‘Psicose’: o Nome-do-pai foracluído*
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
O “maior filme” de Hitchcock, se podemos perdoar essa qualificação convencional, com o qual ele parece ter atingido seu limite. Como se a obra tivesse sido um tal choque que ele tivesse perdido o equilíbrio, e que em seguida se sentisse incapaz de retomar o controle de seus meios. (Comparado à intensidade quase intolerável de ‘Psicose’, ‘Os Pássaros’ aparece como um relaxamento.)
A tonalidade do filme é, desde o primeiro momento, diferente do que o mestre nos havia até então acostumado, pois o aspecto do meio aonde irá se estabelecer o drama não tem nada de idílico, como era o caso de ‘Janela indiscreta’, ou de ‘O terceiro tiro’. De uma ponta a outra do filme, para retomar a bela expressão de Hölderlin faz- um “tempo de chumbo”. E essa inclinação da vida, que se desenrola apoiada no cotidiano cinza de ordinary people confinadas em suas esperanças e medos miseráveis, (solidão, falta de dinheiro, medo da polícia, esforços desesperados para conseguir uma pequena porção de felicidade), é confrontada ao que se poderia chamar a vertente noturna da psicose – o crime patológico. A relação dos dois registros não é mais a de uma superfície calma e de uma profundidade tempestuosa, mas como as duas superfícies de uma tira de Mœbius: ao percorrermos um lado, subitamente nos encontramos sobre o outro. E o ponto de passagem entre as duas é o assassinato de Marion.
Este episódio é muito frequentemente citado como o maior momento do filme e se negligencia, talvez injustamente, o assassinato de Arbogast. O assassinato de Marion nos surpreende como um choque, uma surpresa “irracional” vindo interromper o desdobramento da história: a heroína, que já tinha obtido a aprovação do público, morre sem qualquer razão concebível antes da metade do filme. Sua morte é encenada de maneira bastante cinematográfica: jamais se vê ao mesmo tempo o assassino desconhecido e o corpo inteiro de Marion; o ato é como que partido por uma dezena de close-ups fragmentários que se sucedem em um ritmo frenético (a faca que se aproxima do ventre, a mão que golpeia, o grito da boca aberta...). Dir-se-ia que os golpes repetidos e bruscos do assassino contaminaram a montagem do filme afligindo a continuidade do olhar fílmico.
Mas como ultrapassar semelhante choque em um segundo assassinato?
Hitchcock
evidentemente encontrou a solução: ele consegue intensificar o efeito do
assassinato de Arbogast filmando, ao contrário, em três ou quatro longas
tomadas, de maneira que nós o aguardamos. Aliás, retrospectivamente,
tudo parece anunciá-lo: quando o detetive entra na casa de Norman e se detém ao
pé da escadaria vazia – este leitmotiv de
Hitchcock –, nós sabemos que “alguma coisa vai acontecer”, e quando uma porta
do primeiro andar se abre enquanto ele sobe, nós temos certeza de que “alguma
coisa se prepara”. Há em seguida uma longa tomada durante a qual a câmera se
eleva e gira em um longo travelling,
para enfim se imobilizar mostrando uma visão panorâmica da cena – como se,
antes do acontecimento fatal, ela quisesse nos dar uma ideia clara e geral da
situação.
Então acontece o que nós esperamos: a porta se abre e surge a
aparição já conhecida que derruba Arbogast com uma facada.
Este segundo assassinato constitui uma verdadeira obra prima de suspense e de ascese fílmica, pois se produz sobre o fundo do primeiro e ainda o ultrapassa. O choque mais brutal intervém, com efeito, quando se realiza exatamente o que se esperava, da mesma maneira que em Hegel a contradição mais radical é a tautologia. É como se, nesse ponto, viesse a coincidir tiquê e automaton: a mais terrificante irrupção da tiquê, que perturba a estrutura, tem lugar no momento mesmo onde, por puro automatismo, advém uma necessidade de estrutura.1
Por trás de sua aparente simplicidade, este assassinato faz apelo a uma dialética do esperado e do inesperado, ou seja, do desejo. Essa economia paradoxal, com efeito, onde a realização do que se espera se acompanha de um efeito de inesperado, não é concebível senão no universo de um sujeito dividido, logo desejante, aí onde a espera é investida de desejo. Eu sei bem que o acontecimento X se dará; mesmo assim eu me surpreendo quando ele acontece porque, ainda que sabendo, eu não acredito. Assim Hitchcock nos faz ver a crença inconsciente, que se revela muito mais subversiva do que parece. Pois longe de ser um encontro “interior”, íntimo, a crença está materialmente na atividade efetiva do sujeito: em torno dela se articula o fantasma que rege a efetividade social.
Vejamos, por exemplo, o famoso universo kafkiano, o qual se reprovou por ser uma visão exagerada, fantástica, e subjetiva da burocracia moderna. Esta leitura desconhece justamente o fato de que esse suposto exagero é o lugar de inscrição do fantasma na obra no funcionamento libidinal da própria burocracia “efetiva”. Então, em vez de o universo kafkiano ser uma imagem fantástica da realidade social, ele é, ao contrário, a encenação do fantasma que rege essa realidade. Mesmo sabendo que a burocracia não é todo-poderosa, nosso comportamento efetivo é condicionado pela crença em seu poder absoluto: a realidade social é, ela mesma, em um certo sentido, uma construção ética. Ela se sustenta na pressuposição de um como se: age-se como se se acreditasse que a burocracia é todo-poderosa, que o presidente representa a Vontade do Povo, que o Partido encarna o interesse objetivo da classe trabalhadora. Se esta crença – que, repita-se, não tem absolutamente nada de “psicológico”, mas se encontra materialmente no funcionamento “objetivo”, “efetivo”, do campo social – se perde, a textura do próprio social se dissipa.
Quanto ao desejo, ele reside, à primeira vista, nessa crença: mesmo sabendo que não-x, acredita-se, contudo, que x, porque se o deseja. Mas a realidade é totalmente diferente: essa coisa horrível na qual não se pode acreditar, é justamente o desejo. Assim, a crença inconsciente se analisa como uma defesa face à verdade insuportável do desejo. Enquanto espectadores, nós demandamos efetivamente que o x (o assassinato, a explosão) tenha lugar, e a única função da crença de que esse x não possa acontecer é de dissimular nosso desejo, investido na espera de que o x acontecerá.
Antes do assassinato em ‘Psicose’, Hitchcock já havia explorado esse mecanismo com a explosão da bomba em ‘Agente Secreto’. Quando o artefato assassino não explode no tempo previsto, a angústia que nos oprimia se transforma em uma decepção, que nos faz tomar consciência do nosso desejo. Quando pouco tempo depois ela estoura efetivamente, o atraso parece ter sido para nos fazer aprender a reconhecer o desejo.
Contrariamente ao que se produz quando de uma mentira habitual ou quando se é enganado por uma imagem falsa, aqui, o sujeito não é enganado, na medida em que ele não ignora nada da situação (ele sabe que o assassinato acontecerá, etc.), a instância enganada e surpreendida é “o próprio outro”, o Outro simbólico.
Assim, quando no conto a criança diz em voz alta com toda inocência: “O rei está nu”, quando todo o povo o sabe pertinentemente, por que o simples enunciado de tal evidência produz tal efeito catastrófico? Quem era este que não sabia, quando todos os sujeitos sabiam? O grande Outro. Que a enunciação de uma evidência comum possa desencadear essa catástrofe inter-subjetiva que é a destruição do laço social, possui de fato o valor de uma “prova ontológica da existência do grande Outro”. É por isso que o materialismo lacaniano, cuja tese fundamental é que “o Outro não existe” consiste em afirmar a inconsistência, o caráter vazio, do grande Outro, do campo simbólico.
Uma leitura analítica do filme não deveria partir, então, de um pretenso simbolismo, mas deveria, ao contrário, se ater ao aspecto formal da encenação.
Psicose é, aliás, o melhor exemplo da impotência do método psicanalítico tradicional. Pois se seu conteúdo parece se prestar a esse gênero de interpretação – um sujeito psicótico (Norman) é atormentado pelo supereu materno, etc. –, ao “ler” o filme dessa maneira, descobrindo por toda parte símbolos da “psicologia das profundezas” (como faz, por exemplo, Robin Wood2, o qual vê no térreo da casa o eu [moi] de Norman, no primeiro andar seu supereu, e no porão, o id), fica-se com o sentimento de estar se desviando do essencial. Mas não seria necessário concluir daí, portanto, a ineficácia do método psicanalítico como tal, mas apenas rejeitar a equivalência simbólica entre os personagens, os objetos ou as situações. Não há necessidade de se encontrar as representações simbólicas do supereu materno – ela já está aí com essa presença angustiante da voz “acusmática” da mãe3, e até no olhar superegóico da câmera, quando sua “neutralidade objetiva” começa a ganhar um ar ameaçador, subvertendo a identificação do espectador com os personagens do filme4.
Os diferentes críticos de Hitchcock fazem dessa subversão da identificação do espectador um lugar comum, mas Psicose é, apesar de tudo, excepcional quanto a isso, porque aqui o procedimento de identificação do espectador e sua subversão constituem em si mesmos a chave do filme. No início, nos identificamos com Marion, seguimos a história a partir de seu ponto de vista. De súbito, seu assassinato nos desconcerta, e se faz necessário encontrarmos um outro ponto de apoio. O detetive substitui essa função, até que ele também seja assassinado. Nos desviamos finalmente para Sam e Leila e sua investigação. Falta apenas a identificação com Norman, o verdadeiro herói desta segunda parte. Aí reside precisamente o corte operado pelo primeiro assassinato: antes, a identificação se faz em torno da heroína principal; depois, torna-se impossível se fixar em um personagem que a substitua como uma outra versão dela, como seu negativo em espelho (seus nomes parecem já se refletir: Marion-Norman). Mas de onde provém então essa impossibilidade?
Tentando buscar a resposta nos dois registros que caracterizam o universo de Psicose, o mundo cotidiano de Marion (com Arbogast, Sam, Leila...) e o mundo noturno de Norman, que seria sucessivamente o do desejo e o da pulsão. A passagem de um personagem a outro seria como o reviramento do registro do desejo ao da pulsão em um mesmo personagem.
O desejo, com efeito, é um movimento metonímico ao infinito, um deslizamento em direção ao objeto-causa originariamente perdido. Sempre insatisfeito, ele se presta a todas as interpretações, coincidindo mesmo com sua interpretação, ele próprio é a passagem de um significante a outro, a incessante produção de novos significantes que dão sentido aos precedentes. A pulsão, ao contrário, é em certo sentido sempre já insatisfeita. Limitada a um circuito fechado, à sua pulsação, em vez de buscar um “sempre outro”, ela gira em torno de seu objeto e encontra seu gozo na própria pulsação. Nisso, ela é parte integrante do real – ela é o que “retorna sempre no mesmo lugar” (Lacan) –, enquanto que o desejo está inteiramente no simbólico. A partir disso, sabe-se porque toda identificação com a pulsão é interdita, uma vez que ela é do registro do real, e que “o real, é o impossível”. Só é possível uma identificação a um outro enquanto sujeito desejante. Norman, enquanto sujeito psicótico prisioneiro de suas pulsões, fracassa na identificação – ele não tem acesso ao registro do desejo, que supõe a passagem pela lei paterna.5
A essa diferença entre o desejo e a pulsão corresponde a dualidade dos objetos hitchcockianos: de um lado o “McGuffin”, o “puro nada”, o “segredo” que impulsiona a ação (a fórmula dos motores de avião em Os trinta e nove degraus, o urânio em Interlúdio, etc.), de outro, o objeto opaco, inerte, material, positivo, que encarna um impasse não dialetizável da rede intersubjetiva (o anel em A sombra de uma dúvida, o isqueiro em Pacto sinistro, a chave em Interlúdio e em Disque M para matar, até as aves em Os pássaros). O “McGuffin” é o objeto-causa do desejo que anima o movimento incessante da interpretação, o esforço para desvendar seu segredo, ao passo que a presença massiva do objeto real, não dialetizável, permite ver a inércia pulsional sobre a qual se sustenta o movimento metonímico do desejo.
Psicose poderia hoje constituir uma crítica ao anti-Édipo transgressor. Norman Bates seria um anti-Édipo avant la lettre; para conseguir se libertar da influência do supereu materno, para se desvencilhar da submissão a esta figura cruel e arbitrária do Outro, não lhe falta senão a Lei capaz de deter o desejo – não o seu desejo, mas o desejo do Outro, da mãe. Antes da intervenção da Lei, o sujeito é vítima dos caprichos do Outro, e ela “introduz o fantasma da onipotência não do sujeito, mas do Outro onde se instala sua demanda (...) e com o fantasma a necessidade sua contenção pela Lei”.6 Por esta razão, a intervenção da Lei é até mesmo uma “desalienação”, pois ela detém o desejo do Outro, o fantasma da onipotência do Outro onde o desejo do sujeito está alienado, introduzindo uma regra à qual o próprio Outro deve obedecer.7 Seria errôneo, contudo, concluir do que precede que a psicanálise reivindica a Lei paterna. Ela não ignora que o pai legislador é um impostor, e que esta posição se sustenta somente como um Outro do Outro8: o pai ocupa um lugar impossível, originalmente vazio, aquele da falta no Outro, do buraco em torno do qual se articula a ordem simbólica. Os defensores do anti-Édipo, que proclamam o fluxo do desejo contra a Lei paterna, desconhecem precisamente esse dado incontornável. A verdadeira transgressão da Lei paterna não consiste em libertar o desejo de entraves postos pela Lei, mas antes em provar esse vazio, esse buraco no outro onde se aloja a impostura do pai, o que vem a admitir o caráter “não-todo” do Outro. A verdade que tenta dissimular essa impostura e esse buraco, assim como a deslumbrante figura paterna, não esconde a não ser o vazio de seu lugar. Este é o motivo de a ilusão desta impostura ser consubstancial à verdade: não há verdade sem erro, como não há lugar vazio sem o elemento do qual esse lugar é o lugar.
Este segundo assassinato constitui uma verdadeira obra prima de suspense e de ascese fílmica, pois se produz sobre o fundo do primeiro e ainda o ultrapassa. O choque mais brutal intervém, com efeito, quando se realiza exatamente o que se esperava, da mesma maneira que em Hegel a contradição mais radical é a tautologia. É como se, nesse ponto, viesse a coincidir tiquê e automaton: a mais terrificante irrupção da tiquê, que perturba a estrutura, tem lugar no momento mesmo onde, por puro automatismo, advém uma necessidade de estrutura.1
Por trás de sua aparente simplicidade, este assassinato faz apelo a uma dialética do esperado e do inesperado, ou seja, do desejo. Essa economia paradoxal, com efeito, onde a realização do que se espera se acompanha de um efeito de inesperado, não é concebível senão no universo de um sujeito dividido, logo desejante, aí onde a espera é investida de desejo. Eu sei bem que o acontecimento X se dará; mesmo assim eu me surpreendo quando ele acontece porque, ainda que sabendo, eu não acredito. Assim Hitchcock nos faz ver a crença inconsciente, que se revela muito mais subversiva do que parece. Pois longe de ser um encontro “interior”, íntimo, a crença está materialmente na atividade efetiva do sujeito: em torno dela se articula o fantasma que rege a efetividade social.
Vejamos, por exemplo, o famoso universo kafkiano, o qual se reprovou por ser uma visão exagerada, fantástica, e subjetiva da burocracia moderna. Esta leitura desconhece justamente o fato de que esse suposto exagero é o lugar de inscrição do fantasma na obra no funcionamento libidinal da própria burocracia “efetiva”. Então, em vez de o universo kafkiano ser uma imagem fantástica da realidade social, ele é, ao contrário, a encenação do fantasma que rege essa realidade. Mesmo sabendo que a burocracia não é todo-poderosa, nosso comportamento efetivo é condicionado pela crença em seu poder absoluto: a realidade social é, ela mesma, em um certo sentido, uma construção ética. Ela se sustenta na pressuposição de um como se: age-se como se se acreditasse que a burocracia é todo-poderosa, que o presidente representa a Vontade do Povo, que o Partido encarna o interesse objetivo da classe trabalhadora. Se esta crença – que, repita-se, não tem absolutamente nada de “psicológico”, mas se encontra materialmente no funcionamento “objetivo”, “efetivo”, do campo social – se perde, a textura do próprio social se dissipa.
Quanto ao desejo, ele reside, à primeira vista, nessa crença: mesmo sabendo que não-x, acredita-se, contudo, que x, porque se o deseja. Mas a realidade é totalmente diferente: essa coisa horrível na qual não se pode acreditar, é justamente o desejo. Assim, a crença inconsciente se analisa como uma defesa face à verdade insuportável do desejo. Enquanto espectadores, nós demandamos efetivamente que o x (o assassinato, a explosão) tenha lugar, e a única função da crença de que esse x não possa acontecer é de dissimular nosso desejo, investido na espera de que o x acontecerá.
Antes do assassinato em ‘Psicose’, Hitchcock já havia explorado esse mecanismo com a explosão da bomba em ‘Agente Secreto’. Quando o artefato assassino não explode no tempo previsto, a angústia que nos oprimia se transforma em uma decepção, que nos faz tomar consciência do nosso desejo. Quando pouco tempo depois ela estoura efetivamente, o atraso parece ter sido para nos fazer aprender a reconhecer o desejo.
Contrariamente ao que se produz quando de uma mentira habitual ou quando se é enganado por uma imagem falsa, aqui, o sujeito não é enganado, na medida em que ele não ignora nada da situação (ele sabe que o assassinato acontecerá, etc.), a instância enganada e surpreendida é “o próprio outro”, o Outro simbólico.
Assim, quando no conto a criança diz em voz alta com toda inocência: “O rei está nu”, quando todo o povo o sabe pertinentemente, por que o simples enunciado de tal evidência produz tal efeito catastrófico? Quem era este que não sabia, quando todos os sujeitos sabiam? O grande Outro. Que a enunciação de uma evidência comum possa desencadear essa catástrofe inter-subjetiva que é a destruição do laço social, possui de fato o valor de uma “prova ontológica da existência do grande Outro”. É por isso que o materialismo lacaniano, cuja tese fundamental é que “o Outro não existe” consiste em afirmar a inconsistência, o caráter vazio, do grande Outro, do campo simbólico.
Uma leitura analítica do filme não deveria partir, então, de um pretenso simbolismo, mas deveria, ao contrário, se ater ao aspecto formal da encenação.
Psicose é, aliás, o melhor exemplo da impotência do método psicanalítico tradicional. Pois se seu conteúdo parece se prestar a esse gênero de interpretação – um sujeito psicótico (Norman) é atormentado pelo supereu materno, etc. –, ao “ler” o filme dessa maneira, descobrindo por toda parte símbolos da “psicologia das profundezas” (como faz, por exemplo, Robin Wood2, o qual vê no térreo da casa o eu [moi] de Norman, no primeiro andar seu supereu, e no porão, o id), fica-se com o sentimento de estar se desviando do essencial. Mas não seria necessário concluir daí, portanto, a ineficácia do método psicanalítico como tal, mas apenas rejeitar a equivalência simbólica entre os personagens, os objetos ou as situações. Não há necessidade de se encontrar as representações simbólicas do supereu materno – ela já está aí com essa presença angustiante da voz “acusmática” da mãe3, e até no olhar superegóico da câmera, quando sua “neutralidade objetiva” começa a ganhar um ar ameaçador, subvertendo a identificação do espectador com os personagens do filme4.
Os diferentes críticos de Hitchcock fazem dessa subversão da identificação do espectador um lugar comum, mas Psicose é, apesar de tudo, excepcional quanto a isso, porque aqui o procedimento de identificação do espectador e sua subversão constituem em si mesmos a chave do filme. No início, nos identificamos com Marion, seguimos a história a partir de seu ponto de vista. De súbito, seu assassinato nos desconcerta, e se faz necessário encontrarmos um outro ponto de apoio. O detetive substitui essa função, até que ele também seja assassinado. Nos desviamos finalmente para Sam e Leila e sua investigação. Falta apenas a identificação com Norman, o verdadeiro herói desta segunda parte. Aí reside precisamente o corte operado pelo primeiro assassinato: antes, a identificação se faz em torno da heroína principal; depois, torna-se impossível se fixar em um personagem que a substitua como uma outra versão dela, como seu negativo em espelho (seus nomes parecem já se refletir: Marion-Norman). Mas de onde provém então essa impossibilidade?
Tentando buscar a resposta nos dois registros que caracterizam o universo de Psicose, o mundo cotidiano de Marion (com Arbogast, Sam, Leila...) e o mundo noturno de Norman, que seria sucessivamente o do desejo e o da pulsão. A passagem de um personagem a outro seria como o reviramento do registro do desejo ao da pulsão em um mesmo personagem.
O desejo, com efeito, é um movimento metonímico ao infinito, um deslizamento em direção ao objeto-causa originariamente perdido. Sempre insatisfeito, ele se presta a todas as interpretações, coincidindo mesmo com sua interpretação, ele próprio é a passagem de um significante a outro, a incessante produção de novos significantes que dão sentido aos precedentes. A pulsão, ao contrário, é em certo sentido sempre já insatisfeita. Limitada a um circuito fechado, à sua pulsação, em vez de buscar um “sempre outro”, ela gira em torno de seu objeto e encontra seu gozo na própria pulsação. Nisso, ela é parte integrante do real – ela é o que “retorna sempre no mesmo lugar” (Lacan) –, enquanto que o desejo está inteiramente no simbólico. A partir disso, sabe-se porque toda identificação com a pulsão é interdita, uma vez que ela é do registro do real, e que “o real, é o impossível”. Só é possível uma identificação a um outro enquanto sujeito desejante. Norman, enquanto sujeito psicótico prisioneiro de suas pulsões, fracassa na identificação – ele não tem acesso ao registro do desejo, que supõe a passagem pela lei paterna.5
A essa diferença entre o desejo e a pulsão corresponde a dualidade dos objetos hitchcockianos: de um lado o “McGuffin”, o “puro nada”, o “segredo” que impulsiona a ação (a fórmula dos motores de avião em Os trinta e nove degraus, o urânio em Interlúdio, etc.), de outro, o objeto opaco, inerte, material, positivo, que encarna um impasse não dialetizável da rede intersubjetiva (o anel em A sombra de uma dúvida, o isqueiro em Pacto sinistro, a chave em Interlúdio e em Disque M para matar, até as aves em Os pássaros). O “McGuffin” é o objeto-causa do desejo que anima o movimento incessante da interpretação, o esforço para desvendar seu segredo, ao passo que a presença massiva do objeto real, não dialetizável, permite ver a inércia pulsional sobre a qual se sustenta o movimento metonímico do desejo.
Psicose poderia hoje constituir uma crítica ao anti-Édipo transgressor. Norman Bates seria um anti-Édipo avant la lettre; para conseguir se libertar da influência do supereu materno, para se desvencilhar da submissão a esta figura cruel e arbitrária do Outro, não lhe falta senão a Lei capaz de deter o desejo – não o seu desejo, mas o desejo do Outro, da mãe. Antes da intervenção da Lei, o sujeito é vítima dos caprichos do Outro, e ela “introduz o fantasma da onipotência não do sujeito, mas do Outro onde se instala sua demanda (...) e com o fantasma a necessidade sua contenção pela Lei”.6 Por esta razão, a intervenção da Lei é até mesmo uma “desalienação”, pois ela detém o desejo do Outro, o fantasma da onipotência do Outro onde o desejo do sujeito está alienado, introduzindo uma regra à qual o próprio Outro deve obedecer.7 Seria errôneo, contudo, concluir do que precede que a psicanálise reivindica a Lei paterna. Ela não ignora que o pai legislador é um impostor, e que esta posição se sustenta somente como um Outro do Outro8: o pai ocupa um lugar impossível, originalmente vazio, aquele da falta no Outro, do buraco em torno do qual se articula a ordem simbólica. Os defensores do anti-Édipo, que proclamam o fluxo do desejo contra a Lei paterna, desconhecem precisamente esse dado incontornável. A verdadeira transgressão da Lei paterna não consiste em libertar o desejo de entraves postos pela Lei, mas antes em provar esse vazio, esse buraco no outro onde se aloja a impostura do pai, o que vem a admitir o caráter “não-todo” do Outro. A verdade que tenta dissimular essa impostura e esse buraco, assim como a deslumbrante figura paterna, não esconde a não ser o vazio de seu lugar. Este é o motivo de a ilusão desta impostura ser consubstancial à verdade: não há verdade sem erro, como não há lugar vazio sem o elemento do qual esse lugar é o lugar.
* Psycho (1960). Marion, que é a amante de Sam, foge de Phoenix de carro levando quarenta mil dólares que seu chefe lhe havia encarregado de depositar no banco. Á noite, ela para em um motel pouco freqüentado. O jovem gerente do motel, Norman Bates, lhe conta que ele vive com sua velha mãe, que ele adora, ainda que seja difícil a convivência com ela. Marion toma um banho quando, bruscamente, a velha surge, matando-a com uma dezena de facadas e desaparecendo em seguida. Norman reaparece. Ele parece realmente desolado. Ele começa então uma escrupulosa arrumação do lugar, colocando o corpo dentro da mala do carro de Marion, do qual se desfaz deixando-o afundar em uma lagoa. Marion é logo procurada por sua irmã, Leila, por Sam e por um detetive, Arbogast. Este último vai ao motel, onde Norman se recusa formalmente a lhe apresentar sua mãe. Mas Arbogast retorna sub-repticiamente ao motel para falar com ela, sobe ao primeiro andar e aí é assassinado a facadas. Depois, Leila e Sam descobrem que a mãe de Norman já estava morta há oito anos. Eles dois vão ao motel. Norman é desmascarado: ele era ao mesmo tempo ele mesmo e sua mãe, as duas personalidades coabitando nele.
1 Esta estratégia consistindo em produzir um efeito redobrado por meio do procedimento inverso é explorada por Hitchcock em vários níveis; além do assassinato de Arbogast, lembremos ainda o grande travelling no final de Frenesi: acompanhado de sua próxima vítima, o assassino sobe a escadaria até à porta de seu apartamento, a câmera os segue, e quando a porta se fecha atrás deles, a câmera desce a escadaria até à entrada, continuando a recuar em seguida, atravessando a rua e detendo-se no lado oposto, de maneira que se possa ver toda a fachada em plano geral. O que acontece durante esse tempo no apartamento, a câmera indica pela direção de seu movimento: ela desce seguindo de uma gravata (uma volta, depois um traçado reto) – o assassino estrangula sua vítima com uma gravata... Quando a câmera retorna e sai para o espaço aberto da rua, o silêncio opressor do interior da casa é, subitamente, substituído pelo ruído cotidiano, mas o plano geral da casa guarda apesar de tudo um ar sombrio, a cena já está corrompida porque se sabe o que está acontecendo, nesse momento, no interior. Se o travelling “normal”, para frente, do plano geral ao detalhe, produz a mancha, o travelling para trás dissemina-a sobre a cena inteira.
2 Cf. Robin Wood, Hitchcock’s films, A.S. Barnes and Co., New York, 1977, pp.110-111.
3 Cf. Michel Chion, “La Voix au cinéma”, Cahiers du cinéma, ed. De l’Étoile, Paris, 1982, pp. 116-123.
4 Este é o motivo da importância de não se tomar os leitmotives que se repetem de um filme a outro de Hitchcock por símbolos com significação fixa: trata-se, de maneira totalmente oposta, da forma vazia do significante, de elementos por assim dizer “disponíveis”. Por exemplo, encontram-se em quase todos os seus filmes a escadaria sob suas duas formas principais, a grande escadaria suntuosa oval (Suspeita, Interlúdio, Marnie – confissões de uma ladra) e a escadaria reta comum (Um corpo que cai, Psicose, e, novamente Marnie – confissões de uma ladra, etc.); várias vezes, se encontra o motivo de uma mulher má de cabelos negros que, da janela, lança um olhar ameaçador sobre o herói (Miss Danvers em Rebecca, Milly em Sob o signo de capricórnio, Lil em Marnie); a cabeça seca da mãe morta, em Psicose, tem um precedente na cabeça embalsamada colocada pela criada para chocar Ingrid Bergman em Sob o signo de capricórnio; o motivo da heroína que observa de uma maneira impotente um copo de leite fascinante e luminoso – Suspeita – retorna em Interlúdio, etc. Todos esses motivos são elementos a partir dos quais Hitchcock “bricola”, em cada um de seus filmes, uma totalidade específica que sobredetermina sua significação.
5 Cada uma das duas versões alcança seu objetivo, seu ponto de fechamento. A versão do desejo termina no momento em que o sujeito desejante, levado pelo movimento interpretativo, pelo esforço de “descobrir o segredo”, se encontra confrontado ao pequeno a, a seu equivalente objetal, à presença inerte de uma coisa que detém esse movimento – trata-se do confronto final de Lila com o crânio mumificado da mãe de Norman. A versão da pulsão termina com a vitória final da Voz da mãe, que se apodera completamente de Norman.
6 J. Lacan, Écrits, Seuil, Paris, 1966, p.814.
7 O “capricho do Outro” onipotente é também uma maneira de evitar a falta do Outro. A lógica aí é a seguinte: o sujeito se encontra diante da impossibilidade-de-gozar, o gozo (a “satisfação universal”) é sempre fracassado, o Outro não pode jamais lhe conseguir o objeto; ele dá conta deste fato dizendo a si mesmo: “Se eu não estou satisfeito, não é por causa da impossibilidade fundamental da satisfação universal, mas por uma decisão livre, um capricho do Outro onipotente que quer me privar do objeto”. As dimensões teológica e política de tal lógica são extremamente importantes: de um lado, o longo debate teológico a respeito do capricho, do livre arbítrio de Deus (o arbitrário absoluto da predestinação); de outro, o fantasma do despotismo como um poder onipotente aonde reina o capricho, o arbitrário absoluto. (Cf Alain Grosrichard, Structure du sérail, Seuil, Paris, 1978.)
8 Cf. J. Lacan, Écrits, p.813.
Slavoj Žižek
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