quinta-feira, dezembro 17, 2009
Contardo Calligaris- Salas dos passos perdidos/ atualizado
Salas dos passos perdidos
O Natal anuncia que a vida é uma viagem, que somos todos -como Jesus- viajantes
NATAL É uma das épocas do ano em que mais viajamos.
Isso é especialmente verdadeiro no hemisfério Sul. Ao Norte do equador, as pessoas tentam reunir suas famílias, que foram dispersas pelo tempo, pelos casamentos, pelas perspectivas de trabalho ou, simplesmente, por cada indivíduo ter anseios de independência e vontade de tocar a vida por conta própria. Ao Sul do equador, a essa vontade de reunião de família, acrescenta-se a proximidade das férias de verão: junte Natal com o Ano Novo, use 15 dias de férias, e lá vamos nós.
Por essa razão, no Natal, as rodoviárias e os aeroportos são sempre abarrotados, pelos viajantes e por seus restos voluntários (lixo) e involuntários (malas extraviadas e crianças perdidas). A quem viaja, aconselha-se levar consigo o necessário para encarar, sem demasiado tédio, filas e esperas intermináveis. É um paradoxo: "Chegue antes porque, de fato, o voo partirá só bem depois do horário previsto".
Seja como for, muitos de nós passarão um bom tempo naqueles espaços intermediários que são os saguões, as salas de espera, as salas de embarque, em suma, os cenários (menos fugazes do que gostaríamos) de nosso trânsito.
Uma bonita expressão francesa designa esses espaços como "salles des pas perdus", com ou sem hífen, que significa "salas dos passos perdidos". Não sei se existe uma etimologia definitiva dessa expressão, mas parece que, originalmente, salas dos passos perdidos são os átrios dos tribunais de Justiça, onde as partes, depois de ter exposto seus argumentos, esperam a decisão da corte em intermináveis idas e voltas de passos "perdidos", ou seja, movidos só pela ansiedade e pela incerteza quanto ao futuro.
Hoje, a expressão se refere também às salas de espera e aos vestíbulos centrais dos aeroportos e das estações ferroviárias, em suma, a aqueles lugares onde fazemos a hora batendo pernas, lugares que, simplesmente, não são nem nossa origem nem nosso destino, mas sempre apenas transições.
Já assisti a noticiários televisivos de 25 de dezembro em que a notícia eram os "infelizes" que, entre atrasos, tempestades e "overbooking", passaram a noite do dia 24 no saguão de uma aeroporto. Logo no Natal; é o cúmulo, não é?
Nem tanto. Pense bem, o Natal cristão celebra um nascimento, o de Jesus, que acontece num estábulo, que, para quem viajava a dorso de mula ou de jumento, 2.000 anos atrás, era o equivalente de uma rodoviária ou de um aeroporto.
O Natal anuncia que a vida é uma viagem, não só porque estaríamos em trânsito para outro lugar onde seremos recompensados ou punidos para sempre, mas porque somos todos, como o recém-nascido da festa, viajantes: ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu ou pela tradição a qual ele pertence, mas cada um vale pelo que ele conseguirá fazer com sua vida.
Leitura natalina: no começo do romance de W. G. Sebald, "Austerlitz" (Companhia das Letras), o narrador encontra o professor Austerlitz na sala dos passos perdidos da estação de Antuérpia. Detalhe: se o professor Austerlitz tem um interesse muito especial pelas estações de trem, seus átrios e suas salas de espera, é porque o mundo é uma gigantesca sala dos passos perdidos, em que estamos todos, sempre, em trânsito ou talvez (numa veia mais kafkiana) caminhando em círculos, angustiados, na espera de algum oficial público que nos diga, enfim, qual foi a decisão da corte.
Música natalina: "Salle des Pas Perdus", de 2001, é o primeiro CD de Coralie Clément (uma jovem cantora francesa, que canta com uma voz ofegante, estilo anos 1960-70). Na letra da música que dá o título ao CD, uma jovem escreve a um moço, propondo-lhe um encontro num café, depois de ter cruzado com ele no vestíbulo do prédio (em que ambos moram, talvez) e no átrio da estação St. Lazare. "Você sente meu perfume a cada noite, no vestíbulo do prédio", mas, mesmo assim, a gente poderia nunca se encontrar.
Precisamos aprender a viver e a encontrar os outros nas salas dos passos perdidos. Precisamos inventar a arte de viver em trânsito.
E me ocorre que a maior (única?) artista da vida em trânsito é Sophie Calle. Sua maravilhosa exposição, "Cuide de Você", deixou São Paulo e está agora no Museu de Arte Moderna do Rio, até fevereiro 2010.
Mas estou divagando (é o que a gente faz nas salas dos passos perdidos); só queria dizer isto a quem viaja no Natal: console-se, Natal é também uma festa para transeuntes.
Da Folha
Um leitor disse:
"quero acrescentar uma contribuição
ao significado de "Sala dos Passos Perdidos": nas Oficinas
da Arte Real, é o espaço onde os obreiros se encontram
antes do início de cada sessão; lá também são colocados
avisos, informações, jornais e revistas que lhes possam
ser relevantes e úteis."
Certo.
quinta-feira, dezembro 03, 2009
Contardo Calligaris
Presentes de Natal
Para quem os recebe, nossos presentes valem pouco mais da metade do que eles nos custam |
TUDO INDICA que vai ser um "grande" mês de dezembro.
Compraremos e distribuiremos presentes como nunca; provaremos de vez que o país saiu da crise de 2008.
De qualquer forma, o Brasil já está entre os campeões mundiais em extravagância perdulária natalina.
Claro, há muitos países ricos que, no Natal, gastam mais do que a gente, mas o que vale, nessa classificação, não são os valores absolutos, mas as vendas do varejo no mês de dezembro comparadas com as dos meses contíguos. Ora, em dezembro, no Brasil, a gente gasta por volta de 40% a mais do que na média de novembro e janeiro.
Não quero criticar o costume de oferecer presentes e os "excessos" das festas. A questão que me interessa é outra: toda consideração moral à parte, será que os gastos natalinos são um bom negócio para a economia? Ou seja, gastando para presentes e ceias, estamos mesmo criando e distribuindo riqueza?
Joel Waldfogel, professor da Wharton (a famosa escola de administração da Universidade da Pensilvânia), acaba de publicar um pequeno livro, seriíssimo e divertido, "Scroogenomics - Why You Shouldn't Buy Presents for the Holidays" (Scroogeconomia - por que você não deve comprar presentes para as festas; Princeton Univ.
Press). O livro defende a tese seguinte: o Natal é uma calamidade econômica, durante a qual nossas sociedades, a cada ano, destroem riquezas consideráveis.
Para começar, Waldfogel repetiu em vários contextos culturais uma mesma experiência: perguntou a grupos de presenteados quanto eles se disporiam a pagar para adquirir os objetos que acabavam de receber.
No Brasil, em 2008, o resultado foi o seguinte: em média, os presenteados estariam dispostos a pagar, pelos presentes que tinham recebido, 47% a menos do que os ditos presentes tinham custado para os presenteadores. Ou seja, 47% do que foi gasto pelos presenteadores não produziu valor nenhum, perdeu-se na transação.
Digamos que comprei para você, por R$ 100, um objeto pelo qual você pagaria, no máximo, R$ 53. Claro, minha despesa subvencionou o comércio e a produção do objeto que comprei, mas ela foi uma catástrofe econômica: quase a metade do que gastei não serviu para nada. Joguei dinheiro fora.
Quer a gente goste ou não da tradição natalina de trocar presentes, seria bom, comenta Waldfogel, que conseguíssemos, ao menos, tornar essa troca mais produtiva. Obviamente, Waldfogel aprova o uso do vale-presente (embora, nos EUA, misteriosamente, um vale-presente em cada dez não seja nunca resgatado) e nos encoraja a oferecer dinheiro, sem constrangimento.
Talvez fosse bom mesmo racionalizar nossas trocas natalinas, mas, antes disso, três observações.
1) Por que oferecemos presentes?
Resposta óbvia: para produzir a maior satisfação possível no presenteado, para fazê-lo feliz.
Talvez, mas vamos devagar. Por exemplo, é bem possível que a troca natalina de presentes seja sobre tudo um gigantesco "potlatch", como dizem os antropólogos, ou seja, uma maneira de torrarmos festivamente nossos recursos (dinheiro, bens e tempo) só para manifestar nossa riqueza (grande ou pequena) aos outros, ao céu e a nós mesmos. Além disso, cada um presenteia amigos e inimigos por razões que pouco têm a ver com a intenção de fazer o outro feliz. Há presentes pedagógicos e paternalistas (ofereço um vale-livros ao primo que não gosta de ler e uma camiseta P ao maridão que virou um boto), assim como há presentes que servem só para intimidar os presenteados (no estilo: "Este, meu caro, você nunca vai poder retribuir".).
2) Será mesmo que qualquer presenteado saberia escolher seu próprio presente melhor do que qualquer presenteador, por generoso e bem intencionado que esse seja?
Duvido: basta considerar a montanha de trapos e quinquilharia que apodrece em nossos armários e estantes (tudo adquirido por nós mesmos) para saber que nossas próprias escolhas são tão incertas quanto as dos que tentam nos presentear.
3) Quando alguém que amo (e que me ama) me oferece um presente, não espero receber aquele objeto que quero e procuro há tempo -claro, vou gostar de receber isso, e vai ser uma festa, mas, cá entre nós, esse tipo de coisa posso encontrar e comprar sozinho. De quem me ama, espero muito mais: espero receber algo que, até então, literalmente, eu não sabia que eu queria. O verdadeiro presente é aquele que me revela meu próprio desejo.
Enfim, boas compras de Natal.
Da Folha.
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