Contardo Calligaris em seu consultório, no bairro paulistano dos Jardins.
Perto do divã, mantém a imagem de São Felipe que herdou do pai
O psicanalista é autor da peça “O Homem da Tarja Preta”
Por Armando Antenore da Bravo
Quer graça pode haver num ovo de galinha? Praticamente nenhuma, se quem o observa já perdeu o ímpeto de maravilhar-se com as banalidades do mundo. Mas, para crianças de 4 ou 5 anos, um ovo agrega mistérios que tirariam o sono dos filósofos. Como a natureza cismou de aninhar, em uma elipse tão despojada e frágil, um chumaço de plumas que, mais dia, menos dia, se transformará num galo altivo e musculoso? Sob os olhos tenros da infância, clara e gema são perguntas. Por isso, quando a empregada que trabalhava naquele pequeno sobrado de Milão colocou um trio de ovos prenhes diante de Contardo, o menino não conseguiu disfarçar a inquietude — um alvoroço que desaguou em assombro mal as cascas se romperam e desnudaram três pintinhos assustadiços. Um dos filhotes tinha a penugem marrom, com uma tonalidade semelhante à da nocciola (avelã). Contardo o batizou de Nocciolino. O segundo, muito branco, lembrava um picolé de limão. Virou Limontino. É certo que o terceiro também ostentava uma cor e um nome. O tempo, no entanto, se encarregou de apagá-los, talvez pelo impiedoso prazer de reiterar que, cedo ou tarde, nada fugirá do esquecimento. Poucas semanas depois de os ovos se quebrarem, Nocciolino & cia. teimavam em seguir Contardo para cima e para baixo. Marchavam perfilados atrás dele e, durante o trajeto, não cessavam de piar. Na ocasião, início da década de 1950, o garoto dividia o sobrado milanês com os pais e Bernardino, o primogênito da família. Os dois irmãos guardavam alguma distância um do outro, em razão de uma tênue rivalidade que se agravaria no futuro (disputa inconsciente pela atenção materna?). Não à toa, o caçula aplaudiu a chegada dos novos amigos. Julgou que as aves o acompanhassem por afeição. Lógico que ainda desconhecia as pesquisas revolucionárias de Konrad Lorenz. Em 1935, o zoólogo austríaco demonstrou que patos, gansos e pintinhos, tão logo abandonam os ovos, adotam como "mãe" o primeiro animal que avistam, seja um gavião, uma tartaruga ou um leopardo, e só o largam depois de adultos. Não se comportam assim por convicção nem por gosto, mas por uma tragicômica ilusão. — Um dia os Calligaris saíram do sobradinho com galinheiro no quintal e se mudaram para um apartamento espaçoso. Contardo, agora beirando os 7 anos, possivelmente sentiu falta do cortejo alado e barulhento que liderava. Tratou, então, de arranjar uma orquestra imaginária, meia dúzia de músicos dispostos em fila indiana e amarrados numa única corda. O moleque puxava-os pela rua ou dentro do apartamento e, não raro, sugeria que tocassem: uma sonata, um bom jazz, o trecho de uma ópera. Solícitos, os rapazes sempre o acatavam, enchendo-lhe o cotidiano de uma trilha sonora inexistente.
Detesta torcidas de futebol, cerimônias religiosas que hipnotizam multidões, discursos populistas e qualquer manifestação que se apoie no regozijo coletivo. Teme o coro em uníssono das massas. Acredita que um jovem, perambulando de madrugada pelas praças de Brasília, dificilmente botaria fogo num índio adormecido. Mas se o mesmo jovem encontrasse outros quatro, se os cinco comungassem umas cervejas, se trocassem opiniões preconceituosas à mesa do bar, se concluíssem que a noite pedia uma farra homérica, poderiam reunir coragem para praticar juntos uma atrocidade que não cometeriam sozinhos. — Por preferir os peixes sem cardume, adquiriu um inusitado cacoete de linguagem: expressar-se no contrafluxo. Quando ouve um comentário que o satisfaz, revela o agrado primeiro com uma ou duas negações: "Não, não. Eu concordo". É como se necessitasse avisar aos interlocutores que, de antemão, rejeita os consensos. É como se depositasse eternamente uma oferenda no altar das adversativas: "Eu concordo. Entretanto...". — Ainda não se apaziguou com o próprio berço, a Itália. O fascismo, impossível varrer da memória, floresceu por lá. E tudo graças à cegueira de indivíduos que, em grupo, pensavam enxergar mais longe. Seu querido pai, Giuseppe, um cardiologista, não engrossou o rebanho de Mussolini. Participou da Resistência e pagou caro pelo atrevimento. Perseguido, teve de se esconder nas montanhas. Contardo nasceu depois do calvário, em maio de 1948. Mesmo assim, nunca absolveu plenamente a pátria que desejou matar Giuseppe. — Passou por diversos lugares (Inglaterra, Suíça, França, EUA) até ancorar no Brasil. Antes de ler o italiano, alfabetizou-se em inglês. Já na lição inaugural, aprendeu uma palavra tão complicada quanto incomum: platypus (ornitorrinco), justamente o mamífero com bico que não sabe direito de onde é, se da água, da terra ou do céu.
O nome Contardo, de origem germânica, quer dizer "cachorro duro, aguerrido". Lutador de boxe na juventude, o psicanalista se identifica com o significado. Reconhece que, de fato, possui algo de "cachorrão". Quando morde, não faz questão de soltar. Cultiva ódios e inimizades sem nenhuma culpa. — No consultório paulistano em que atende, mantém o pai perto do divã. Ou melhor: conserva ali uma imagem de São Felipe, espanhola, que herdou de Giuseppe. O santo de madeira segura uma corrente com a mão esquerda. E a corrente aprisiona Satanás. Para Contardo, trata-se de um símbolo perfeito daquilo que a psicanálise almeja: arrancar nossos demônios dos porões e preservá-los sempre à vista, mas sob estratégico controle.
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