Alain Didier-Weill: A psicanálise e a música
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado como "Didier-Weill procura cotidiano de surpresas",
O Estado de S. Paulo, 23/12/1995.
Alain Didier-Weill nasceu em Lyon. Fez medicina e se formou em psicanálise com Jacques Lacan, de quem foi um dos interlocutores privilegiados. A convite do mestre, fez longas intervenções no seu seminário e por isso se destacou no movimento psicanalítico dos anos 1970. Depois da dissolução por Lacan da Escola Freudiana de Paris, da qual Didier-Weill era membro, ele criou com outros colegas Le Coût Freudien e participou da fundação do Inter-Associatif, que hoje reúne mais de vinte associações europeias. Além de psicanalista, é autor de várias peças de teatro, entre as quais O banco e Pol, que recebeu o prêmio da crítica parisiense em 1975 e foi representada em Dublin, Lyon, Montreal e Nova York. Entre suas obras publicadas no Brasil estão Os três tempos da lei, Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise, Invocações, A hora do chá na casa dos Pendlebury.
Talvez por ser também um artista, Alain Didier-Weill lançou um livro de psicanálise, Os três tempos da lei, que surpreende pela absoluta originalidade.
Didier-Weill ousou fazer o que as associações psicanalíticas tendem a impedir e a psicanálise preconiza: renovar.
A partir da sua obra, já não há como ignorar a importância da surpresa, em torno da qual o autor faz girar a teoria psicanalítica, mostrando, por exemplo, que o homem não pode dispensar o jogo e tampouco a arte porque ele precisa se surpreender. Os três tempos da lei torna claro que a verdadeira referência da psicanálise é a arte e é preciso desconfiar dos que se dizem psicanalistas e são dogmáticos.
Alain Didier-Weill talvez tenha chegado para dizer, como Édouard Manet, que o fundamental é não fazer de novo o que já foi feito pelos outros, mas autorizar-se a invenção.
Para ouvir este psicanalista supreendente, fui ao Rio de Janeiro, onde ele fazia uma série de conferências a convite da associação O Corpo Freudiano.
Betty Milan: Você diz no seu livro que nós precisamos da arte e do jogo para podermos nos surpreender. Como é que você explica esse gosto pela surpresa?
Alain Didier-Weil: Precisamos reencontrar a possibilidade de nos surpreender que tínhamos na infância. A surpresa é a irrupção na vida cotidiana de uma experiência que nos priva do que já sabíamos.
BM: Mas por que isso é importante?
DIDIER-WEILL: Nós que idolatramos o nosso saber descobrimos com a experiência da surpresa que gostamos de ficar despossuídos do saber. O homem tem a nostalgia da infância, da época em que se surpreendia com todas as coisas e se deparava com a novidade absoluta.
BM: O que mais o surpreende no Brasil?
DIDIER-WEILL: A bossa nova. Há no ritmo da bossa nova – tão contrário ao do tango, que nada tem de surpreendente – uma relação com o tempo que permite cantar sem gritar, como os roqueiros. A bossa nova dá vontade de dançar. A maneira como as mulheres brasileiras andam também me surpreende, é uma dança que vai se esboçando. Eu me pergunto ainda porque há tantos travestis nesse país. Trata-se de algo que eu não compreendo.
BM: Você dedica o seu livro a Jacques Lacan, que você também chama de “a nota azul”...
DIDIER-WEILL: Dediquei o livro ao meu mestre e à minha amante, a música. Achei interessante associá-los. A nota azul remete ao blues, claro, mas a ideia de associar a nota de música a uma cor me ocorreu lendo uma carta de Chopin, em que ele fala da nota azul como uma nota especial, porque ela propicia o máximo de surpresa.
BM: Será que você poderia falar da relação existente entre o psicanalista e o músico?
DIDIER-WEILL: Como psicanalistas, nós vivemos no mundo das palavras e trabalhamos com elas. Mas as palavras têm os seus limites. Não conheço, por exemplo, uma interpretação que possa curar uma melancolia ou um delírio. Um analista deve poder ouvir, além das palavras, a música da voz do analisando. Trata-se de algo que não se pode ensinar. Um dia, um analisando me contava uma história que era muito triste, mas ao mesmo tempo ele me fazia ouvir, através da música da sua voz, uma grande alegria. E eu ri. Com o riso, que obviamente não era de zombaria, a pessoa ficou aliviada. Quando eu ri, restituí ao analisando uma alegria que ele tinha e não sabia.
BM: Vocé é psicanalista e dramaturgo. Isso não é habitual. O que significa se dedicar à psicanálise e à arte?
DIDIER-WEILL: Não existe contradição. Na cura analítica, a gente tenta apreender, para além da prosa, as palavras que são verdadeiramente as do sujeito, as palavras que o constituíram e eu chamo de “o poema de cada um”. E, quando o sujeito encontra esse poema, ele pode dar continuidade ao mesmo. O que nós temos de melhor são as palavras do poema que nos criou e nada têm a ver com o discurso universitário.
BM: Depois da dissolução da Escola Freudiana de Paris, você participou da criação do Inter-Associatif. Por que e como nasceu esse movimento?
DIDIER-WEILL: Quando Lacan dissolveu a Escola Freudiana de Paris, apareceram 12 associações que, durante muitos anos, ficaram isoladas, à procura da sua identidade. Quando esta foi conquistada, surgiu a necessidade de estabelecer uma relação entre elas, construir uma passarela. O diálogo interassociativo evoluiu e nós resolvemos oficializá-lo, criando o Inter-Associatif, que hoje reúne vinte associações europeias. A ideia é criar uma comunidade de psicanalistas que não estejam ligados por um discurso uníssono. Queremos manter a heterogeneidade de concepções.
BM: Qual é o futuro da psicanálise na sua opinião?
DIDIER-WEILL: Temo o pior e espero o melhor. A psicanálise que Freud nos transmitiu, a da descoberta do sujeito do inconsciente, é o oxigênio de que hoje precisamos, mas ela é algo perecível. Como, aliás, o discurso da tragédia na Grécia, que só durou um século. Com a aparição do discurso filosófico, o da tragédia sumiu de circulação. Só voltou com Shakespeare, muitos séculos depois. Algo de comparável pode agora se passar com a psicanálise. Por isso, eu me empenho em transmiti-la e sou extremamente grato a Lacan, não porque ele tenha feito o retorno a Freud, mas porque nos mostrou como cada analista pode fazer o retorno, à sua maneira.