quinta-feira, junho 24, 2010

Contardo Calligaris



Torcer ou pensar, eis a questão
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O torcedor pensa e grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando está sozinho
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Pela minha história, sinto-me parte de várias nações e, na Copa do Mundo, torço por todas elas. Quando se enfrentam duas seleções com as quais me identifico, sou privilegiado: seja qual for o desfecho, um de meus times preferidos ganhará.
Embora tenha uma verdadeira repugnância por qualquer forma de nacionalismo, a torcida da Copa do mundo é a única à qual consigo me juntar. É porque, na Copa, os torcedores vibram, festejam ou se desesperam sem transformar os adversários em objetos de ódio e desprezo.
Exemplo. No jogo de domingo entre Brasil e Costa do Marfim, o time africano pegou pesado, a ponto de me inspirar uma certa antipatia. Também, por ufanismo continental, o público sul-africano torceu pela Costa do Marfim e aplaudiu a expulsão de Kaká, cuja única culpa foi de se irritar e manifestar sua irritação.
Pois bem, ninguém, nem o exuberante pessoal na sacada do prédio em frente do meu, gritou impropérios contra o time da Costa do Marfim e ainda menos contra seu povo. Tampouco ouvi insultos contra o público sul-africano.
Na hora da expulsão de Kaká, ecoou, isso sim, um único berro que expressava uma forte dúvida sobre a honra e o recato da mãe do árbitro. Mas aí, também, ninguém é de ferro (estou brincando).
Por que é possível torcer na Copa do Mundo sem ser devorado pela irracionalidade que afeta as torcidas organizadas de nossos clubes?
A Copa acontece só a cada quatro anos, ou seja, as rivalidades são esporádicas, não se cristalizam. Além disso, os adversários da Copa são variados, distantes e diferentes de nós, enquanto, em geral, os humanos gostam de odiar seus vizinhos.
Justamente, quando existe uma rivalidade estabelecida entre duas seleções nacionais, é entre países próximos, com similitude de destino, como Brasil e Argentina.
Mas mesmo esse tipo de rivalidade "tradicional" não se compara com o ódio que opõe as torcidas de clubes da mesma cidade e do mesmo Estado. Essas torcidas são vítimas dos piores efeitos do grupo sobre o pensamento e os critérios morais do indivíduo.
O que é efeito de grupo? Exemplo: UM jovem playboy entediado não colocaria fogo num índio que dorme num abrigo de ônibus. QUATRO playboys entediados são capazes disso; é possível, aliás, que os quatro se reúnam justamente para, juntos, autorizar-se a fazer algo que, separados, eles nunca fariam.
Vamos agora a um jogo entre São Paulo e Corinthians (ou qualquer dupla de rivais da mesma cidade).
O torcedor corintiano, que está do meu lado, bem antes que a bola role, já roga pragas à torcida do São Paulo, que são "a bicharada" ou "os bambis". Nosso corintiano, uma vez extraído de sua torcida, não imagina, obviamente, que todos os são-paulinos, jogadores e torcedores, sejam "viados".
Tem mais: na grande maioria dos casos, na sua vida "real", fora do estádio, ele tampouco pensa que a opção sexual de alguém possa servir de insulto, ou seja, ele não acredita que os são-paulinos sejam bichas e não acredita que "bicha" seja um insulto.
Meu amigo torcedor, aliás, poderia ser ele mesmo homossexual; tanto faz, não por isso ele deixaria de gritar "bicha-raaaada". O mesmo vale para um são-paulino e seus gritos contra a torcida corintiana.
Resumindo, por fazer parte da torcida e para se integrar nela, o torcedor diz ou grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando pensa sozinho (que, cá entre nós, é o único jeito de pensar).
Por isso, só consigo torcer na Copa, e para quatro nações. Isso sem contar os times pelos quais me apaixono "só" porque jogam bem.


Começo hoje meu Twitter: @ccalligaris, com o "s" final que falta no meu e-mail, www.twitter.com/ccalligaris. Postarei minirelatos de eventos do cotidiano, reflexões (minhas ou lidas, ouvidas e citadas), fotografias, indicações de filmes, peças, livros, exposições (e, por que não, restaurantes, pratos e vinhos). Haverá avisos de atividades (palestras etc.) e crônicas de minhas viagens.
Em outras palavras, será um microdiário -com um pouco de sorte, um novo estilo; de qualquer forma, uma nova experiência. Como se diz, todos estão convidados.


PS: (Elianne) Continuarei postando o link daqui para democratizar o que ele escreve. Gosto de dividir com vocês. E, vamos lá seguir o Contardo e o meu Twitter:
@clcalligaris para saber mais.

quarta-feira, junho 23, 2010

Jacques Lacan: Seminário Completo (1/7)

Contardo Calligaris on Twitter



Começo hoje meu twitter: ccalligaris, com o "s" final que falta no meu e-mail, ou seja,
www.twitter.com/ccalligaris


Postarei minirelatos de eventos do cotidiano, reflexões (minhas ou lidas, ouvidas e citadas), fotografias, indicações de filmes, peças, livros, exposições (e, por que não, restaurantes, pratos e vinhos). Haverá avisos de atividades (palestras etc.) e crônicas de minhas viagens. Em outras palavras, será um microdiário -- talvez, com um pouco de sorte, um novo estilo; de qualquer forma, uma nova experiência. Como se diz, todos estão convidados.

PS(de Elianne): continuarei fazendo o outro www.twitter.com/clcalligaris com os links dos artigos aqui:
Oriente-se

O layout dos dois é meu. Quem quiser ter uma página, é só falar comigo. :)

quinta-feira, junho 17, 2010

Contardo Calligaris- Os adolescentes que merecemos




Os adolescentes que merecemos 


Daqui da Folha de São Paulo.

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Você prefere sua filha errando de balada em balada ou velejando sozinha ao redor da Terra?
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Abby Sunderland nasceu na Califórnia, em outubro 1993. A família vivia num barco, ao longo da costa do Pacífico.
O irmão mais velho de Abby, Zac, aos 17 anos, tornou-se o mais jovem velejador a circum-navegar a Terra sozinho. O recorde de Zac não resistiu muito tempo: logo, Michael Perham, um adolescente inglês um ano mais jovem que Zac, completou sua volta solitária ao mundo. Note-se que Perham, aos 14 anos, já tinha atravessado o Atlântico sozinho.
Abby também, desde seus 13 anos, sonhava em circum-navegar a Terra. No começo deste ano, aos 16, sozinha, ela largou as amarras de seu veleiro de 12 metros e desceu o Pacífico Sul. Passou o Cabo Horn, atravessou o Atlântico e passou o Cabo de Boa Esperança, lançando-se no Oceano Índico. Entre a África e a Austrália, Abby encontrou uma tempestade à qual o mastro de seu barco não resistiu. No sábado passado, depois de dois dias à deriva num mar infernal, ela foi resgatada.
Pela internet afora e na imprensa dos EUA, os pais de Abby estão sendo criticados por um coro indignado: como vocês puderam deixar uma menina de 16 anos errar sozinha pelo mar e pelos portos? Fora tsunamis e tempestades, o que dizer dos meses insones espreitando o mar e o vento a cada meia hora, da solidão, do trabalho incessante, do frio, do desconforto de uma navegação solitária ao redor do mundo? E os piratas ao sul da Malásia? Por qual permissividade maluca vocês aceitaram que Abby se lançasse numa aventura que seria arriscada para gente grande?
Já a bordo do barco que a resgatou, Abby escreveu no seu blog: "Há uma quantidade de coisas que as pessoas podem estar a fim de culpar pela minha situação: minha idade, a época do ano e muito mais. A verdade é que passei por uma tempestade, e você não navega pelo Oceano Índico sem entrar em, no mínimo, uma tempestade. Não foi a época do ano, foi apenas uma tempestade do Oceano Sul. As tempestades fazem parte do pacote quando você veleja ao redor do mundo. No que concerne à idade, desde quando a mocidade do velejador cria ondas gigantescas?".
Se você duvida que Abby tivesse a maturidade necessária para sua empreitada, leia o diário da viagem (www.soloround.blogspot.com) -sobretudo as notas de Abby durante a interminável navegação no Atlântico Sul.
Os que censuram os pais de Abby afirmam que nunca autorizariam seus rebentos a velejar sozinhos ao redor do mundo porque, aos tais rebentos, falta seriedade e falta experiência. Eles devem ter razão -afinal, eles conhecem seus filhos. Mas cabe perguntar: essa falta de seriedade e experiência é efeito de quê? Da simples juventude? Duvido: La Pérouse, o navegador francês, aos 17 anos, em 1758, já estava combatendo os ingleses ao largo de Terra Nova. Então, efeito de quê?
Pois é, provavelmente, os mesmos pais que se indignam com a "irresponsabilidade" dos genitores de Abby permitem a seus filhos, mais jovens que Abby, de sair em baladas nas quais os únicos adultos são os que vendem drogas e bebidas.
Será que a volta para casa de madrugada, num carro dirigido por amigos exaustos, exaltados ou sonolentos, é menos perigosa do que a circum-navegação do mundo num veleiro pilotado por Abby, animada há anos por um desejo intenso e focado? E, de qualquer forma, qual das duas experiências você prefere para seus filhos?
O fato é que muitos pais preferem que os filhos errem como baratas tontas, de festinha em festinha. Por quê? Simples: assim, os filhos ficam infinitamente mais dependentes.
E os pais modernos, em regra, querem os filhos por perto; eles adoram que os filhos demonstrem que eles não são suficientemente maduros para sair pelo mundo e para correr os riscos que o desejo acarreta.
Não deveríamos nos perguntar qual é a loucura dos pais que empurraram Zac, Abby e Michael mar adentro, mas qual é a loucura dos pais que preferem largar seus filhos nas noites, em que vodca, cerveja, maconha, ecstasy e papo furado servem para convencer os próprios adolescentes de que ainda não começaram a viver e, portanto, vão precisar dos adultos por muito tempo.
Comentando a aventura de Abby, um pai me disse: "Nunca deixaria minha filha navegar sozinha, eu não quero perdê-la". Pois é, "não quero perdê-la" em que sentido?

PS: (Elianne) Onde está a Abby? Aqui

segunda-feira, junho 14, 2010

Contardo Calligaris- O corpo masculino



Alguém que pensa o corpo masculino.
O que é um corpo masculino desejado?

Contardo Calligaris- Confessionário



Contardo Calligaris em seu consultório, no bairro paulistano dos Jardins. Perto do divã, mantém a imagem de São Felipe que herdou do pai



Contardo Calligaris em seu consultório, no bairro paulistano dos Jardins.
Perto do divã, mantém a imagem de São Felipe que herdou do pai


O psicanalista é autor da peça “O Homem da Tarja Preta”



Por Armando Antenore da Bravo

Quer graça pode haver num ovo de galinha? Praticamente nenhuma, se quem o observa já perdeu o ímpeto de maravilhar-se com as banalidades do mundo. Mas, para crianças de 4 ou 5 anos, um ovo agrega mistérios que tirariam o sono dos filósofos. Como a natureza cismou de aninhar, em uma elipse tão despojada e frágil, um chumaço de plumas que, mais dia, menos dia, se transformará num galo altivo e musculoso? Sob os olhos tenros da infância, clara e gema são perguntas. Por isso, quando a empregada que trabalhava naquele pequeno sobrado de Milão colocou um trio de ovos prenhes diante de Contardo, o menino não conseguiu disfarçar a inquietude — um alvoroço que desaguou em assombro mal as cascas se romperam e desnudaram três pintinhos assustadiços. Um dos filhotes tinha a penugem marrom, com uma tonalidade semelhante à da nocciola (avelã). Contardo o batizou de Nocciolino. O segundo, muito branco, lembrava um picolé de limão. Virou Limontino. É certo que o terceiro também ostentava uma cor e um nome. O tempo, no entanto, se encarregou de apagá-los, talvez pelo impiedoso prazer de reiterar que, cedo ou tarde, nada fugirá do esquecimento. Poucas semanas depois de os ovos se quebrarem, Nocciolino & cia. teimavam em seguir Contardo para cima e para baixo. Marchavam perfilados atrás dele e, durante o trajeto, não cessavam de piar. Na ocasião, início da década de 1950, o garoto dividia o sobrado milanês com os pais e Bernardino, o primogênito da família. Os dois irmãos guardavam alguma distância um do outro, em razão de uma tênue rivalidade que se agravaria no futuro (disputa inconsciente pela atenção materna?). Não à toa, o caçula aplaudiu a chegada dos novos amigos. Julgou que as aves o acompanhassem por afeição. Lógico que ainda desconhecia as pesquisas revolucionárias de Konrad Lorenz. Em 1935, o zoólogo austríaco demonstrou que patos, gansos e pintinhos, tão logo abandonam os ovos, adotam como "mãe" o primeiro animal que avistam, seja um gavião, uma tartaruga ou um leopardo, e só o largam depois de adultos. Não se comportam assim por convicção nem por gosto, mas por uma tragicômica ilusão. — Um dia os Calligaris saíram do sobradinho com galinheiro no quintal e se mudaram para um apartamento espaçoso. Contardo, agora beirando os 7 anos, possivelmente sentiu falta do cortejo alado e barulhento que liderava. Tratou, então, de arranjar uma orquestra imaginária, meia dúzia de músicos dispostos em fila indiana e amarrados numa única corda. O moleque puxava-os pela rua ou dentro do apartamento e, não raro, sugeria que tocassem: uma sonata, um bom jazz, o trecho de uma ópera. Solícitos, os rapazes sempre o acatavam, enchendo-lhe o cotidiano de uma trilha sonora inexistente.

Detesta torcidas de futebol, cerimônias religiosas que hipnotizam multidões, discursos populistas e qualquer manifestação que se apoie no regozijo coletivo. Teme o coro em uníssono das massas. Acredita que um jovem, perambulando de madrugada pelas praças de Brasília, dificilmente botaria fogo num índio adormecido. Mas se o mesmo jovem encontrasse outros quatro, se os cinco comungassem umas cervejas, se trocassem opiniões preconceituosas à mesa do bar, se concluíssem que a noite pedia uma farra homérica, poderiam reunir coragem para praticar juntos uma atrocidade que não cometeriam sozinhos. — Por preferir os peixes sem cardume, adquiriu um inusitado cacoete de linguagem: expressar-se no contrafluxo. Quando ouve um comentário que o satisfaz, revela o agrado primeiro com uma ou duas negações: "Não, não. Eu concordo". É como se necessitasse avisar aos interlocutores que, de antemão, rejeita os consensos. É como se depositasse eternamente uma oferenda no altar das adversativas: "Eu concordo. Entretanto...". — Ainda não se apaziguou com o próprio berço, a Itália. O fascismo, impossível varrer da memória, floresceu por lá. E tudo graças à cegueira de indivíduos que, em grupo, pensavam enxergar mais longe. Seu querido pai, Giuseppe, um cardiologista, não engrossou o rebanho de Mussolini. Participou da Resistência e pagou caro pelo atrevimento. Perseguido, teve de se esconder nas montanhas. Contardo nasceu depois do calvário, em maio de 1948. Mesmo assim, nunca absolveu plenamente a pátria que desejou matar Giuseppe. — Passou por diversos lugares (Inglaterra, Suíça, França, EUA) até ancorar no Brasil. Antes de ler o italiano, alfabetizou-se em inglês. Já na lição inaugural, aprendeu uma palavra tão complicada quanto incomum: platypus (ornitorrinco), justamente o mamífero com bico que não sabe direito de onde é, se da água, da terra ou do céu.

O nome Contardo, de origem germânica, quer dizer "cachorro duro, aguerrido". Lutador de boxe na juventude, o psicanalista se identifica com o significado. Reconhece que, de fato, possui algo de "cachorrão". Quando morde, não faz questão de soltar. Cultiva ódios e inimizades sem nenhuma culpa. — No consultório paulistano em que atende, mantém o pai perto do divã. Ou melhor: conserva ali uma imagem de São Felipe, espanhola, que herdou de Giuseppe. O santo de madeira segura uma corrente com a mão esquerda. E a corrente aprisiona Satanás. Para Contardo, trata-se de um símbolo perfeito daquilo que a psicanálise almeja: arrancar nossos demônios dos porões e preservá-los sempre à vista, mas sob estratégico controle.

domingo, junho 13, 2010

Contardo Calligaris - Fronteiras do Pensamento edição 2008


Ainda é preciso ler Freud?


Revista Cult »

Fernando Aguiar

Fora do círculo familiar, os 50 anos de Freud foram festejados apenas pelo pequeno grupo de psicanalistas vienenses que se reuniam em sua casa todas as quartas-feiras desde o outono de 1902. A ocasião era propícia a comemorações: não sendo mais o único analista, sua psicanálise já ultrapassara os limites de Viena – a conquista dos “arianos” de Zurique neutralizara a vil acusação de “ciência judia”. Vivia-se a fase áurea da clínica psicanalítica e, em termos de publicações de fôlego, jamais haveria para Freud ano igual ao anterior (1905). Além do livro sobre os chistes e do “Caso Dora”, houve os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, com o qual ele adicionara ao discurso do desejo (1900) o discurso da pulsão, definindo categoricamente os dois eixos centrais de sua investigação metapsicológica.

Como presente de aniversário, os alunos ofereceram-lhe um medalhão, realizado pelo escultor K. M. Schwerdtner. Sobre uma face, fora gravado o perfil de Freud, e sobre a outra, a cena de Édipo em frente à Esfinge. Em volta do desenho, um verso de Édipo Rei: “Aquele que resolveu o famoso enigma e que foi um homem de enorme poder”. Lendo a inscrição, Freud teria empalidecido: “Parecia ter visto um fantasma”, escreveu E. Jones. Depois de P. Federn admitir ser o autor da escolha da citação, Freud, agitado, contou que, quando jovem estudante de medicina na Universidade de Viena, costumava olhar os bustos dos antigos professores, imaginando que um dia poderia estar entre eles: o seu traria exatamente a mesma citação de Sófocles inscrita no medalhão com o qual acabava de ser honrado.

A posição de marginalidade e ruptura da psicanálise

Desse episódio, apenas a segunda parte do sonho diurno de Freud materializou-se: afinal, como o Édipo da mitologia, ele decifrou, no plano da cultura, o próprio enigma edipiano, adentrando os mistérios da sexualidade humana. Quanto a figurar entre pares, nem seria o caso, pois de fato jamais fora médico; foi um psicanalista e um magnífico professor. Mas, na Universidade de Viena, seu estatuto não passou de um professor extraordinarius, que, no regime acadêmico da época, designava quem se encarregava de cursos que não constavam do currículo oficial obrigatório.

Esse caráter marginal permanece também o destino da psicanálise, e mesmo seu grande trunfo ou talvez condição de sobrevivência. Na academia, em particular, a psicanálise não deve estar no centro de uma formação, mas exterior aos outros domínios. O próprio Freud assumia uma incompatibilidade com toda sorte de “existência oficial” e demandava “independência em todas as direções”. O professor francês Jean Laplanche afirma que o analista [e a psicanálise] nasce e desenvolve-se apenas na marginalidade e na ruptura, e não pode garantir-se senão preservando todo um jogo de extraterritorialidades, em todos os níveis: marginalidade do tratamento em relação às instâncias da vida cotidiana, da análise pessoal em relação aos requisitos das sociedades de analistas, do exercício da análise em relação às profissões reconhecidas (médico ou psicólogo), das instituições analíticas em relação às instituições e aos reconhecimentos oficiais etc. “Como analistas, como pesquisadores e como universitários, afirmamos (…) que a experiência analítica constitui um campo epistemológico específico e autônomo”. A contrapartida é que ela não seja propriedade privada de um indivíduo ou de uma instituição.

É que ao fim e ao cabo, como teoria do inconsciente, a psicanálise acabaria por se tornar indispensável para todas as ciências que se ocupam da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições como a arte, a religião ou a ordem social. “Creio ter introduzido alguma coisa que ocupará constantemente os homens”, escreveu Freud a Binswanger, em 1911.

Não há qualquer anseio imperialista na pretensão freudiana. Se a disciplina por ele fundada deve interessar à psicologia, às ciências da linguagem, à filosofia, à biologia, à história da civilização, à estética, à sociologia e à pedagogia, isso não faz mais do que prolongar o movimento mesmo de seu próprio pensamento, “interessado” em todas essas disciplinas, conforme nos explica S. Mijolla-Mellor (Recherches en Psychanalise, 2004). Desse ponto de vista, antes de interessar a outros campos do saber ou da cultura, é a própria psicanálise que tem interesse nesses campos, sendo eles parte constitutiva dela própria. Quanto ao interesse das outras disciplinas pela psicanálise, é certo que tal movimento não elimina o fato da resistência – e esta diz respeito à vexação psicológica dos homens diante de seus desejos inconscientes tais como apontados pela invenção freudiana. Na fundação da Associação Psicanalítica Internacional, em 1910, Freud anunciou aos colegas: “Os indivíduos aos quais fazemos descobrir o que recalcam experimentam hostilidade a nosso respeito; não podemos esperar uma amabilidade simpática da sociedade para com aqueles que desvelam impiedosamente seus defeitos e insuficiências”. Em carta a Arthur Schnitzler, ainda escreveria que a psicanálise não é “um meio de se fazer amar”.

Devemos esperar, por isso, de tempos em tempos, vilanias tais como a infame e medíocre compilação de críticas publicada na França, em 2005, com o nome de O Livro Negro da Psicanálise, no qual Freud é tratado como falsário, trapaceiro e mentiroso (tal como faz agora, em 2010, Michel Onfray em O Crepúsculo de um Ídolo: a Fabulação Freudiana). Costuma-se aproveitar essas ocasiões para mais uma vez se falar em “crise da psicanálise”, o que Jacques Lacan (1901-1981), já em 1974, refuta com vigor, em termos definitivos: “A crise (…) não existe (…).” A psicanálise ainda não encontrou seus próprios limites. Há muito que descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise não há solução imediata, mas apenas a longa e paciente busca das razões”. Além disso, há Freud, arremata Lacan, “que ainda não compreendemos inteiramente”.

sábado, junho 12, 2010

Por que estes homens choram?




Muitos homens se reconhecerão neste vídeo. E, nós mulheres, pensaremos sobre o lugar do homem no mundo atual. O feminismo deu espaço para que papéis fossem redefinidos. É isto que o diretor pretende mostrar. Vivemos num mundo preconceituoso, onde o que difere sofre em todos os espaços- familiar, inclusive, sabemos- não é novo. o que é novo aqui é a forma comovente como estes homens se expõem. Lindo filme.

quinta-feira, junho 10, 2010

O que é o amor pra você hoje? Contardo Calligaris

Contardo Calligaris: O direito de buscar a felicidade





O direito de buscar a felicidade

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Não posso exigir que, para eu ser feliz, todos procurem a mesma felicidade que eu busco
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O artigo sexto da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".
O Movimento Mais Feliz promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).
É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.
Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.
Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.
A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.
Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.
Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.
Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.
Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.
Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.
Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?
Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?
Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência.


No Twitter: aqui.

quarta-feira, junho 09, 2010

Jacques Lacan falou. Por quê?


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Jacques Lacan falou. Por quê?*

Para descobrir, devemos ouvir aqueles que, depois de sua morte, falam menos dele do que de sua própria posição em relação a ele? Este não é o caminho certo.

É preciso lembrar quem ele era. Ele era um homem, um homem que procura a verdade, que descobriu o caminho para a pesquisa pela palavra.

HUMANOS (ou seria O Homem?)

As ciências humanas são, provavelmente, assim chamadas porque nos enriquecem com o conhecimento sobre as várias funções do homem, ao fazer isso, permitem esconder e esquecer a nossa própria ignorância . Nossa desatenção para o fato de que cada homem é um mistério.
Um mistério que permanece insondável.

Jacques Lacan é o primeiro homem atento ao homem, ainda inacessíveis à sua realidade, sua própria personalidade e cujo desejo nunca está satisfeito.

No mundo intelectual, às vezes era classificado como um psicanalista, às vezes como um filósofo ou um poeta, ou como um estruturalista, surreal, o ator ... a lista continua. Mas é acima de tudo, um homem, ele não diz que ele era humano.

Sua contribuição para a psicanálise, que é tão importante, não diz quem ele era. Pelo contrário, foi um homem único, chamado Jacques Lacan, ele poderia destacar a descoberta, inaugurada por Freud: o do inconsciente. Reforçou de tal forma que o mundo dos psicanalistas não o concedem sem emoção.

Mas o que é que o inconsciente? Ao ouvir a palavra, todos se importam de definir. O que revela tal preocupação? Na maioria das vezes indica, menos a busca de clareza, que o vazamento de um mistério que inquieta e, no entanto, caracteriza a vida psíquica em sua realidade.

O inconsciente é um desafio a qualquer definição, isso significa o próprio homem nesta dimensão do mistério que não dá nenhuma vantagem para a sua consciência.

Falar com o homem do inconsciente, lembrando-lhe que se aplica a esquecer, é a economia do presente esquecendo que tudo é organizado para promover no final do século XX.
Ele lembrou que o centro também é em si mesmo. Ele descobriu que a estrada adiante não é o que Descartes foi inaugurou.

"Penso, logo existo. "

Esta dedução é baseada em Descartes vai permitir-lhe compreender o que "eu estava pensando?" Lacan respondeu: "Eu não sou o que penso." As molas da verdade, portanto, formuladas a partir da descoberta do inconsciente, ou seja, o próprio homem.O reconhecimento do inconsciente permite que os homens tenham acesso à sua realidade.
Longe de fechar-se dentro de sua vida consciente, ele deve se abrir a uma relação que constitui uma relação com o Outro.
Essa relação suscita uma busca: a busca da verdade sobre o Outro e, inseparavelmente, a verdade sobre o homem, constituído por sua relação com o Outro.

Continua...


*Sermon prononcé par Marc-François Lacan, moine bénédictin, à la mémoire de son frère, le 10 septembre 1981 en l’église Saint Pierre du Gros Caillou.

segunda-feira, junho 07, 2010

Por que ele queria ser menina?




Um filme imperdível: "Ma vi en rose".

A estória de um menino de 7 anos que deseja ser menina. O conflito dos pais, o preconceito de amigos e vizinhos, e ele achando que era a coisa mais natural do mundo o seu sonho.
Muito bom. Incrível a atuação do menino. Bem dirigido, ótimos atores. Um filme que todos deveriam ver, até porque a gente nunca sabe se um dia iremos nos deparar com esta situação. Lembro de clientes gays que me diziam que desde os sete anos desejavam homens. É vero. É filme com categoria comédia, mas é mais do que isto- leva a refletir.

Por que ele queria ser menina? O que o levou a isto? O pai meio omisso? A identificação com as figuras femininas? A mãe extremamente sedutora? A mãe que desqualifica a figura do pai? Um fator genético?
Não temos resposta. Vejam e digam o que acham.

Ficha técnica aqui.

quinta-feira, junho 03, 2010

Contardo Calligaris- Conselho para escolher carreira





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Você pode mudar de faculdade e de carreira, e essas mudanças não são a prova de fracasso algum
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A escola pública italiana impunha uma aula semanal de religião (católica, claro). Na terceira série, aprendi que, para me tornar sacerdote, seria imprescindível que eu tivesse "a vocação" (com o artigo definido).
Em princípio, essa condição facilitava as coisas: afinal, ou eu era chamado por Deus ou não era. No entanto, Deus não chama a gente por carta registrada.
Era possível, eu pensava, que ele se manifestasse por sinais misteriosos, que eu não entenderia, ou pior, que eu evitaria entender -talvez porque preferisse perseguir ambições mais mundanas ou porque meus pais não gostassem da ideia de ter um filho padre.
Seja como for, se eu recebesse, mas não escutasse a chamada, não estaria apenas fazendo pouco caso da vontade divina: eu estaria fugindo de meu destino, seria culpado de desperdiçar minha vida.
Na quarta e quinta séries, foi a vez de o Estado se preocupar com nossas vocações. Naquela época, era necessário escolher muito cedo entre o clássico, o científico e os cursos técnicos que levavam diretamente para o trabalho, sem dar acesso para as faculdades.
Tratava-se, portanto, de saber se tínhamos jeito para as humanas ou para as exatas e, em cada caso, qual era o tamanho do nosso jeito. Uma casa caiu, sepultando seus moradores; seu primeiro pensamento é "se Deus existe, por que ele permite tamanho sofrimento?"; pois bem, as humanas são sua vocação.
Restava verificar, com outros testes, se você tinha pano suficiente para ser professor de filosofia ou se era melhor que você se contentasse em ser repetidor no primário.
De fato, a orientação profissional precoce eternizava a divisão social (nunca vi um aluno de classe média-alta ser encaminhado para cursos técnicos). Mas a intenção era nobre: descobrir qual era a semente escondida em cada um de nós.
Detectando o embrião de nossas aptidões e disposições, poderíamos agir de maneira que a vida realizasse plenamente o nosso potencial.
A partir dos anos 60, em grande parte graças à influência da psicologia de Alfred Adler, ficou claro que, na hora de escolher uma carreira, os talentos e as predisposições são tão importantes quanto os sonhos, os devaneios, as paixões e as imagens idealizadas de tal ou tal outra profissão que encontramos, por exemplo, nas ficções que nos marcam.
O medo de não escutar a chamada divina foi substituído pelo medo de não entender direito nosso próprio desejo -pois seríamos competentes, "realizados" e felizes só se nossa profissão for uma extensão de nossas paixões íntimas. Nesse caso, o trabalho seria leve e divertido, como um hobby.
Em suma, a semente que estaria em nós e que deveria vingar se tornou mais complexa. Mas a ideia de que existe uma semente que é preciso descobrir continuou valendo e preocupando pais e filhos.
Uma leitora, Cecília, me escreve sobre as inquietudes da filha, Luana, 16, na hora de escolher uma carreira que esteja "em consonância com a personalidade, o temperamento, o querer" de Luana e também "com o mercado do trabalho".
Uma sugestão para Luana. Entendo que a escolha de um vestibular, de uma faculdade e, em última instância, de uma profissão, pareça um ato definitivo, mas não é nada disso.
Você pode mudar de faculdade e de carreira; pode cursar um ano de direito, escolher passar para ciências sociais, decidir que o que você realmente quer é biologia e, quem sabe, cursar medicina aos 35 anos. Menos óbvio e mais importante é entender que essas mudanças não seriam a prova de fracasso algum.
Se você mudar de faculdade ou carreira, não será porque você se enganou na tentativa de descobrir qual era a semente que você carregava consigo.
Aliás, esqueça a ideia da semente. Ser jovem não é ser semente; é ser, antes de mais nada, uma narrativa aberta. Imagine que você é o começo de uma história: havia uma moça de 16 anos que gostava dos Beatles e dos Rolling Stones e, um belo dia, ela saiu para fazer sua inscrição no vestibular... Continue. E lembre-se de que uma boa história tem reviravoltas e surpresas.
Em poucas palavras, em vez de tentar descobrir a famosa semente, invente sua vida.

Daqui da Folha.