mesmo filosóficas. Mas o título do seu primeiro livro não é tão carregado de ternura quanto de desprezo e desesperança (e aqui me lembro de uma quarta citação que fiz dele em canção: a observação, em "Fora da Ordem", de que "aqui tudo parece que é ainda construção mas já é ruína"): o Brasil é figura grande na geografia de "Tristes Trópicos", mas está incluído numa visão sombria que cobre toda a zona tropical ao redor do globo.
Eu o vi uma vez na BBC falando inglês excelente com perfeito sotaque francês e exibindo um caleidoscópio para ilustrar sua ideia de estrutura e do número finito de possibilidades de arranjo coletivo do homem. Ele tinha uma cara muito bacana de judeu bondoso mas irônico, uma maravilhosa cara de quem tem vocação para a longevidade (coisa de que ele antes se queixava com modesta ironia, mas que a mim me parece uma virtude). Em suma, eu gostava dele. Gostava de pensar que ele, tão distante e tão próximo, estaria ainda sempre por aí, como minha mãe e Niemeyer, o que me dá uma espécie muito tranquila de saudade.
Peço desculpa aos estudiosos sérios por tratar com tamanha familiaridade uma figura tão respeitável. Mas peço essas desculpas por causa do carinho que sinto e sempre senti por ele. Mesmo no seu grande esnobismo contra o esnobismo de massas.


Caetano Veloso é cantor e compositor baiano