Eu não sou da sua rua
Depois de passar dez anos morando nas esquinas de São Paulo, Esmeralda Ortiz, ex-menina de rua, prova que é possível achar um sentido para uma vida errante
Por Filipe Luna na
Cult Nem todos os becos são sem saída. Esmeralda Ortiz perambulou muito, mas achou o caminho que a levou para longe das calçadas depois de 10 anos sem teto, endereço ou CEP. A moça foi, durante uma década de seus 28 anos, uma menina de rua. Com direito ao pacote completo. Entrou e saiu umas cinqüenta vezes da Febem, roubou, cheirou cola, fumou crack, sofreu abuso sexual. A rotina dos fantasmas da cidade que passam propositadamente despercebidos para os transeuntes. Toda essa história Esmeralda contou no seu primeiro livro, Porque não dancei, que narra uma impressionante trajetória de recuperação de uma vida quase perdida. De fato, quem vê e conversa com essa mulher feita hoje, mal pode acreditar que é a mesma pessoa de quem a vida abusou por tanto tempo. Difícil crer que era essa a mesma adolescente que, louca de crack, brincava de pega-pega com a polícia; ou a menina que apanhava diariamente da mãe antes de fugir para a rua; ou a que foi estuprada na linha do trem.
Esmeralda começou a reescrever sua história iluminada pelo fio de luz que entrava na sua cela na Febem com um cotoco de lápis dado pelo diretor e mantido sob segredo constante, para evitar tomar pauladas dos funcionários. Quando deixou a rua e o crack, a menina encontrou no projeto Aprendiz, de Gilberto Dimenstein, a direção para começar a se tornar a mulher que é hoje. Com o apoio dele, escreveu e publicou seu catártico primeiro livro. Depois veio O diário da rua, sua segunda aventura como escritora. Nesse meio tempo, Esmeralda ganhou educação - enfrentando suas próprias deficiências para terminar a faculdade de jornalismo - e um rebento - Kadu, seu filho de 3 anos, que cria sozinha em sua casa em Pirituba, zona oeste de São Paulo. É esse desenrolar de seu roteiro que ela contou para a CULT nesta entrevista, provando que pode haver vida depois da rua, que é possível carregar o peso que ela suportou na sua errância sem partir as costelas e começar a escrever um final diferente para uma história destinada a ser estatística.
CULT: Como foi seu percurso depois que fez seu primeiro livro?
Esmeralda Ortiz: Quando saí da rua eu tinha uma meta: estudar. E quando escrevi meu livro a meta cresceu mais ainda. Teve até uma menina que saiu da rua, e escreveu um livro também, que se suicidou depois que terminou. Eu entendo. Fiquei mal, meu. Queria me enfiar em qualquer buraco. Mas não queria ser apenas uma escritora que saiu da rua e conseguiu fazer um livro, eu queria quebrar esse padrão. Fui estudar, investir na minha educação. Entrei na faculdade Anhembi-Morumbi. O reitor me ligou oferecendo uma bolsa. Ligou também o dono da livraria Cortez me oferecendo uns livros. Pessoas que nunca tinha visto, me ajudando, isso faz valer a pena. A faculdade foi muito legal, mas mesmo assim, sofri um pouco de preconceito. Pelo meu jeito... Primeiro é cultural, por ser ex-menina de rua trago essa cultura de lá. Não vou chegar na faculdade como os caras, com tudo certinho. Então, fazia a maioria dos trabalhos sozinha. A única pessoa que fazia trabalho comigo era o Bene, meu amigo. Tinha uma professora que começou a me perseguir muito. Até pensei em processar ela por preconceito.
CULT: Por que ela perseguia você?
E.O.: Sei lá, meu. Na verdade, não sei como entrei na faculdade, porque minha educação foi muito complicada. A professora perguntava se alguém tinha dúvida e eu sempre levantava a mão. Não lembro direito, mas ela falava que não ia responder. Eu ia falar, ela não deixava. Ia fazer pergunta, ela não deixava. Até repeti a matéria dela. Quando fiz de novo, ela tinha lido meu livro e chorou bastante, veio me pedir desculpas. Deixei de lado, tá ligado? Os outros professores foram muito compreensivos. Entendiam minha deficiência... Não é nem deficiência. Tenho meu dom, mas tem coisas que não tenho QI, entendeu? Quando engravidei, freqüentei a faculdade o tempo todo durante a gestação. Depois que meu filho nasceu, foi comigo todos os dias para as aulas até um ano e seis meses. Não tinha com quem deixá-lo. Os professores me deixaram levá-lo numa boa, então teve o lado bom também. O lance é que faculdade, no Brasil, não desmerecendo, mas a gente sai sem saber nada. Estou aprendendo agora, na prática. Lá ficamos só na teoria. Mas o curso me deu um caminho, então foi muito bom. Agora quero fazer antropologia.
CULT: Quando você estava na rua tinha medo de morrer?
E.O.: Muitas vezes busquei a morte. Vivia com ela, sempre acreditei que seria a melhor saída.
CULT: E esse pensamento voltou alguma vez?
E.O.: Não é que volta, você sai traumatizada, massacrada. Não sei como consegui manter meus sonhos vivendo na rua. Qualquer um que vai morar na rua a primeira coisa que faz é entrar nas drogas. Porque ela tira a fome, tira o sono, tira o frio, tira a ansiedade, dá uma sensação de proteção, faz ser o que você acredita que é. Mas depois vem o vazio e fica um buraco da porra. Então, me admiro por ter tido sonhos, perspectivas, enquanto o mundo inteiro me provava o contrário. Se hoje estou aqui é por causa dos meus sonhos. Quando nasci, minha mãe não tinha uma casa para morar. Sempre me chamava de amaldiçoada e isso e aquilo outro. Meu filho, não. Ele tem uma casa para morar, uma mãe que diz que o ama, um lugar para comer. Tudo porque acreditei que, se fosse para gerar um fruto, iria fazer diferente de como fui criada.
CULT: Você está descobrindo o que é ter família agora?
E.O.: Minha família sou eu e meu filho. Meu irmão está na cadeia. Tenho uma irmã que é casada, mas mora numa situação precária no barraco que minha mãe deixou. Minha família se resumiu a isso porque metade morreu por causa de alcoolismo, drogas. Está sendo muito boa a relação com meu filho, saber que posso dar amor mesmo sem ter recebido. Saber que tenho minhas angústias e tenho que resolvê-las sozinha, não passar isso para o meu filho, porque ele nem sabe o que passei. Quando o pai dele soube que eu estava grávida, saiu fora, depois de 3 anos juntos. Me disse: "Ou você tira ou não fico". Então, tchau, meu filho.
CULT: Quem era o cara?
E.O.: Conheci na faculdade, ele trabalhava num bar chamado Rabo de Peixe, na Vila Olímpia. A gente manteve um relacionamento. Tentei ajudá-lo, porque estava desempregado e tal. Através de uns contatos meus consegui arrumar faculdade pra ele.
CULT: Foi difícil seu começo como mãe?
E.O.: Foi um período conturbado, fui muito pressionada quando ganhei meu filho. Teve uma amiga minha que me ajudou, mas fui sozinha para o hospital. Saí, fiquei sozinha em casa, com cesariana e tudo. Mas só fiz porque decidi ter. Daí tranquei minha casa, fiquei quatro meses na casa de uma amiga minha. Levava meu filho para o trabalho, porque não tinha arrumado creche para ele. Trabalhava à tarde, fazia DP de manhã lá na Bresser e estudava de noite lá na Vila Olímpia. Sempre com meu filho.
CULT: Por que você escolheu jornalismo?
E.O.: Porque é o que gosto de fazer, comunicar. É uma coisa bem dinâmica, não sou uma pessoa parada. Gosto de dar um outro enfoque, falar das pessoas em si. Não só da rua. Mostrar o outro lado. Um jornalista, quando entra na periferia, vai com tudo, mas, quando vai na classe média, aperta a campainha e pede licença. Morreu uma mulher lá nos Jardins, vi hoje no jornal da Record. Fiquei contando, foram quase sete minutos com comentarista e o apresentador falando da morte da mulher. Porque ela foi assaltada e tomou um tiro. O filho do padeiro morre e ninguém está nem aí, às vezes não vai nem para estatística, mas como indigente. Todos têm que ter tratamento igual. Às vezes a mídia gasta o programa todinho falando só desgraça, mas será que nesse dia não aconteceu uma coisa boa ou será que foi só morte?
CULT: De onde veio esse seu interesse por pessoas?
E.O.: Minha avó era muito comunicativa. Convivi pouco tempo, mas até hoje tenho uma impressão muito legal dela, que morreu por conta de álcool, bebida... Eu me espelhei nela. Sou uma pessoa muito dada. Se estou na rua converso com todo mundo. Conheço muita gente dessa maneira. Tenho tantos amigos que não passo necessidade. Às vezes não tenho dinheiro para o bumba e o motorista, que é meu amigo, deixa eu passar, entende? Trato todo mundo igual, não tem essa. Geralmente as pessoas são muito fechadas, reprimidas. E quando vêem alguém mais aberto...
CULT: Depois que sabem da sua história elas mudam o tratamento?
E.O.: Começam a admirar, mas deixo claro, onde vou dar palestra, que minha história é o que vivo hoje. Nesse momento estamos eu e você trocando idéia, mas tem um monte de criança sofrendo abuso sexual agora, ou abandono... Fora os problemas que já são freqüentes: falta de educação, estrutura familiar, saneamento básico, moradia. Meu livro, na verdade, conta a história de várias Esmeraldas espalhadas por aí que não conseguem encontrar saída. Quando o pessoal vai à rua é para mostrar estatística, quem roubou a bolsa da madame, quem fuma pedra... E não é nada disso, o problema é bem maior.
Leia a entrevista na íntegra na edição de abril da CULT, já nas bancas