domingo, abril 13, 2008

A tragédia com Isabella...

Folha de São Paulo, 10 de abril de 2008

A tragédia com Isabella nos lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira “moderna” de casar.

Contardo Calligaris


Não conhecemos os eventos que levaram à morte de Isabella Nardoni; só sabemos que a menina, de cinco anos, foi assassinada, intencionalmente ou não, enquanto estava na custódia do pai e da madrasta. E conhecemos um pouco a história da família: a mãe e o pai de Isabella não chegaram a se juntar. Foi um romance adolescente que acabou antes de Isabella nascer. O pai tem dois filhos pequenos com sua mulher atual.
É uma situação trivial: a pensão mensal, as visitas, o padrasto ou a madrasta, os meio-irmãos etc. Mas a banalidade dessa situação não deveria disfarçar o emaranhado de afetos dolorosos que ela produz-afetos que muitos vivem e que todos preferimos esquecer.
Não sei se esses afetos são responsáveis pela morte de Isabella. Mas talvez eles sejam responsáveis pela extraordinária comoção produzida pela sua morte. Como assim?
A morte violenta de uma criança nos fere a todos: é como se, ao mesmo tempo, alguém nos arrancasse um pedaço de nosso próprio futuro e destruísse a fantasia nostálgica da infância, que sempre cultivamos, mesmo que o primeiro período de nossa vida tenha sido infeliz.
Mas a história de Isabella nos comove também por outra razão: as tentativas de “explicar” o acontecido evocam, inevitavelmente, as dificuldades de nossa maneira “moderna” de casar.
São dificuldades nas quais, em geral, preferimos evitar de pensar.
É comum que o marido ou a mulher (às vezes, ambos) levem para o casamento filhos que são frutos de uma relação anterior. Espera-se que isso aconteça sem complicação: afinal, se descasamos e casamos por amor, por que o mesmo amor não reinaria pelo lar todo? Pois é, o amor é uma coisa complicada. Exemplos.
A rivalidade, que sempre existe entre irmãos, vinga entre enteados e meio-irmãos. E vinga redobrada, justamente por ser mais inconfessável do que a rivalidade entre irmãos -por ser silenciosa, reprimida pelo esforço geral de compor uma nova família ideal, em que todos os integrantes se amariam.
Na nova família, à primeira vista, o homem convive com seus enteados melhor do que a mulher. Não é nenhum milagre do “instinto” paterno: o homem encontra uma satisfação narcisista no exercício da paternidade. Ele, aliás, curte ser e se sentir amado por suas qualidades “paternas”. Pare ele, saber ser pai de filhos e enteados faz parte de uma virilidade que ele quer que seja reconhecida e festejada pela mulher. Mas cuidado: a encenação da paternidade, embora às vezes espalhafatosa, não resiste à pressão da culpa de dar para seus filhos de sangue menos do que para seus enteados.
Essa culpa, envergonhada e reprimida, é inevitável, porque há uma coisa que o homem, na grande maioria dos casos, dá mais aos enteados do que aos filhos: sua própria presença no lar.
A mulher, ao contrário, vive quase sempre uma rivalidade dramática com seus enteados: compete com eles como se ela fosse mais uma filha. Para a mulher, o enteado ou a enteada não usurpam o lugar dos filhos que ela trouxe de um casamento anterior, nem o lugar dos filhos que nasceram no novo casamento: eles ameaçam usurpar o próprio lugar dela. Essa rivalidade, escondida, expressa-se de maneiras travessas: por exemplo, numa crítica assídua das manifestações do afeto paterno do homem para com o filho ou a filha dele. Ou seja, para não admitir um ciúme envergonhado do enteado, a mulher censura o “excesso” dos sentimentos paternos do marido. Esse, criticado como pai, sente-se diminuído como homem. O desastre está às portas.
São apenas exemplos. O casamento “moderno” é um nó de afetos reprimidos, uma convivência explosiva que aposta no amor do casal como se fosse remédio para todos os males.
Não se trata de condenar a idéia de que seja possível refazer sua vida com outro ou outra e, nessa ocasião, levar consigo os filhos dos casamentos anteriores. Mas seria melhor que a gente se engajasse nesses projetos sem a ilusão de que os bons sentimentos prevalecerão por conta própria. Seria melhor, para começar, que nossas disposições menos nobres, em vez de silenciadas e reprimidas, fossem faladas, explicitadas. Isso, para evitar que, de vez em quando, a trágica morte de uma menina nos lembre, por um dia ou uma semana, que a vida das famílias “modernas” é muito mais difícil do que parece.

Demonizar o pai de Isabella pode ter a função de exorcizar algo que tememos

'Demonizar o pai de Isabella pode ter a função de exorcizar algo que tememos'

Concordo, é um absurdo esta precipitação em acusá-lo. Terrível. Elianne Abreu

Nascimento tardio

ATENÇÃO DADA À CRIANÇA COMO SER ÍNTEGRO DOS PONTOS DE VISTA SOCIOLÓGICO E PSICOLÓGICO TEVE SEU INÍCIO NO SÉCULO 18, COM ROUSSEAU

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das reações ao assassinato de Isabella Nardoni -a precipitação da imprensa, de certos investigadores e até de membros do Judiciário em acusar o pai da menina- incita a refletir. Por que tanta pressa para encontrar um culpado, infringindo o elementar direito desse homem à presunção de inocência e eventualmente a um julgamento justo?
E isso apesar do precedente da Escola Base, no qual os adultos suspeitos de abuso sexual contra um menino se mostraram inocentes.
É natural que tragédias suscitem comoção pública: alguns leitores talvez se lembrem de incêndios como os do Andraus e do Joelma, e, mais recentemente, o tsunami, o furacão Katrina, o acidente da Gol também despertaram revolta e solidariedade.
Mas nem toda tragédia é um crime: casos como o de Isabella, como o de mães que tentam matar seus bebês indesejados, provocam uma repulsa mais profunda porque põem em jogo a crença na naturalidade dos sentimentos familiares.
Se hoje a violência contra crianças nos parece particularmente hedionda, convém lembrar que essa é uma atitude recente. Durante séculos, ela foi aceita como legítima, quer no interesse da própria criança (castigos físicos como parte da educação do caráter, por exemplo), quer no dos pais (abandono de filhos ilegítimos na "roda dos enjeitados") ou da sociedade (infanticídio eugênico em Esparta, assim como em certas tribos indígenas e africanas).

Direito de vida e morte
O princípio que justificava tais práticas era bem expresso na Lei das Doze Tábuas: "O pai tem direito de vida e morte sobre seus filhos, assim como de os vender" (tábua 5, 2).
A mesma regra vale em inúmeras sociedades antigas e mesmo atuais: como prova da sua fé, Jeová exige de Abraão que sacrifique Isaac; como não há alimento para todos os membros da família, João e Maria são enviados para morrer na floresta; Édipo é abandonado no monte Citerão devido à profecia segundo a qual mataria seu pai; repetindo o faraó, Herodes manda matar os meninos judeus para evitar que um deles se torne o salvador do povo; bebês do sexo feminino são assassinadas na China porque o único filho permitido pela lei deve ser menino -os exemplos encheriam toda esta página.
Foi com a idéia cristã de um Deus menino que começaram a surgir práticas mais respeitosas para com as crianças, como a educação dos abandonados nos mosteiros medievais. Mas a categoria psicológica e sociológica da infância é recente: data do século 18 (Rousseau).
A percepção de que os pequenos seres humanos têm características emocionais e intelectuais distintas daquelas dos adultos levou à criação da "nursery", com seus brinquedos e jogos, e de histórias próprias para eles: primeiro, as de Hans Christian Andersen, depois as de fada, até chegarmos aos desenhos animados; o primeiro longa-metragem do gênero, "Branca de Neve", retoma a história de uma garota cuja morte é desejada.

Crença na pureza
Essa evolução dos costumes produziu a crença na "inocência" e na "pureza" da criança, em particular no que se refere à sexualidade.
As descobertas psicanalíticas mostram que as coisas são um pouco diferentes, mas é importante frisar que elas não invalidam a dimensão jurídica da proteção aos menores: o pequeno é mais fraco do que o grande, e, portanto, o crime contra ele é considerado mais grave que o praticado entre iguais.
Já a lei romana prescrevia: "O tutor que agir com dolo será destituído com infâmia e pagará em dobro o prejuízo causado" (tábua 7, 11). O que é condenado aqui é o abuso de confiança, que, além de ser um delito, é também uma transgressão aos princípios da ética.
Um marco histórico na percepção de que a criança é sujeito de direitos foi a Declaração dos Direitos adotada sobre ela pela ONU em 1959, base para o nosso Estatuto da Criança e do Adolescente, que, apesar de algumas falhas, é uma boa lei.
O fato de ela ter "pegado" mostra que a sociedade brasileira está disposta a cuidar melhor das novas gerações e a punir os que agirem de modo contrário -e isso é um avanço civilizatório.

Situações intoleráveis
Prova disso é que situações que há poucas décadas deixavam as pessoas indiferentes ou apenas suscitavam protestos da boca para fora, como a exploração do trabalho infantil, são hoje tidas por intoleráveis.
A esses dados de ordem sociológica e política o psicanalista pode acrescentar que o abuso sexual, a pedofilia, a brutalidade na punição, o infanticídio não nos chocam apenas porque ofendem o princípio da proteção ao mais fraco, mas também porque mobilizam ansiedades infantis à ameaça representada pelo adulto (bruxas, ogros).
Além disso, há a angústia diante da possibilidade de que venhamos a ter tais desejos e idéias -ou, pior, a praticar tais atos, que correspondem a fantasias inconscientes mais difundidas do que gostaríamos de acreditar.

Exorcismo
Demonizar o pai de Isabella pode ter a função de exorcizar algo que tememos, porque inconscientemente também desejamos -a possibilidade de prejudicar, pouco ou muito, os pequenos que dependem de nós. Já o sabia o profeta Jeremias: "Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos apodrecerão?" ("Jeremias", 31:29).



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RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .

quinta-feira, abril 10, 2008

Sessão de Cinema e Psicanálise






Sessão de Cinema e Psicanálise


Quando: Dia 11 de abril, sexta-feira, às 20:00 hs
Local: Aliança Francesa de Natal
Onde fica: Rua Potengi, 459, Petrópolis -
Praça Pedro Velho- Praça Cívica





Carta de uma desconhecida
de Max Ophüls



Ficha Técnica



Filme: Carta de uma Desconhecida


Diretor: Max Ophuls


Baseado no livro de Stefan Zweig


Atores: Joan Fontaine, Luis Jourdan








Comentário de Teresa Sampaio






“Um olhar é algo difícil de definir; ele pode sustentar uma existência ou devastá-la”

(J.Lacan)



Max Ophuls, considerado um dos grandes estetas da história do cinema, faz uma adaptação delicada do livro de Stefan Zweig. A desconhecida era, no romance de Zweig, ‘uma amante invisível, tão imaterial e tão passional como uma música longínqua’. Talvez, inspirado nisto, Max Ophuls transforma o personagem do livro que era um escritor, em pianista e inunda o filme de música.





Ele utiliza-se da carta que o pianista Stefan (Louis Jourdan) recebe de Liza Bernle (Joan Fontaine) como elemento narrativo para fazer evoluir o filme em flashback, descrevendo docemente a imensa solidão e o abismo entre o casal.





Liza tem treze anos quando Stefan Brand muda-se para o apartamento em frente ao seu. A chegada de Brand representa um verdadeiro divisor de águas na sua vida, antes mesmo de conhecê-lo.





Antes a sua vida era vaga, perturbada e confusa, coberta por poeiras e trevas. Havia uma pobreza reinante, vizinhos mal-educados, impertinentes. A mãe era a pobre viúva de um funcionário de finanças, sempre de luto. Ela, uma criança magra e apenas formada. ‘Vivíamos como perdidas na nossa mediocridade de pessoas pequenas’. Na porta do seu apartamento não havia nenhuma placa com o nome Bernle, coisa incomum na época. Liza viveu uma infância sombria, anônima, sem vida.



A sua vida começa com a chegada do novo vizinho com o seu piano, com os objetos que a extasiaram, como ídolos hindus, esculturas italianas, belos e numerosos livros em vários idiomas, tapetes persas e quadros esplêndidos.





Um simples olhar no interior do apartamento apagou os treze anos vividos até então. A casa fora inundada pela sua música. A música e o novo universo que se apresenta a ela, mesmo só fazendo parte dele na fantasia, é o marco que a faz esquecer o passado.





Diz Liza que apenas pôde lançar um fugitivo e furtivo olhar na vida dele, mas esse olhar foi suficiente para que ela pudesse sonhar infinitamente, nos devaneios e nos sonhos. Nesse primeiro momento ela o envolveu numa aura de estranheza, riqueza e mistério. ‘Este rápido minuto foi o mais feliz da minha infância’, diz ela. ‘Eu quis já te contar pra que tu comeces a compreender como uma vida pode se ligar à outra até o aniquilamento. ’





Uma idéia a deixa obcecada: como seria este homem que tinha lido livros tão belos, que conhecia todas essas línguas e era tão rico e sábio?





Fascinação e deslumbramento foram os sentimentos que a invadiram desde o início, mas ela ainda o confundia com a imagem de um Deus ou de um pai.





Completamente tomada pela música que vinha do seu apartamento, costumava imaginar que ele tocava para ela.





Apenas num terceiro momento, quando ela o vê, é que se dá conta de que ele não era um Deus ou um pai, mas sim um homem, ou melhor dizendo, um Homem. Liza estremece de surpresa ao perceber o quanto ele era jovem, leve, esbelto e elegante. ‘Foi depois desse segundo que eu te amei (...) como uma escrava, como um cão. Nada sobre a terra parece com o amor de uma criança retirada da sombra. Eu me precipitei no meu destino como num abismo. ’





Durante muito tempo esse amor levado ao extremo, um amor onde se mesclam fascinação e devastação, sustentou a vida de Liza. Por ele ou para ser algo além de uma cave empoeirada, sem nome na porta do apartamento, ela mergulha tanto no mundo de Stefan que acaba fazendo parte dele. Liza lê tudo o que rastreia do seu gosto literário, lê a vida de vários músicos, acompanha todos os passos da sua carreira.





Dos dezesseis aos dezoito anos é obrigada a morar em Linz com a mãe e o padrasto. Lá ela é cortejada por um tenente importante, mas ela não podia ser desejada por outros homens, já que pertencia a Stefan. Ela diz que não queria se distrair da sua paixão.



Liza, Linz, Liszt. Esses nomes não constam no livro de Stefan Zweig. Talvez Max Ophuls quisesse manter uma homofonia para acentuar que estamos num mundo extremamente musical.





Desse modo ela retorna à Viena. A sua paixão se torna mais ardente, mais concreta, mais feminina. Liza agora é uma mulher; ela está bela, tem belos momentos com Stefan, mas a despeito disto, continua uma desconhecida para ele. A cada encontro uma distância se fazia e ele não a reconhecia. ‘Tu não me reconheceste, nem então, nem jamais. Jamais tu me reconheceste. Fatal dor da minha vida... restar desconhecida’.





Mas ela não faz nenhum esforço para que ele se lembre nem por um momento. Queria ser a única... a única mulher que jamais lhe pediu algo, um amor que não deixa nenhuma carga, a mulher que não deixa traços.





O que aconteceria se Liza se fizesse reconhecer? Talvez ela não se sentisse tão única, ela seria uma mulher como as outras; talvez ela tivesse que abrir mão dessa espécie de êxtase que a devastava, mas também a fascinava. Liza só conhece esses dois extremos: de um lado, a sua infância, anônima, sombria, sem vida; do outro lado está o deslumbramento com o mundo da música e a paixão por um belo homem.





O casamento com um homem rico e também bonito, que poderia lhe estabilizar, vacila diante da vontade de reviver aquela mesma sensação que, como ela mesma define, ‘é mais forte que ela mesma’.





Afinal, o caráter de exclusividade que ela lhe atribui exige uma certa fatalidade como desfecho:

‘eu não creio em Deus, eu só creio em ti e não desejo sobreviver que em ti.’,

diz Liza no livro de Zweig.





Natal, 08 de abril de 2008.



Tereza Sampaio

















domingo, abril 06, 2008



Um grito agudo corta o silêncio. Voz de mulher.

Paro de escrever.

- "Coma, coma tudo, anda", diz aos berros para a criança.

É uma menina pequena, inquieta.

Em alguns domingos passa o dia na piscina de adultos- usa bóias nos braços- se recusa a sair.

A mãe a observa da borda. Daqui ouço os gritos.

Que futuro terá esta menina?

Eu não sou da sua rua




Eu não sou da sua rua

Depois de passar dez anos morando nas esquinas de São Paulo, Esmeralda Ortiz, ex-menina de rua, prova que é possível achar um sentido para uma vida errante

Por Filipe Luna na Cult


Nem todos os becos são sem saída. Esmeralda Ortiz perambulou muito, mas achou o caminho que a levou para longe das calçadas depois de 10 anos sem teto, endereço ou CEP. A moça foi, durante uma década de seus 28 anos, uma menina de rua. Com direito ao pacote completo. Entrou e saiu umas cinqüenta vezes da Febem, roubou, cheirou cola, fumou crack, sofreu abuso sexual. A rotina dos fantasmas da cidade que passam propositadamente despercebidos para os transeuntes. Toda essa história Esmeralda contou no seu primeiro livro, Porque não dancei, que narra uma impressionante trajetória de recuperação de uma vida quase perdida. De fato, quem vê e conversa com essa mulher feita hoje, mal pode acreditar que é a mesma pessoa de quem a vida abusou por tanto tempo. Difícil crer que era essa a mesma adolescente que, louca de crack, brincava de pega-pega com a polícia; ou a menina que apanhava diariamente da mãe antes de fugir para a rua; ou a que foi estuprada na linha do trem.

Esmeralda começou a reescrever sua história iluminada pelo fio de luz que entrava na sua cela na Febem com um cotoco de lápis dado pelo diretor e mantido sob segredo constante, para evitar tomar pauladas dos funcionários. Quando deixou a rua e o crack, a menina encontrou no projeto Aprendiz, de Gilberto Dimenstein, a direção para começar a se tornar a mulher que é hoje. Com o apoio dele, escreveu e publicou seu catártico primeiro livro. Depois veio O diário da rua, sua segunda aventura como escritora. Nesse meio tempo, Esmeralda ganhou educação - enfrentando suas próprias deficiências para terminar a faculdade de jornalismo - e um rebento - Kadu, seu filho de 3 anos, que cria sozinha em sua casa em Pirituba, zona oeste de São Paulo. É esse desenrolar de seu roteiro que ela contou para a CULT nesta entrevista, provando que pode haver vida depois da rua, que é possível carregar o peso que ela suportou na sua errância sem partir as costelas e começar a escrever um final diferente para uma história destinada a ser estatística.

CULT: Como foi seu percurso depois que fez seu primeiro livro?
Esmeralda Ortiz: Quando saí da rua eu tinha uma meta: estudar. E quando escrevi meu livro a meta cresceu mais ainda. Teve até uma menina que saiu da rua, e escreveu um livro também, que se suicidou depois que terminou. Eu entendo. Fiquei mal, meu. Queria me enfiar em qualquer buraco. Mas não queria ser apenas uma escritora que saiu da rua e conseguiu fazer um livro, eu queria quebrar esse padrão. Fui estudar, investir na minha educação. Entrei na faculdade Anhembi-Morumbi. O reitor me ligou oferecendo uma bolsa. Ligou também o dono da livraria Cortez me oferecendo uns livros. Pessoas que nunca tinha visto, me ajudando, isso faz valer a pena. A faculdade foi muito legal, mas mesmo assim, sofri um pouco de preconceito. Pelo meu jeito... Primeiro é cultural, por ser ex-menina de rua trago essa cultura de lá. Não vou chegar na faculdade como os caras, com tudo certinho. Então, fazia a maioria dos trabalhos sozinha. A única pessoa que fazia trabalho comigo era o Bene, meu amigo. Tinha uma professora que começou a me perseguir muito. Até pensei em processar ela por preconceito.

CULT: Por que ela perseguia você?
E.O.: Sei lá, meu. Na verdade, não sei como entrei na faculdade, porque minha educação foi muito complicada. A professora perguntava se alguém tinha dúvida e eu sempre levantava a mão. Não lembro direito, mas ela falava que não ia responder. Eu ia falar, ela não deixava. Ia fazer pergunta, ela não deixava. Até repeti a matéria dela. Quando fiz de novo, ela tinha lido meu livro e chorou bastante, veio me pedir desculpas. Deixei de lado, tá ligado? Os outros professores foram muito compreensivos. Entendiam minha deficiência... Não é nem deficiência. Tenho meu dom, mas tem coisas que não tenho QI, entendeu? Quando engravidei, freqüentei a faculdade o tempo todo durante a gestação. Depois que meu filho nasceu, foi comigo todos os dias para as aulas até um ano e seis meses. Não tinha com quem deixá-lo. Os professores me deixaram levá-lo numa boa, então teve o lado bom também. O lance é que faculdade, no Brasil, não desmerecendo, mas a gente sai sem saber nada. Estou aprendendo agora, na prática. Lá ficamos só na teoria. Mas o curso me deu um caminho, então foi muito bom. Agora quero fazer antropologia.

CULT: Quando você estava na rua tinha medo de morrer?
E.O.: Muitas vezes busquei a morte. Vivia com ela, sempre acreditei que seria a melhor saída.

CULT: E esse pensamento voltou alguma vez?
E.O.: Não é que volta, você sai traumatizada, massacrada. Não sei como consegui manter meus sonhos vivendo na rua. Qualquer um que vai morar na rua a primeira coisa que faz é entrar nas drogas. Porque ela tira a fome, tira o sono, tira o frio, tira a ansiedade, dá uma sensação de proteção, faz ser o que você acredita que é. Mas depois vem o vazio e fica um buraco da porra. Então, me admiro por ter tido sonhos, perspectivas, enquanto o mundo inteiro me provava o contrário. Se hoje estou aqui é por causa dos meus sonhos. Quando nasci, minha mãe não tinha uma casa para morar. Sempre me chamava de amaldiçoada e isso e aquilo outro. Meu filho, não. Ele tem uma casa para morar, uma mãe que diz que o ama, um lugar para comer. Tudo porque acreditei que, se fosse para gerar um fruto, iria fazer diferente de como fui criada.

CULT: Você está descobrindo o que é ter família agora?
E.O.: Minha família sou eu e meu filho. Meu irmão está na cadeia. Tenho uma irmã que é casada, mas mora numa situação precária no barraco que minha mãe deixou. Minha família se resumiu a isso porque metade morreu por causa de alcoolismo, drogas. Está sendo muito boa a relação com meu filho, saber que posso dar amor mesmo sem ter recebido. Saber que tenho minhas angústias e tenho que resolvê-las sozinha, não passar isso para o meu filho, porque ele nem sabe o que passei. Quando o pai dele soube que eu estava grávida, saiu fora, depois de 3 anos juntos. Me disse: "Ou você tira ou não fico". Então, tchau, meu filho.

CULT: Quem era o cara?
E.O.: Conheci na faculdade, ele trabalhava num bar chamado Rabo de Peixe, na Vila Olímpia. A gente manteve um relacionamento. Tentei ajudá-lo, porque estava desempregado e tal. Através de uns contatos meus consegui arrumar faculdade pra ele.

CULT: Foi difícil seu começo como mãe?
E.O.: Foi um período conturbado, fui muito pressionada quando ganhei meu filho. Teve uma amiga minha que me ajudou, mas fui sozinha para o hospital. Saí, fiquei sozinha em casa, com cesariana e tudo. Mas só fiz porque decidi ter. Daí tranquei minha casa, fiquei quatro meses na casa de uma amiga minha. Levava meu filho para o trabalho, porque não tinha arrumado creche para ele. Trabalhava à tarde, fazia DP de manhã lá na Bresser e estudava de noite lá na Vila Olímpia. Sempre com meu filho.

CULT: Por que você escolheu jornalismo?
E.O.: Porque é o que gosto de fazer, comunicar. É uma coisa bem dinâmica, não sou uma pessoa parada. Gosto de dar um outro enfoque, falar das pessoas em si. Não só da rua. Mostrar o outro lado. Um jornalista, quando entra na periferia, vai com tudo, mas, quando vai na classe média, aperta a campainha e pede licença. Morreu uma mulher lá nos Jardins, vi hoje no jornal da Record. Fiquei contando, foram quase sete minutos com comentarista e o apresentador falando da morte da mulher. Porque ela foi assaltada e tomou um tiro. O filho do padeiro morre e ninguém está nem aí, às vezes não vai nem para estatística, mas como indigente. Todos têm que ter tratamento igual. Às vezes a mídia gasta o programa todinho falando só desgraça, mas será que nesse dia não aconteceu uma coisa boa ou será que foi só morte?

CULT: De onde veio esse seu interesse por pessoas?
E.O.: Minha avó era muito comunicativa. Convivi pouco tempo, mas até hoje tenho uma impressão muito legal dela, que morreu por conta de álcool, bebida... Eu me espelhei nela. Sou uma pessoa muito dada. Se estou na rua converso com todo mundo. Conheço muita gente dessa maneira. Tenho tantos amigos que não passo necessidade. Às vezes não tenho dinheiro para o bumba e o motorista, que é meu amigo, deixa eu passar, entende? Trato todo mundo igual, não tem essa. Geralmente as pessoas são muito fechadas, reprimidas. E quando vêem alguém mais aberto...

CULT: Depois que sabem da sua história elas mudam o tratamento?
E.O.: Começam a admirar, mas deixo claro, onde vou dar palestra, que minha história é o que vivo hoje. Nesse momento estamos eu e você trocando idéia, mas tem um monte de criança sofrendo abuso sexual agora, ou abandono... Fora os problemas que já são freqüentes: falta de educação, estrutura familiar, saneamento básico, moradia. Meu livro, na verdade, conta a história de várias Esmeraldas espalhadas por aí que não conseguem encontrar saída. Quando o pessoal vai à rua é para mostrar estatística, quem roubou a bolsa da madame, quem fuma pedra... E não é nada disso, o problema é bem maior.

Leia a entrevista na íntegra na edição de abril da CULT, já nas bancas

quinta-feira, abril 03, 2008

'A sexualidade na gravidez e puerpério'




Fui fazer uma palestra 'A sexualidade na gravidez e puerpério' neste prédio antigo daqui de Natal- Maternidade Escola Januário Cicco. Nunca havia entrado lá. Fui convidada pela Dra. Patrícia Bezerra, gente fina, minha ginecologista.
Escrevi ontem rapidamente, o convite veio em cima da hora, mas foi ótimo. Falei bastante, sem ler, sobre o lado subjetivo destas fases, do relacionamento do casal, das mudanças. Enfatizei o fato de cada caso ser um caso, cada sujeito a sua frente tem que ser ouvido com sua história particular, nada vem pronto num livro de medicina ou psicanálise.
Falei sobre conceitos de inconsciente, transferência e Complexo de Édipo.
Gostei bastante, eles também, me aplaudiram com entusiasmo- adoro esta resposta imediata, depois veio uma moça falar em particular. Fiquei feliz.