Folha de São Paulo 09/08/2018
Nossas supostas identidades não precisam coincidir com nossas motivações
Em outros termos, ao tomarmos a palavra, não conhecemos direito o próprio lugar de onde falamos —ou melhor, desconhecemos o agente que fala pela nossa boca. Somos divididos e escondemos (inclusive de nós mesmos) uma parte grande de nossas motivações.
A partir dos anos 1980 e 90, a política das identidades, nascida nos EUA, apoderou-se da pergunta "de onde você fala?".
"De onde você fala?", nos anos 1970, evocava a complexidade indefinida de nossas motivações. Hoje, a mesma pergunta parece se satisfazer com as identidades que estão na cara —tipo, você é homem ou mulher, hétero ou homo ou trans, branca ou negra, bonito ou não, rica ou pobre etc., e portanto é de lá que você fala, quer queira quer não queira.
É como se os grupos aos quais pertencemos social, histórica e geneticamente (nossas "identidades") fossem a origem essencial de nossas motivações (escondidas ou não) e, portanto, constituíssem uma espécie de viés inevitável.
Por exemplo, posso ser feminista, mas não deixo de ser homem; posso achar qualquer racismo uma idiotice, mas não deixo de ser branco; posso ser comunista, mas não deixo de ser burguês —e essas coisas todas que eu "não deixo de ser" colocam em questão o valor do que eu digo. Seja qual for nossa ideia ou militância, seríamos sempre uma quinta coluna de nossas identidades.
Essa dúvida (ou crítica) pode ter uma utilidade política, mas o fato é que as identidades às quais parecemos pertencer não coincidem necessariamente com nossas motivações.
A mente é complexa. Tem proletários que defendem políticas econômicas de direita porque, eles dizem, vai que eles ganham na Mega-Sena. Assim como há homossexuais que defendem sua própria discriminação. Interrogando a variedade das motivações, aliás, eis um clássico, para se divertir: a música/poesia de Giorgio Gaber, "Qualcuno Era Comunista".
Na minha história, a política das identidades e a pergunta "de onde você fala?" se cruzaram num estranho debate na New School de Nova York, no começo dos 1990 ou fim dos 80. A decana do departamento onde eu ensinaria era uma mulher branca que publicara livros seminais sobre o novo feminismo e, antes disso, sobre o racismo nos EUA. Isso não a impedia de se opor à ideia de considerar a raça (ou o gênero) como critérios para escolher o corpo docente do departamento. Acusada de dever sua opinião à cor de sua pele, ela declarou (de jeito propositalmente chulo e chocante) sua preferência sexual por homens negros. O que deixou a plateia estupefata e abriu, para mim, uma série de reflexões inconclusivas.
Se eu, homem ou mulher, transo com negros, o que isso diz sobre minha relação com minha "identidade" branca? Será diferente se eu preferir transar passivamente ou ativamente? Os donos de escravos que iam para a senzala para comer eram mais ou menos "brancos" do que aqueles que iam para ser comidos?
Falando de escravos, aliás, outra ideia forte da política das identidades é a das culpas que cada um carregaria consigo por causa das suas identidades.
Pareceria fácil objetar: como um branco chegado ao Brasil nos anos 1940 seria "culpado" pela escravatura no Brasil? Como um muçulmano de hoje seria responsável pela pirataria no Mediterrâneo? Mas, de fato, adoramos assumir as culpas (ou os "direitos") das nossas supostas identidades —provavelmente porque adoramos qualquer coisa que alivie nossa solidão.
Aqui, a psicanálise toma a direção oposta à da política das identidades, pois uma cura psicanalítica, em tese, serve para nos permitir de não ser apenas, neuroticamente, o fruto dos grupos onde nascemos, membros de uma família, de uma nação, de uma raça"...