segunda-feira, agosto 06, 2018

A questão do aborto- Contardo Calligaris




A dor do aborto gera consequências físicas e emocionais sobre a mulher. Foto: Shutterstock





Absorvemos uma cultura que situa na mulher e no seu desejo a origem do mal


Folha de SP- 02.08.2018 


O Supremo Tribunal Federal está ouvindo argumentos a favor e contra a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação.
Na Folha de 29/6: de 2008 a 2017, no Brasil, 2,1 milhões de mulheres foram internadas por complicações de abortos clandestinos. O custo para o SUS foi de R$ 486 milhões. Que o leitor calcule o custo da morte, do desespero e do desamparo dessas mulheres.
Essa realidade à parte, tento resumir minha posição:
1. Ninguém é "a favor" do aborto —só se discute para decidir se ele tem que ser considerado um crime ou não;
2. Para alguns, o aborto é um crime contra a vida do feto. Para outros, a interdição do aborto é um crime contra a vida da mulher que engravidou contra sua vontade. Um aborto deixa cicatrizes psíquicas dolorosas na mulher que abortou, mas uma gravidez indesejada e levada obrigatoriamente a termo também deixa cicatrizes dolorosas —na mulher e no seu rebento.
3. A partir de quando há vida (e, para os religiosos, alma)? Para permitir a fecundação in vitro, decidimos que o embrião inicial não é um ser completo e pode ser descartado. A 12ª semana de gestação é o limite aceito nos países onde o aborto voluntário não é crime: tempo suficiente para a mulher descobrir que está grávida e que não deseja ter filhos (não naquele momento ou não com aquele pai).
3. Quem "defende a vida" deve se lembrar que estão em jogo aqui duas vidas: a do feto e a da mulher que engravidou.
Nesta altura da conversa, se não antes, sempre alguém comenta: "Ela devia ter pensado nas consequências antes de transar".
É bom, porque isso me leva imediatamente ao que mais me importa dizer hoje sobre a questão do aborto.
Declaro-me impedido de opinar sobre esse assunto. E acho que qualquer pessoa honesta e instruída deveria se declarar impedida de opinar sobre o assunto: todos impedidos, salvo as mulheres que abortaram ou que estão atualmente procurando um aborto.
Cuidado: não acho que, em geral, só devam legislar as pessoas interessadas na legalização de seus atos passados ou iminentes. Nada disso.
Mas o fato incontestável, no caso do aborto, é que todos, homens e mulheres, há 2.800 anos, absorvemos uma cultura que situa na mulher e no seu desejo a origem do mal, do pecado e da tentação —começou na mitologia grega, com a figura de Pandora, e piorou com a de Eva, na Bíblia judaico-cristã.
Em relação ao desejo feminino, nossa cultura adota várias estratégias de defesa.
Negamos que esse desejo exista e preferiríamos que a mulher se expressasse só na maternidade (sonhamos com uma mãe virgem, e qualquer maternidade nos parece "santa" porque "justifica" a nossa lubricidade —transamos, mas, veja bem, foi para procriar).
Paradoxalmente, para ilustrar a luxúria e sua punição no inferno, a figura que nossa cultura usa é quase sempre feminina. E a luxúria sequer é o fruto da relação da mulher com um homem, mas da mulher com um diabo (como no famoso tríptico "A Luxúria", de Bruegel, o Velho, 1538).
O desejo feminino, caso ele se manifeste, é responsável por nossa própria lubricidade, pois a mulher nos tenta —como o demônio.
Precisamos controlar o desejo feminino —pense na fantasia masculina trivial de ser aquele que "sabe" fazer gozar as mulheres, quanto, quando e como ele quiser.
Se não conseguirmos controlar o desejo feminino, precisamos reprimi-lo: os homens de nossa cultura inventaram sua "inocência" violentando, torturando e assassinando centenas de milhares de mulheres "incontroláveis". Como teria dito Adão: não fui eu, "foi a mulher que me deste por companheira".
Em 2016-17, em Paris, houve uma linda exposição da qual me chegou o catálogo: "Présumées Coupables", presumidas culpadas. Em tese, os humanos são inocentes até prova do contrário, mas as mulheres são CULPADAS até prova do contrário —pois, de partida, elas são a encarnação do mal.
A exposição de Paris propunha centenas de originais de processos contra mulheres —de Joana d'Arc até as criminosas célebres dos séculos 19 e 20. Desfilavam assim as figuras canônicas do desejo feminino culpado: a encantadora, a maléfica, a sedutora e, claro, a infanticida.
Moldados por um ódio plurimilenar ao desejo sexual feminino, que quisemos exorcizar e controlar pela maternidade, como teríamos legitimidade para opinar sobre a criminalização ou não do aborto? Por pudor, meus amigos, declarem-se impedidos.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).

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