quinta-feira, março 11, 2010
Em defesa dos habitantes das Falklands
Contardo Calligaris
As pessoas que vivem num território devem poder escolher a qual comunidade pertencem
NA SEMANA retrasada, durante a Cúpula da América Latina e do Caribe, o presidente Lula perguntou: "Qual é a explicação geográfica, política e econômica de a Inglaterra estar nas Malvinas? Qual a explicação política de as Nações Unidas já não terem tomado uma decisão dizendo: não é possível que a Argentina não seja dona das Malvinas e seja um país [a Grã-Bretanha] a 14 mil quilômetros de distância?".
Concluo que o Brasil está prestes a se lançar numa aventura militar audaciosa. Já devem existir planos para a invasão da Guiana Francesa: afinal, não se entende por que pertenceria à França, que está a 12 mil quilômetros de distância, enquanto basta olhar um mapa para constatar que é geograficamente brasileira (sem considerar que a bandeira da Guiana é verde e amarela).
Infelizmente, um ataque imediato comprometeria a entrega de nossas encomendas de armas francesas. Mas, se soubermos esperar, a guerra, tanto para os franceses quanto para os brasileiros, será uma ocasião maravilhosa de testar em combate os aviões Mirage (que, justamente, nunca foram testados).
Na espera da invasão da Guiana Francesa, a diplomacia brasileira poderá continuar se ilustrando. Bastará promover com coerência a tese defendida no caso das Malvinas: um território deve pertencer ao país que o engloba ou que lhe é mais próximo geograficamente.
A ilha de Pantelleria, erroneamente italiana, deve ser devolvida à Tunísia, cuja costa é bem mais perto da ilha do que a costa da Sicília.
Não faz sentido algum a ilha da Madeira ser portuguesa, visto que ela é situada na placa tectônica africana e mais próxima do Marrocos do que de Portugal.
O Marrocos deve também ser reintegrado na posse das Ilhas Canárias. Nesse caso, a Espanha está totalmente fora do páreo. Para disputar as Canárias ao Marrocos, só a Frente Polisário do Saara Ocidental.
Por que esses casos nos parecem ridículos, absurdos? Porque, em nosso foro íntimo, sabemos que as razões "geográficas, políticas e econômicas" de tal território pertencer a tal nação são irrisórias diante de um princípio que é infinitamente mais importante do que essas razões: as pessoas concretas que vivem num território devem poder escolher a qual comunidade de destino elas pertencem.
Há muitos casos em que a aplicação desse princípio é difícil e conflitiva, porque há territórios cujos habitantes não querem ou não podem constituir uma comunidade: Chipre é dividida entre gregos e turcos; a nação curda é dispersa entre Iraque, Irã e Turquia; fracassa a implementação da "solução de dois Estados" no Oriente Médio. E por aí vai.
Mas o caso das Malvinas é parecido com o da Madeira, o das Canárias etc. Desde o século 19, as "Malvinas" são habitadas só por pessoas que são e se consideram inglesas (sem minorias étnicas ou culturais). Como é possível desprezar a vontade explícita e coesa da população?
Na imprensa, sempre aparece esta perífrase: "As ilhas Malvinas, chamadas pelos britânicos de Falklands". É um enigma: tudo bem que Londres chame essas ilhas de Falklands, mas o que importa é que elas são chamadas de Falklands por todos os seus habitantes. Portanto o normal seria dizer: "As ilhas Falkland, chamadas pelos argentinos de Malvinas" (o que, acidentalmente, é bizarro, pois quem chamou essas ilhas de "Malouines" foram, no século 18, os franceses, originários do porto de Saint-Malô).
Espero que Argentina e Grã-Bretanha inventem jeitos de cooperar na exploração do petróleo das Falklands (se é que ele existe). Será no interesse de ambos e da própria população das ilhas.
No mais, no episódio que mencionei, o presidente Lula deve ter sido mal assessorado, pois, em regra, ele não é insensível ao destino das pessoas concretas. Em sua recente visita a Cuba, Lula não ousou defender os presos políticos cubanos; mais tarde, ele lamentou a morte de Orlando Zapata; anteontem, reviravolta: ele pediu respeito às decisões do governo cubano. Em suma, ele oscila entre uma bajulação do castrismo (saudade do que ele representou no passado) e a solidariedade com quem luta por direitos e liberdade.
Quem não mostrou solidariedade alguma foi o assessor do presidente, Marco Aurélio Garcia, que assim comentou, cinicamente, a morte de Zapata: "Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro". Alguém dirá que é uma resposta "política", assim como seriam "políticas" as razões de apoiar as pretensões argentinas sobre as Falklands. Pode ser, mas, para mim, a única política que interessa é a que se preocupa com a vida concreta das pessoas.
Da Folha
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