quinta-feira, dezembro 11, 2008
Zoé e o demônio do meio-dia- Contardo Calligaris
Da Folha de São Paulo hoje.
CONTARDO CALLIGARIS
Zoé e o demônio do meio-dia
O demônio do meio-dia é o tédio moderno, efeito de um mundo com poucos mistérios
DESDE PEQUENA, Zoé, 9 anos, adora filmes e histórias de terror. Seus pedidos espantam a moça da locadora de DVDs, que, provavelmente, duvida da sanidade mental dos pais.
De fato, Zoé assiste com prazer a filmes que, às vezes, deixam insones seu irmão mais velho, suas baby-sitters e mesmo sua mãe. Talvez Zoé seja cinéfila a ponto de assistir aos ditos filmes com o distanciamento de um crítico dos "Cahiers du Cinéma". Ela desmontaria os "truques" destinados a produzir espanto nos espectadores e, com isso, os filmes lhe proporcionariam uma experiência parecida com a de um bom exorcista: ela venceria o mal desvendando seus estratagemas.
Mas a paixão de Zoé pelas histórias de terror tem outra explicação possível, que me apareceu quando Zoé quis que sua festa de aniversário fosse o cenário de um filme.
Com a ajuda de um cineasta amigo da família, Zoé e seus convidados foram co-autores e protagonistas de um curta que, claro, é a história do aniversário de uma menina, durante o qual um monstro diabólico e sedento de sangue etc.
Graças ao filme (que, aliás, é bem legal) pensei o seguinte: talvez Zoé queira sobretudo convencer-se de que sempre, mesmo no dia ensolarado de seu aniversário, há zonas de sombra, por onde andam seres repugnantes e perigosos. Alguém perguntará: "Mas por que ela gostaria de pensar assim?"
Pois é, eu acho que essa idéia é, para qualquer um, uma fonte de alívio. Explico por quê.
O Salmo 90 (na numeração Clementina) expressa a esperança de que Deus nos guarde tanto das abominações "que circulam pelas trevas" quanto "do demônio do meio-dia". Sobre o tal demônio do meio-dia muito foi escrito e dito: diferente dos diabos que se escondem nos cantos escuros, o que será esse malefício que nos espreita justamente quando o sol está no zênite e o mundo nos aparece sem sombras?
Uma leitura moderna diz que o demônio do meio-dia não é um bicho do inferno, mas é um sofrimento insidioso, específico de uma época em que faltam cantos escuros.
Ele é nossa própria tristeza, a depressão e o tédio produzidos por um mundo com poucas sombras e poucos mistérios.
Em outras palavras, as luzes da razão e da ciência acabaram com aquele sentido que só uma transcendência (divina ou diabólica, benéfica ou maléfica, tanto faz) podia conferir à vida. Por excesso de luz, em suma, o mundo perdeu seus horrores, mas também seu encanto; com isso, é preciso que Deus nos proteja do demônio do meio-dia, ou seja, do tédio e da tristeza.
Ao inventar cantos escuros e ao povoá-los de "troços" inquietantes, Zoé está se protegendo contra o demônio do meio-dia -com toda razão, pois esse é provavelmente o mais pernicioso de todos. Muito melhor se deparar com Freddy Kruger do que não achar graça no mundo.
"Filosofia do Tédio", de Lars Svenden (Zahar), é uma brilhante meditação sobre a dificuldade moderna em nos interessarmos pela vida, uma vez que ela não é mais justificada pela palavra divina ou por nossa luta heróica contra os "troços" que circulam pelas trevas. Para Svenden, contra o tédio, ainda não inventamos nada melhor do que o remédio do Romantismo: uma mistura de anestesia (drogas lícitas e ilícitas) com transgressões que deveriam provar que estamos vivendo grandes aventuras e experiências "incríveis". Se for para escolher, prefiro os esforços de Zoé para repovoar o mundo de monstros e demônios.
Mas há uma terceira via. Li, nestes dias, "O Olho da Rua", de Eliane Brum (Globo). Brum, repórter especial da revista "Época", reúne dez grandes reportagens escritas entre 2000 e 2008. Fazia tempo que um livro não me tocava tanto. Que Brum fale das parteiras do Amapá, da guerra em Roraima, dos velhos da casa São Luiz para Velhice, ou mesmo que ela acompanhe o fim da vida de uma paciente terminal, seu texto é uma verdadeira alegria - pois ele nos lembra, simplesmente, que o mundo importa, que ele vale a pena. Como ela consegue?
O tédio moderno é uma forma de arrogância: a vida é chata porque nós seríamos maiores que sua suposta trivialidade insossa; tendemos a menosprezar o cenário onde nos toca viver, como se ele fosse demasiado banal para nossas façanhas. Pois bem, o segredo de Brum é o oposto disso, é uma extraordinária humildade diante do que existe.
Quando Zoé cansar de inventar monstros para dar sentido ao mundo e à vida, vou lhe sugerir o livro de Eliane Brum.
domingo, novembro 16, 2008
Amor sem pudor
Amor sem pudor
Comecei a ler este artigo e não consegui parar. Não o conhecia, deve ser excelente escritor. Leiam abaixo e me digam o que acham.
Copiei do Caderno MAIS!, Folha de S. Paulo, 16/11/08
Principal nome da nova geração de escritores norte-americanos, Jonathan Franzen descreve como o uso do celular modificou o espaço público e criou novas formas de sensibilidade
JONATHAN FRANZEN
Um dos grandes fatores irritantes da tecnologia moderna é que, quando alguma novidade tecnológica faz minha vida ficar sensivelmente pior e continua a encontrar maneiras novas e diferentes de me causar problemas, sou autorizado a me queixar dela por apenas um ano ou dois, antes que os marqueteiros do "cool" comecem a me mandar parar com isso -vovô, a vida hoje em dia é assim mesmo!
Não sou contra as novidades tecnológicas. A secretária eletrônica digital e a identificação do número de telefone de quem liga para você -que, juntas, acabaram com a tirania do telefone tocando- me parecem ser duas das invenções realmente importantes do final do século 20.
E como amo meu BlackBerry, que me permite responder a e-mails longos e indesejados com algumas linhas telegráficas ofegantes pelas quais, mesmo assim, o destinatário é obrigado a sentir-se grato, já que as escrevi com meus polegares. A privacidade, para mim, não quer dizer manter minha vida pessoal escondida de outras pessoas.
Os avanços tecnológicos com os quais tenho problema são os insultos que continuam a insultar, as dores do passado que continuam a provocar dor.
A TV dos aeroportos, por exemplo: parece que é assistida ativamente por não mais que 1 viajante em cada 10 (a não ser que estejam exibindo futebol), mas incomoda ativamente os outros nove.
Ano após ano, em um aeroporto após o outro, ela é responsável por uma diminuição pequena, mas aparentemente permanente, na qualidade de vida do viajante médio.
Outro exemplo: a obsolescência planejada de grandes softwares e sua substituição por softwares ruins. Ainda não me conformo com o fato de que o melhor processador de texto já escrito, o WordPerfect 5.0 para DOS, não funcione mais em nenhum computador que eu possa comprar hoje.
Mas essas são apenas irritações menores. O avanço tecnológico que causou danos duradouros de importância social real -e que, apesar de continuar a fazê-lo, faz você correr o risco de ser ridicularizado se se queixar dele publicamente hoje- é o telefone celular.
Cigarro e celular
Há dez anos, Nova York (onde vivo) era repleta de espaços públicos mantidos coletivamente em que os cidadãos demonstravam respeito por sua comunidade, não a obrigando a tomar conhecimento de suas vidas amorosas banais.
O mundo de dez anos atrás ainda não tinha sido totalmente dominado pela verborréia. Ainda era possível ver o uso de Nokias como uma ostentação ou afetação de ricos. Ou, sob uma óptica mais tolerante, como um mal, uma deficiência ou uma muleta.
Afinal, na Nova York do final dos anos 1990, a transmissão de cultura da nicotina para cultura do celular ainda estava em processo. Num dia o volume no bolso da camisa era um maço de Marlboro; no dia seguinte, era um Motorola.
Um dia a garota bonita, vulnerável por estar desacompanhada, estava ocupando suas mãos, sua boca e sua atenção com um cigarro; no dia seguinte, ocupava-o com uma conversa muito importante com uma pessoa que não era você.
Num dia uma multidão se reunia em torno do primeiro adolescente no playground a carregar um maço de cigarros; no dia seguinte, se reunia em volta do primeiro a ostentar uma tela colorida.
Num dia, os viajantes acendiam seus isqueiros assim que desciam do avião; no dia seguinte, estavam discando números em seus celulares.
Dependências de um maço de cigarros por dia viraram contas mensais de US$ 100. A poluição por fumaça virou poluição sonora.
E, apesar de o fator irritante ter mudado da noite para o dia, o sofrimento imposto a uma maioria contida por uma minoria compulsiva, em restaurantes, aeroportos e outros espaços públicos, continuou a ser uma constante estranha.
Em 1998, pouco depois de abandonar o cigarro, eu ficava sentado no metrô, observando outros passageiros abrirem e fecharem seus celulares, nervosos, ou mastigarem as antenas (que lembravam tetas e que todos os telefones tinham à época) ou então simplesmente segurarem firme seus telefones, como se estivessem agarrando as mãos de suas mães, e sentia algo como compaixão por eles.
Sem resistência
Ainda me parecia ser questionável até onde iria a tendência: se Nova York queria realmente virar uma cidade de viciados em telefone, perambulando pelas ruas como sonâmbulos, envoltos em pequenas nuvens pegajosas de vida privada, ou se a noção de um eu público mais contido conseguiria prevalecer.
É desnecessário dizer que não houve disputa nenhuma. O celular não foi uma daquelas novidades modernas, como o Ritalin [nome comercial do metilfenidato] ou os guarda-chuvas extragrandes. Seu triunfo foi rápido e total.
Seus abusos foram lamentados e criticados em ensaios, colunas e cartas a editores diversos e, então, lamentados e criticados com ainda mais contundência quando os abusos pareceram apenas se intensificar, mas foi só isso.
As queixas foram registradas, foram feitos alguns ajustes simbólicos (o "vagão silencioso" nos trens Amtrak, plaquinhas discretas pedindo contenção no uso do celular em restaurantes e academias) e a tecnologia do celular ficou livre para continuar a provocar seus danos sem medo de ser alvo de mais críticas, porque novas críticas seriam antiquadas e nada "cool", vovô.
Mas o simples fato de o problema já ser familiar não significa que o vapor metafórico deixe de sair dos ouvidos de motoristas presos atrás de um sujeito que dirige na pista da esquerda, batendo papo ao telefone enquanto se mantém paralelo ao veículo que está na pista mais lenta.
Apesar disso, tudo em nossa cultura comercial diz ao motorista tagarela que ele está com a razão e assinala a todos os outros que estamos errados -que estamos deixando de entrar na onda do programa barato de liberdade, mobilidade e minutos ilimitados.
A cultura comercial nos diz que, se estamos irritados com o motorista tagarela, deve ser porque não estamos nos divertindo tanto quanto ele.
O que há de errado conosco, afinal? Por que não podemos abrir um sorriso e tirar do bolso nossos próprios telefones, com nossos próprios planos de ligações mais baratas para familiares e amigos e começar a nos divertir mais ali mesmo, na pista de rolamento?
As pessoas socialmente retardadas não começam a agir de modo mais adulto de repente, quando os críticos sociais são forçados a silenciar devido à pressão de seus pares. Ficam mais mal-educadas, só isso.
Fila do caixa
Uma praga nacional de hoje que só vem se agravando é a do cliente que continua absorto num telefonema enquanto efetua uma compra em um caixa de um supermercado ou em uma loja.
A combinação típica em meu bairro, em Manhattan, envolve uma jovem branca, recém-graduada de alguma escola cara, e uma mulher local, negra ou hispânica, de aproximadamente a mesma idade, mas que teve menos vantagens na vida.
É claro que é uma vaidade liberal esperar que a caixa interaja com você ou aprecie as exigências de seu trabalho; ela é autorizada a tratá-lo com tédio ou indiferença; na pior das hipóteses, é uma atitude pouco profissional da parte dela.
Mas isso não alivia você de sua própria obrigação moral de reconhecer a existência dela como pessoa.
E, embora seja verdade que algumas caixas e balconistas pareçam não se incomodar em serem ignoradas, uma porcentagem notavelmente maior delas se irrita, se aborrece ou se entristece visivelmente quando uma cliente se mostra incapaz de afastar-se do celular para lhe dedicar pelo menos dois segundos de interação direta.
Desnecessário dizer que a própria infratora, como o motorista tagarela na rodovia, ignora alegremente o fato de estar irritando alguém.
E, em minha experiência, quanto mais longa a fila que se forma atrás dela, maior é a probabilidade de ela pagar sua compra de US$ 1,98 com cartão de crédito.
Existe, é claro, uma conseqüência social positiva do agravamento desses maus comportamentos. A noção abstrata de espaços públicos civilizados como recursos raros que merecem ser defendidos pode estar praticamente morta, mas ainda é possível encontrar consolo nas comunidades momentâneas e pontuais de sofredores criadas por esses maus comportamentos.
Olhar pela janela de seu carro e ver o vapor metafórico saindo dos ouvidos de outro motorista ou encontrar o olhar da caixa irritada do supermercado e acenar a cabeça, solidarizando-se com ele -essas coisas fazem a gente sentir-se menos só.
É por essa razão que, de todas as variedades cada vez piores de mau comportamento ao celular, aquela que mais profundamente me irrita é a que, pelo fato de não fazer vítimas evidentes, aparentemente não irrita a mais ninguém.
Refiro-me ao hábito -incomum há dez anos, mas hoje onipresente- de encerrar conversas ao celular gritando "amo você!". Ou, ainda mais opressivo e exasperador, "eu te amo!". Isso faz sentir vontade de me mudar para a China, onde não entendo a língua que as pessoas falam. Me dá vontade de gritar.
Imposição pessoal
O componente celular de minha irritação é simples e direto.
Simplesmente não quero -enquanto estou comprando meias na Gap ou na fila para comprar um ingresso e me ocupando com meus pensamentos pessoais ou tentando ler um romance num avião quando o embarque ainda não foi encerrado- ser arrastado em minha imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo.
A própria essência do que é tão desagradável no celular como fenômeno social é que ele possibilita e incentiva o ato de impor o pessoal e individual ao público e comunal.
E não existe declaração de mais alto calibre que "eu te amo" -não há nada pior que um indivíduo possa impor a um espaço público comum. Mesmo "vá à merda, imbecil!" é menos invasivo, na medida em que é o tipo de coisa que pessoas iradas às vezes gritam em público e que pode igualmente bem ser dirigido a um estranho.
Minha amiga Elisabeth me assegura que a nova praga nacional do "amo você" é uma coisa boa -uma reação saudável contra a dinâmica familiar reprimida de nossas infâncias protestantes de algumas décadas atrás.
O que pode haver de errado, diz Elisabeth, em você dizer a sua mãe que a ama ou ouvir dela que o ama? E se um de vocês dois morrer antes que vocês possam voltar a se falar? Não é bom que possamos nos dizer essas coisas com tanta liberdade hoje em dia?
Vou admitir a possibilidade de que, comparado a todas as outras pessoas no aeroporto, eu seja uma pessoa extraordinariamente fria e pouco amorosa; que a sensação repentina e avassaladora de amar alguém (um amigo, cônjuge, pai, mãe ou irmão) -que para mim é uma sensação tão importante e única que faço questão de não desgastar pelo uso a frase que melhor a expressa- é para outras pessoas tão comum e corriqueira que pode ser revivida e reexpressa muitas vezes em um único dia sem perda significativa de seu poder.
Entretanto, também é possível que a repetição habitual e excessivamente freqüente esvazie frases de seu significado.
[A cantora canadense] Joni Mitchell, em "Both Sides Now", falou do espanto solene de poder dizer "eu te amo" "em voz alta": de dar à luz vocalmente uma intensidade tão grande de sentimento. Stevie Wonder, em letra escrita 17 anos depois, canta sobre telefonar a alguém numa tarde qualquer simplesmente para dizer "eu te amo".
Confirmação
E, pelo fato de ser Stevie Wonder (que provavelmente, de fato, é uma pessoa mais amorosa que eu), mais ou menos consegue me fazer acreditar em sua sinceridade -pelo menos até o último verso do refrão, em que acha necessário acrescentar: "E digo isso do fundo do meu coração".
Nenhuma confirmação desse tipo seria cogitada por alguém que realmente dissesse algo do fundo de seu coração.
E assim, quando estou comprando minhas meias na Gap e a mãe que está na fila atrás de mim berra "eu te amo!" em seu pequeno telefone, não posso deixar de sentir que algo está sendo representado, sobre-representado, representado publicamente, imposto em tom desafiador.
Sim, muitas coisas domésticas são gritadas em público que não se destinam realmente ao consumo público; sim, as pessoas se deixam levar. Mas a frase "eu te amo" é demasiado importante e carregada, e seu uso como despedida é demasiado consciente para que eu possa acreditar que estou sendo forçado a ouvi-la por acaso.
Se a declaração de amor da mãe tivesse peso genuíno, reservadamente emocional, ela não tomaria pelo menos um pouco de cuidado para protegê-la de ser ouvida publicamente?
Se estivesse de fato falando a sério, do fundo de seu coração, não seria obrigada a dizê-lo em voz baixa? Sendo um estranho que a ouve dizê-la por acaso, tenho a sensação de ser convertido em participante de uma afirmação agressiva de direitos.
Ou será que eu, em minha irritação, que, admito, já começa a soar lunática, estou simplesmente projetando tudo isso?
O telefone celular chegou à maioridade em 11 de setembro de 2001. Ficou gravada em nossa consciência coletiva naquele dia a imagem de celulares como canais de expressão de intimidade pelos desesperados.
Em cada "eu te amo" dito em voz demasiado alta hoje em dia, assim como na orgia nacional mais generalizada de conectividade -o imperativo de pais e filhos se comunicarem pelo telefone uma, duas, cinco ou dez vezes por dia-, é difícil não ouvir um eco daqueles "eu te amos" terríveis, dolorosos, de partir o coração, inteiramente apropriados, ditos nos quatro aviões e naquelas duas torres fadados à destruição. E é precisamente esse eco, o fato de ser um eco, o sentimentalismo dele, que tanto me irrita.
As duas torres
Minha própria experiência do 11 de Setembro foi anômala devido à ausência de televisão. Às 9h recebi um telefonema do editor de meus livros, que, da janela de seu escritório, acabara de ver o segundo avião chocar-se com as torres.
Fui imediatamente à TV mais próxima, na sala de conferências da imobiliária situada no térreo de meu edifício e, ao lado de um grupo de corretores, assisti à queda de primeiro uma das torres e depois da outra.
Mas, então, minha namorada voltou para casa e passamos o resto do dia ouvindo o rádio, acompanhando os fatos pela web, tranqüilizando nossas famílias e assistindo da cobertura de nosso prédio e do meio da avenida Lexington (que ficou repleta de pedestres), enquanto a poeira e a fumaça da parte baixa de Manhattan se espalharam, formando uma nuvem nauseante que cobriu tudo.
À noite, percorremos a rua 42, encontramos um amigo que mora fora da cidade e descobrimos um restaurante italiano na rua 40 que estava servindo jantar. As mesas estavam cheias de pessoas bebendo muito; o clima era de tempos de guerra.
Sentados num trem da estação Grand Central, esperando que partisse, observamos um passageiro nova-iorquino queixando-se com um cobrador, irado, sobre a falta dos trens expressos para o Bronx.
Três noites depois, das 23h até quase 3h, fiquei sentado numa sala gélida da ABC News, de onde podia ver o também nova-iorquino David Halberstam e falar por vídeo com Maya Angelou e alguns outros escritores de fora da cidade, enquanto aguardávamos para dar a Ted Koppel [então âncora no canal] uma perspectiva literária dos ataques da manhã da terça.
A espera não foi curta. Imagens dos ataques e cenas da queda das torres e dos incêndios subseqüentes foram exibidas repetidas vezes, intercaladas com longos segmentos sobre o preço emocional cobrado dos cidadãos comuns e de seus filhos impressionáveis.
De quando em quando, um ou dois de nós, escritores, tínhamos 60 segundos nos quais dizer algo em tom próprio de escritor, antes de a cobertura voltar a mostrar mais carnificina e entrevistas arrasadoras com amigos e familiares dos mortos e desaparecidos.
O não visto
Falei quatro vezes em três horas e meia. Na segunda vez, pediram-me para confirmar relatos segundo os quais os ataques da terça-feira teriam modificado profundamente a personalidade dos nova-iorquinos. Não pude confirmar os relatos.
Disse que as expressões que vi nos rostos das pessoas eram sombrias, não enfurecidas, e contei que vi pessoas fazendo compras nas lojas de meu bairro na tarde da quarta-feira, comprando roupas de outono.
Em sua resposta, Ted Koppel deixou claro que eu falhara na tarefa que passara metade da noite esperando para desempenhar. Franzindo o cenho, disse que sua própria impressão era muito diferente: que os ataques haviam de fato mudado profundamente a personalidade de Nova York.
Naturalmente, achei que estava falando a verdade e presumi que Koppel estivesse apenas retransmitindo opiniões recebidas de outros. Mas Koppel estivera assistindo à TV, e eu não.
Eu não entendera que o pior dano ao país estava sendo feito não pelo patógeno, mas pela maciça reação contrária exagerada do sistema imunológico, porque eu não tinha TV.
Eu estivera comparando mentalmente a contagem de mortos da terça-feira com outras contagens de mortes violentas -3.000 americanos mortos em acidentes de trânsito nos 30 dias que precederam o 11 de Setembro- porque, não tendo visto as imagens, eu pensara que os números eram importantes.
Eu dedicara energia a imaginar, ou resistir a imaginar, o horror de estar sentado ao lado da janela enquanto o avião em que você voava descia sobre a rodovia West Side, ou de estar preso no 95º andar e ouvir a estrutura de aço abaixo de você começar a gemer e ruir, enquanto o resto do país vivia o trauma real, em tempo real, assistindo às mesmas imagens inúmeras vezes repetidas.
Assim, eu não precisei da sessão televisionada nacional de terapia de grupo, a enorme "maratona de abraços" tecnológica que aconteceu nos dias, semanas e meses seguintes em resposta ao trauma da exposição às imagens televisionadas.
O que pude observar foi a repentina, misteriosa e desastrosa sentimentalização do discurso público americano.
E, assim como não posso deixar de colocar a culpa na tecnologia celular quando as pessoas despejam afeto parental ou filial em seus telefones e descortesia sobre todos os estranhos ao alcance de suas vozes, não posso deixar de colocar sobre a tecnologia da mídia a culpa do processo nacional de priorização do pessoal.
Diferentemente de 1941, por exemplo, quando os EUA responderam a um ataque terrível [em Pearl Harbor] com determinação, disciplina e sacrifício coletivos, em 2001 tivemos visuais fantásticos.
Trauma exposto
Tínhamos imagens amadoras e pudemos decompô-las quadro a quadro.
Tínhamos telas com as quais pudemos levar a violência nua e crua para dentro de todos os quartos do país; tínhamos gravações de secretárias eletrônicas que deixaram registrados os telefonemas derradeiros e desesperados dos fadados a morrer; tínhamos psicologia de último tipo para explicar e sanar nosso trauma.
Mas, com relação ao que os ataques realmente significaram e a qual poderia ser uma reação sensata, as atitudes variaram. Esta é a coisa fantástica da tecnologia digital: acabou-se a censura dolorosa dos sentimentos de todo o mundo! Todos têm o direito de expressar suas opiniões!
Assim, a questão de se Saddam Hussein tinha ou não comprado pessoalmente as passagens aéreas dos seqüestradores continuou aberta a discussões acaloradas.
O que foi consenso geral, em lugar disso, foi que os familiares das vítimas do 11 de Setembro tinham o direito de aprovar ou vetar os planos para o memorial a ser erguido no Ponto Zero [onde ficavam as Torres Gêmeas].
E todo mundo pôde compartilhar a dor vivida pelas famílias dos policiais e bombeiros que tombaram. E todos concordaram que a ironia morrera. Depois do 11 de Setembro, a ironia vazia e maléfica dos anos 1990 simplesmente "não era mais possível"; tínhamos ingressado numa nova era da sinceridade.
O lado positivo disso é que os americanos, em 2001, passaram a dizer "eu te amo" a seus filhos com muito mais facilidade do que o haviam feito seus pais ou avós. Mas e no quesito da competição econômica? No esforço conjunto como nação? Em derrotar nossos inimigos? Em formar alianças internacionais fortes? Nesses quesitos, o balanço talvez pese um pouco para o negativo. Meus pais se conheceram dois anos depois de Pearl Harbor, no outono de 1943, e poucos meses depois já estavam trocando cartões e cartas.
Meu pai trabalhava para a ferrovia Grand Northern e com freqüência estava na estrada, em cidadezinhas pequenas, inspecionando pontes, enquanto minha mãe permanecia em Minneapolis, trabalhando como recepcionista. Das cartas dele a ela que tenho em minha posse, a mais antiga é do Dia dos Namorados em 1944. Ele estava em Fairview (Montana) e minha mãe lhe enviara um cartão de Dia dos Namorados no mesmo estilo de todos os seus cartões no ano que antecedeu o casamento deles: desenhos de bebês, criancinhas ou filhotes de animais expressando sentimentos doces.
Correspondência
A parte dianteira do cartão (que meu pai também guardou) mostra uma menininha de maria-chiquinha e um menininho corado, cada um olhando para um lado, envergonhados, e com as mãos às costas. "Queria ser uma pedrinha,/ Porque assim, quando ficar velhinha/ Talvez me veja dengosa/ E um pouco mais "corrachosa"." A resposta de meu pai traz o carimbo postal de Fairview de 14 de fevereiro e diz: "Terça-feira à noite.
Querida Irene, Sinto muito tê-la decepcionado no Dia dos Namorados; eu me lembrei, sim, mas, não tendo conseguido um cartão na farmácia, me senti um pouco tolo pedindo um na mercearia ou na loja de ferragens. Estou certo de que as pessoas aqui já ouviram falar do Dia dos Namorados.
Seu cartão correspondeu perfeitamente à situação aqui, e não sei se foi intencional ou acidental, mas acho que devo, sim, ter lhe falado de nossos problemas com as rochas. Hoje ficamos sem pedras para trabalhar, então meu desejo é de pedras pequenas, pedras grandes ou qualquer outro tipo de pedra, já que não há nada a fazer enquanto não conseguirmos pedras.
Já há pouco para eu fazer quando o empreiteiro está trabalhando, e agora não há absolutamente nada. Hoje caminhei até a ponte em que estamos trabalhando, apenas para matar tempo e fazer um pouco de exercício; é uma distância de seis quilômetros, longe o suficiente, com um vento forte me fustigando. Se não conseguirmos pedras pela manhã, ficarei sentado aqui mesmo, lendo filosofia; não me parece correto que eu seja pago por passar meu dia dessa maneira.
Mais ou menos o único outro passatempo que existe por aqui é ficar sentado no saguão do hotel ouvindo as fofocas da cidade, e os velhos que freqüentam o lugar não medem as palavras. Você acharia divertido, porque há uma amostra ampla da vida humana representada aqui, desde o médico local até o bêbado da cidade. E este último é provavelmente o mais interessante: ouvi dizer que ele chegou a lecionar na Universidade de N.D. no passado, e realmente parece ser uma pessoa bastante inteligente, mesmo quando está bêbado.
Normalmente as conversas são bastante grosseiras, mais ou menos como as que Steinbeck [escritor norte-americano, autor de "As Vinhas da Ira'] deve ter usado como ponto de partida, mas nesta noite entrou no saguão uma mulher muito grande que se colocou totalmente à vontade. Isso me faz perceber como é protegida a vida que vivemos, nós, moradores da cidade grande. Cresci numa cidade pequena e me sinto à vontade aqui, mas hoje parece que vejo as coisas sob uma óptica diferente. Escreverei mais sobre isso.
Espero estar de volta a St. Paul no sábado à noite, mas ainda não sei ao certo. Telefonarei a você quando voltar. Com todo meu amor Earl" Meu pai completara 29 anos pouco antes disso. É impossível saber como minha mãe, em sua inocência e em seu otimismo, recebeu a carta dele na época, mas, de modo geral, considerando a mulher que eu cresci conhecendo, posso afirmar que essa não era em absoluto a espécie de carta que ela teria gostado de receber de seu par romântico.
O trocadilho bonitinho de seu cartão de Dia dos Namorados interpretado literalmente como referência a lastro de ferrovia? E ela, que passara a vida inteira procurando distanciar-se do bar de hotel em que seu pai trabalhara como barman, poderia divertir-se ouvindo a "conversa grosseira" do bêbado da cidade? Onde estavam as expressões de ternura? As palavras sonhadoras de amor? Era evidente que meu pai ainda tinha muito a aprender sobre ela.
A mim, entretanto, a carta dele parece repleta de amor. Amor por minha mãe, com certeza; tentou encontrar um cartão de Dia dos Namorados para ela, leu sua carta com cuidado, deseja que estivesse a seu lado, tem idéias que quer dividir com ela, está lhe enviando todo seu amor e diz que lhe telefonará assim que retornar.
Mas também amor pelo mundo mais amplo: pelos diversos tipos de pessoas que o habitam, pelas cidades pequenas e grandes, por filosofia e literatura, pelo trabalho duro e o pagamento justo, pela conversa, pela reflexão, por longas caminhadas ao vento, por palavras escolhidas com cuidado e ortografia perfeita. A carta me lembra das muitas coisas que eu amava em meu pai -sua decência, sua inteligência, seu humor inesperado, sua curiosidade, sua probidade, sua reserva e dignidade.
Apenas quando a coloco ao lado do cartão de Dia dos Namorados de minha mãe, com suas criancinhas de olhos grandes e sua preocupação com o puro sentimento, é que minha atenção se volta às décadas de desapontamento mútuo que se seguiram aos primeiros anos de felicidade quase cega deles. Mais tarde, minha mãe se queixaria comigo, dizendo que meu pai nunca lhe dissera que a amava. E talvez seja verdade, literalmente, que ele nunca proferiu as três palavras grandes -eu, com certeza, nunca o ouvi fazendo isso.
Mas não é verdade, definitivamente, que nunca escreveu as palavras.
O não dito
Uma razão pela qual levei anos para criar coragem de ler a correspondência antiga que trocaram é que a primeira carta de meu pai que li, após a morte de minha mãe, começava com uma expressão de carinho ("Irenie") que eu nunca o ouvi pronunciar nos 35 anos durante os quais o conheci e terminava com uma declaração ("eu te amo, Irene") que era mais do que eu pude suportar ver. Não soava nada como ele, e por isso guardei todas as cartas num baú no sótão da casa de meu irmão.
Recentemente, quando as recuperei e consegui lê-las, descobri que meu pai de fato declarou seu amor dúzias de vezes, usando as três palavras grandes, tanto antes quanto depois de casar-se com minha mãe. Mas é possível que, mesmo naquela época, tenha sido incapaz de pronunciar as palavras em voz alta e talvez tenha sido por isso que, na memória de minha mãe, ele nunca as "dissera". Também é possível que suas declarações escritas tenham soado tão estranhas a sua personalidade nos anos 1940 como soam a mim, hoje, e que minha mãe, em suas queixas, se recordasse de uma verdade mais profunda oculta sob as palavras aparentemente afetuosas dele. "Both Sides Now", na versão de Judy Collins, foi a primeira canção pop a ficar gravada em minha cabeça.
Era tocada constantemente no rádio quando eu tinha oito ou nove anos, e sua referência a declarar seu amor "em alto e bom som", somada à paixonite que eu nutria por sua voz, ajudou a fazer com que, para mim, o sentido primeiro de "eu te amo" fosse sexual.
Acabei vivendo os anos 1970 e me tornando capaz de, em raros acessos de emoção, dizer a meus irmãos e melhores amigos homens que os amava. Mas, durante todo o ensino fundamental, essas palavras tiveram um sentido para mim, e um sentido apenas. "Eu te amo" era o que eu queria ver rabiscado num bilhetinho da garota mais bonita da classe ou ouvir sussurrado nos bosques no piquenique da escola. Naqueles anos, aconteceu apenas duas vezes de uma garota de que eu gostasse de fato me dizer ou escrever isso. Mas, quando aconteceu, foi uma injeção de pura adrenalina.
Mesmo depois de ir à faculdade e começar a ler [o poeta] Wallace Stevens, descobrindo-o zombando, em "Le Monocle de Mon Oncle", de pessoas como eu, que procuravam o amor indiscriminadamente -"Se o sexo fosse tudo, então cada mão trêmula/ seria capaz de nos fazer gemer, como bonecos, as palavras tão ansiadas"-, aquelas palavras tão ansiadas continuaram a evocar o abrir de uma boca, a oferta de um corpo, a promessa de intimidade inebriante. Assim, era muito constrangedor pra mim que a pessoa de quem eu ouvia essas palavras constantemente fosse minha própria mãe.
Era a única mulher em uma casa de homens e vivia com um excesso tão grande de sentimentos sem reciprocidade que não podia deixar de buscar expressões românticas.
Eu também As cartas e as palavras de ternura que derramava sobre mim eram idênticas em espírito às que derramara sobre meu pai no passado. Muito tempo antes de eu nascer, meu pai já passara a enxergar suas expressões de sentimento como insuportavelmente infantis. Sobrevivi a muitos períodos de minha infância, as longas semanas durante as quais nós dois estávamos sozinhos em casa, me agarrando a distinções cruciais de intensidade entre as frases "eu te amo", "também te amo" e "amo você".
O crucial era nunca, jamais dizer "eu te amo" ou "eu te amo, mamãe". A alternativa menos difícil era um "te amo" resmungado, quase inaudível. Mas "também te amo", se pronunciado com rapidez suficiente e com ênfase suficiente no "também", que deixava subentendida uma reciprocidade obrigatória, garantiu minha passagem por muitos momentos de constrangimento. Não me recordo se ela me repreendeu especificamente por eu resmungar ou me deu bronca quando (como às vezes acontecia) eu era incapaz de responder com qualquer coisa senão um grunhido evasivo.
Mas tampouco me disse, em momento nenhum, que dizer "eu te amo" era simplesmente algo que gostava de fazer porque seu coração estava cheio de sentimento e que eu não deveria me sentir obrigado a dizer "eu te amo" de volta a cada vez. E assim, até hoje, quando sou agredido por alguém gritando "eu te amo" no celular, ouço como coerção. Meu pai, apesar de escrever cartas repletas de vida e curiosidade, não viu nada de errado em relegar minha mãe a quatro décadas encerrada em casa, cozinhando e fazendo a faxina, enquanto curtia seu trabalho lá fora, no mundo dos homens.
Parece ser a regra, tanto no mundinho pequeno do casamento quanto no grande mundo da vida americana, que aqueles que não têm vida ativa no trabalho têm sentimentalismo -e vice-versa. As várias histerias do pós-11 de Setembro, tanto a praga dos "eu te amos" quanto os amplamente disseminados medo e ódio dos "cabeças de turbante", foram histerias daqueles que não tinham poder, que se sentiam dominados. Se minha mãe tivesse desfrutado de mais possibilidades de auto-realização, talvez tivesse medido seus sentimentos de modo mais realista, adequando-os a seus objetos.
Respeito ao público
Por mais frio, reprimido ou sexista que meu pai possa parecer, pelos padrões contemporâneos, eu me sinto grato pelo fato de nunca ter me declarado abertamente que me amava. Meu pai amava a privacidade -ou seja, respeitava a esfera pública. Acreditava na contenção, no protocolo, na razão, porque, sem eles -acreditava- , seria impossível uma sociedade debater e tomar as decisões que melhor atendessem a seus interesses.
Talvez tivesse sido agradável, especialmente para mim, se ele tivesse aprendido a demonstrar mais seus sentimentos por minha mãe. Mas cada vez que ouço hoje em dia um daqueles "eu te amos" parentais berrados ao celular, me sinto um homem de sorte por ter tido o pai que tive. Ele amava seus filhos mais do que tudo.
E saber que ele sentia isso, mas não sabia declará-lo; saber que ele podia confiar que eu sabia disso e não esperava que ele o declarasse -esse era o próprio núcleo central do amor que eu sentia por ele. Amor esse que eu, por minha vez, tomei o cuidado de nunca declarar em voz alta a ele. Mas essa foi a parte fácil. Entre mim e a situação em que meu pai está agora -ou seja, morto-, nada pode ser transmitido, exceto o silêncio. Ninguém tem mais privacidade que os mortos.
Hoje meu pai e eu não nos dizemos muito menos do que nos dissemos em muitos dos anos em que ele viveu. A pessoa de quem eu me descubro sentindo saudades -discutindo mentalmente com ela, querendo mostrar coisas a ela, querendo que viesse conhecer meu apartamento, zombando dela, sentindo remorsos em relação a ela- é minha mãe. A parte de mim que se irrita com as intromissões dos celulares vem de meu pai. A parte de mim que ama meu BlackBerry e quer ficar mais leve e fazer parte do mundo vem de minha mãe. Era a mais moderna dos dois e, embora ele -e não ela- fosse a pessoa que trabalhava fora, ela acabou do lado vencedor.
Se ainda estivesse viva e vivendo em St. Louis e se você, por acaso, estivesse sentado ao meu lado no aeroporto, aguardando um vôo para Nova York, talvez fosse exposto à provação de me ouvir dizendo a ela que a amava.
Mas eu falaria em voz baixa.
JONATHAN FRANZEN é romancista norte-americano, autor de "As Correções" (Cia. das Letras), entre outros livros. A íntegra deste texto saiu na revista "Technology Review".
Tradução de Clara Allain.
domingo, outubro 26, 2008
Renato Mezan fala sobre o seqüestro
A mídia tem transformado todo evento em espetáculo circense. O efeito é nefasto, sempre. Procuro não ver,mas eu sou tão pequenininha...a maioria adora ver TUDO.
Leiam o Mezan, depois digam se não tem razão.
Eu sou o cara
ESPETACULARIZAÇÃO DAS TVS EXACERBOU MECANISMO MENTAL ARCAICO DO SEQÜESTRADOR, QUE PROJETOU EM ELOÁ A SENSAÇÃO DE ESTAR SENDO ATACADO POR FORÇAS MALÉFICAS
Cabe perguntar que efeitos pode ter produzido a transformação de Lindemberg em celebridade nacional
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Um dos aspectos mais comentados do seqüestro que comoveu o país nas duas últimas semanas foi a atuação das emissoras de TV. Escudadas na "missão de informar" -mas, na verdade, sequiosas de superar a qualquer custo a audiência das demais-, acabaram fornecendo a Lindemberg Alves informações preciosas sobre a posição e as ações dos policiais e, com sua irresponsabilidade, provavelmente contribuíram para o desfecho trágico do episódio.
"Suave, mari magno turbantibus aequora ventis, e terra magnum alterius laborem spectare" (é doce, quando no vasto mar os ventos sacodem as águas, contemplar da terra firme o trabalho de um outro), escreveu Lucrécio em seu tratado "De Rerum Natura" [Da Natureza das Coisas].
Sem querer arvorar-me em juiz do que outros acharam correto fazer, pergunto: a espetacularização de situações como essa não acirra ainda mais as forças psíquicas que se podem supor em ação na mente de um criminoso?
Criminoso, sim -pois Eloá Pimentel não morreu por causa da televisão nem porque os policiais invadiram o cativeiro, e sim porque seu ex-namorado atirou contra ela.
Mas cabe perguntar que efeitos pode ter produzido a transformação dele -enquanto tinha uma arma na mão- em celebridade nacional.
Angústia
Os trechos de conversa entre o seqüestrador e o capitão Adriano Giovanini publicados pela imprensa sugerem que eles não foram pequenos -como aliás notaram tanto o professor Norval Batista Jr., da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), quanto o coronel Eduardo Félix: "Ele queria provar a todo instante que tinha o domínio da situação", disse o militar; "a mídia exacerbou a psicopatia e a megalomania que estavam em jogo", explicou o especialista.
As declarações de Lindemberg e o modo como se portou durante aqueles quatro dias terríveis sugerem que se trata de uma pessoa muito frágil.
No que consiste essa fragilidade? De modo sumário, numa organização da personalidade que evidencia mecanismos mentais muito arcaicos, uma angústia extremamente intensa, e modos de lidar com ela que, em vez de a diminuir, potencializam a sensação de estar sendo atacado por forças maléficas contra as quais é preciso se defender a todo custo.
Partamos do que disse o rapaz: "Meu problema é com a menina que tá aqui na minha frente. Tenho que desenrolar...". Desenrolar o quê? O que ele via em Eloá, que a tornava tão indispensável a sua sobrevivência psíquica? Claramente, bem mais que um objeto de desejo ou de amor.
Tudo indica que havia projetado nela algo de si mesmo, uma parte ao mesmo tempo amada, odiada e temida, que nem podia recuperar nem tolerar que "fosse embora".
Projeções maciças
Esse modo de estabelecer vínculos é menos raro do que se poderia supor. Ele tem o nome de "relação de objeto narcísica" e, quando se instala, acarreta conseqüências bastante graves -embora deva ficar claro que, no mais das vezes, não levam o sujeito a matar alguém.
Em primeiro lugar, a relação com os outros significativos (pais, namorados, cônjuges) é permeada por projeções maciças: eles se convertem em artigos de primeira necessidade, um pouco como a droga para o adicto.
Deles se exigem uma presença física e um grau de atenção que comprovem o quanto amam o sujeito; mas, como o que este almeja é fundir-se com o objeto para poder controlá-lo, por assim dizer, "de dentro", o fato de que o ser amado é diferente dele e tem vida própria é sentido como insuportável.
A ameaça de o perder (real ou imaginária) desencadeia uma angústia aterradora, que freqüentemente se exprime por ciúmes patológicos e por atuações que podem chegar à violência. Pelo que mostrou de si durante o seqüestro, Lindemberg parece fazer parte desse grupo de pessoas.
O termo que empregou -desenrolar- é revelador: precisava separar-se do que havia depositado na ex-namorada. Como diz a psicanalista Joyce McDougall ("Le Théâtre en Rond", em "Théâtres du Je" [O Teatro de Arena, em Teatros do Eu]), o outro é aqui "considerado e tratado como uma parte de si mesmo que deve ser amada, odiada, dominada ou destruída".
Mas isso era justamente o que não podia fazer: "Estou confuso", "preciso ficar sozinho", "olho para a frente e não vejo caminho". A total impotência, impossível de ser admitida porque significaria a ruína de uma auto-imagem já muito pouco sólida, é negada pela megalomania: "Eu sou o cara", "sou o príncipe do gueto, o cara que manda no local".
A espetacularização do seu ato tresloucado, a evidência de que (como disse o coronel) havia conseguido mobilizar todo aquele aparato (e a atenção de milhões de telespectadores), teve o efeito de reforçar sua crença nessas fantasias grandiosas. Tudo indica que elas estavam a ponto de se converter em delírio: "Tem um anjinho e um diabinho, e o diabinho está falando mais alto".
A projeção das dúvidas em entes sobrenaturais, devidamente divididos em um bom e um mau, fica aqui patente.
Também é visível o apelo a uma figura capaz de pôr fim àquela situação, alguém dotado de poder suficiente tanto para silenciar o diabinho quanto para fazer Eloá desistir de o abandonar: "Invade essa p... logo, mano.
Tô falando para você invadir. Se a polícia passar segurança, a gente sai de mãos dadas [...], mas preciso de sinceridade."
Bebês
A necessidade de controlar essa parte cindida de si é ilustrada por McDougall com um comportamento observado em alguns bebês que sofrem de insônia crônica: para adormecer, precisam sempre da presença física da mãe.
Isso sugere que não conseguiram interiorizar a imagem materna em grau suficiente para poder se apoiar nela e se desligar com tranqüilidade do estado de vigília; pode-se dizer que a figura da mãe não chega a se constituir no núcleo de um objeto interno "bom" e reassegurador.
Por conseguinte, o sentimento de identidade desses futuros adultos -de ser "eu", ao mesmo tempo separado dos outros e ligado a eles por vínculos sólidos e variados- permanece como que esburacado, gelatinoso, lacunar, exigindo ser reforçado pela injeção constante de "cimento narcísico" por parte do objeto a quem se delegou essa função.
Se estas observações permitem formular uma hipótese sobre por que Lindemberg não pôde suportar ser abandonado pela namorada, por outro lado não o isentam da responsabilidade pelo crime que cometeu.
Isso dito, ficam as lições das quais bastante se falou nos últimos dias.
Mesmo que nada garanta que um seqüestrador enlouquecido não vá matar sua vítima, a polícia deve receber os equipamentos que poderiam ter monitorado o que se passava no apartamento, e as emissoras precisam rever sua idéia do que é informar: a busca insensata dos picos de audiência as levou a se tornarem cúmplices involuntárias de um assassinato. Que se lembrem disso quando o próximo seqüestrador apontar a arma para a sua vítima.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .
quinta-feira, agosto 21, 2008
Entrevista com Jaques Lacan
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- [Madeleine Chapsal] Un psicoanalista es muy intimidante. Se tiene el sentimiento de que él podría maniobrarlo a usted a su antojo..., que él sabe más que usted mismo sobre el motivo de sus actos. - [Jaques Lacan] Usted no exagera. ¿Cree usted que este efecto es particular al psicoanálisis?. Un economista, para muchos, es tan misterioso como un analista. En nuestro tiempo, es el personaje del experto quien intimida. Para la psicología, aunque ella fuera una ciencia, cada uno creía tener su entrada en ella por el interior. El otro sujeto - [Madeleine Chapsal] Hay aquí una especie de terrorismo, uno se siente violentamente arrancado de sí mismo... - [Jaques Lacan] El psicoanálisis, en el orden del hombre, tiene en efecto todos los caracteres de subversión y de escándalo que pudo tener, en el orden cósmico, el descubrimiento copernicano del mundo: ¡la tierra, lugar de habitación del hombre, no es más el centro del mundo! Es una novedad que no ha sido de entrada bien aceptada. ¡Ese supuesto irracionalismo del cual se ha pretendido disfrazar a Freud! Pero es exactamente lo contrario: no solamente Freud racionalizó lo que hasta entonces había resistido a la racionalización, sino que incluso él mostró en acción una razón razonante como tal, quiero decir en acto de razonar y de funcionar como lógica, sin que el sujeto lo sepa; esto en el campo mismo clásicamente reservado a la sin-razón, digamos el campo de la pasión. Es esto lo que no se le perdonó. Se habría admitido aún que introdujera la noción de fuerzas sexuales que se apoderan bruscamente del sujeto sin prevenir y fuera de toda lógica; pero que la sexualidad sea el lugar de una palabra, que la neurosis sea una enfermedad que hable, he aquí una cosa bizarra y hasta algunos discípulos prefieren que se hable de otra cosa. No hay que ver en el analista un "ingeniero de las almas"; no es un físico, no procede estableciendo relaciones de causa a efecto: su ciencia es una lectura, una lectura del sentido. - [Madeleine Chapsal] Y quién ha descubierto esos secretos terribles... - [Jaques Lacan] Conviene precisar todavía, de qué orden son esos secretos. No son los secretos de la naturaleza tales como las ciencias físicas o biológicas los han podido descubrir. Si el psicoanálisis aclara los hechos de la sexualidad, no es atacándolos en su realidad ni en la experiencia biológica.
Articulado y descifrable - [Madeleine Chapsal] Pero Freud ha descubierto, a la manera en que se descubre un continente desconocido, un nuevo dominio del psiquismo, que se llama "inconsciente", ¿no es cierto? ¡Freud es Cristóbal Colón! - [Jaques Lacan] Saber que hay toda una parte de las funciones que no está al alcance de la conciencia ¡no se esperó a Freud para eso! Si usted insiste en una comparación, Freud sería más bien ¡Champollion! La experiencia freudiana no es del nivel de la organización de los instintos o de las fuerzas vitales. Esa experiencia no los descubre sino ejerciéndose, si puedo decirlo, a una segunda potencia. Usted ve, no es algo vago, confuso, lo que es reprimido; no es una especie de necesidad, de tendencia, que habría de ser articulada (y que no se articularía por estar reprimida), es un discurso ya articulado, ya formulado en un lenguaje. Todo está allí. - [Madeleine Chapsal] Usted dice que el sujeto reprime un discurso articulado en un lenguaje. Sin embargo no es eso lo que se siente cuando uno se encuentra frente a una persona que tiene dificultades psicológicas, un tímido por ejemplo, o un obsesivo. Su conducta parece sobre todo absurda, incoherente; y si se adivina que en rigor ella puede significar algo, sería algo impreciso, bien por debajo del nivel del lenguaje. ¡Y uno mismo, en la medida en que se siente conducido por fuerzas oscuras, que se adivina "neuróticas", ellas se manifiestan justamente por movimientos irracionales, acompañadas de confusión, de angustia!. - [Jaques Lacan] Síntomas, cuando usted cree reconocerlos, no le parecen irracionales más que porque usted los toma aislados, y usted quiere interpretarlos directamente. ¡Y bien! los fenómenos con los que nos vemos en el análisis son de ese orden, son de un orden lenguajero. La represión de una verdad - [Madeleine Chapsal] usted dice que esta escritura está "ofrecida a la mirada de todos". Sin embargo, si Freud ha dicho algo nuevo, es que en el dominio psíquico se está enfermo porque se disimula, se esconde una parte de sí mismo, se "reprime". - [Jaques Lacan] Al contrario, hay que tomarla literalmente: eso que, en el análisis del psiquismo, hay que descifrar, está todo el tiempo allí, presente desde el comienzo. usted habla de la represión olvidando una cosa, es que, para Freud, y tal como él lo formuló, la represión era inseparable de un fenómeno llamado "el retorno de lo reprimido". Allí donde eso ha sido reprimido, algo continúa funcionando, algo continúa hablando, gracias a lo cual el resto puede centrarse, designar el lugar de la represión y de la enfermedad, decir "está ahí". Pero en psicoanálisis la represión no es la represión de una cosa, es la represión de una verdad. De tal modo que ya no se es más capaz de decir en ese momento cuál es el sujeto que habla, sino que "eso" habla, que "eso" continúa hablando; y lo que pasa es descifrable enteramente a la manera en que es descifrable una escritura perdida, es decir no sin dificultad. La verdad no ha sido anulada, ella no cayó en un abismo, ella está ofrecida, presente, pero vuelta "inconsciente". El sujeto que ha reprimido la verdad no gobierna más, él no está más en el centro de su discurso: las cosas continúan funcionando solas y el discurso continúa articulándose, pero más allá del sujeto. Y este lugar, este más allá del sujeto, es estrictamente lo que se llama el inconsciente. Usted ve bien que lo que se ha perdido no es la verdad, es la clave del nuevo lenguaje en el cual ella se expresa en lo sucesivo. Es allí donde interviene el psicoanálisis. La hamaca - [Madeleine Chapsal] ¿No será esta su interpretación de usted? No parece que sea la interpretación de Freud. - [Jaques Lacan] Lea "La interpretación de los sueños", lea la "Psicopatología de la vida cotidiana", lea "El chiste y su relación con el inconsciente", es suficiente con abrir estas obras no importa en qué página para encontrar eso de lo que yo le hablo. El término "censura", por ejemplo, ¿por qué Freud lo eligió inmediatamente, al mismo nivel de la interpretación de los sueños, para designar la instancia refrenante, la fuerza que reprime?. La censura, nosotros sabemos bien lo que es, es Anastasia, es una presión que se ejerce con un par de tijeras. ¿Y sobre qué?. No sobre cualquier cosa que sucede en el aire, sino sobre lo que se imprime, sobre un discurso expresado en un lenguaje. Sí, el método lingüístico está presente en todas las páginas de Freud, todo el tiempo se libra concretamente a referencias, analogías, aproximaciones lingüísticas... Ahora bien, para Freud, para mí, el lenguaje humano no surge en los seres como resurgiría una fuente. El niño tiene que hacer mucho más esfuerzo para entrar en ese discurso en el cual se lo sumerge, que para habituarse a evitar la sartén. En otros términos, el hombre que nace a la existencia tiene que vérselas de entrada con el lenguaje: es un hecho. Aún él está tomado allí desde antes de su nacimiento, ¿no tiene un estado civil? Sí, el niño que ha de nacer, ya está, de cabo a rabo, rodeado por esta hamaca de lenguaje que lo recibe y al mismo tiempo lo aprisiona. En claro, en cada caso
- [Jaques Lacan] Esas son justamente las paradojas que son el objeto del descubrimiento. Si este lenguaje, sin embargo, no se dirigiera a un Otro, no podría ser entendido gracias a un otro en el psicoanálisis. Para el resto, hace falta reconocer de entrada lo que es y para ello situarlo bien en un caso; eso exigiría un largo desarrollo; de otro modo, es un lío donde no se puede comprender nada. Pero es allí, asimismo, que es eso de lo que yo le hablo puede mostrarse en claro: cómo el discurso reprimido del inconsciente se traduce en el registro del síntoma. Y usted se apercibirá hasta qué punto es preciso. Usted hablaba del obsesivo: vea esta observación de Freud, que se encuentra en los "Cinco psicoanálisis", intitulada "El hombre de las ratas". El hombre de las ratas - [Madeleine Chapsal] ¿Y sobre el plano de la sexualidad? - [Jaques Lacan] ¡He aquí un error de término!. Obsesión, eso no quiere decir automáticamente obsesión sexual, ni aún obsesión de esto o aquello en particular: estar obsesionado, significa encontrarse tomado en un mecanismo, en un engranaje cada vez más exigente y sin fin. Ya sea que vaya a realizar un acto, cumplir con un deber, una angustia especial traba al obsesivo: ¿lo logrará?. Enseguida, hecha la cosa, experimenta una necesidad torturante de ir a verificar, pero no se atreve, por temor de pasar por loco, porque al mismo tiempo sabe muy bien que lo ha logrado... Aún el gran obsesivo no tiene, sin embargo, nada de delirante. No hay ninguna convicción en el obsesivo, sino esta especie de necesidad, completamente ambigua, que lo deja tan desgraciado, tan dolorido, tan desamparado, de tener que ceder ante una insistencia que viene de él mismo y que no se explica. Yo conocí personas que tenían funciones importantes, y no solamente honorarias, directoriales, personas que tenían responsabilidades tan vastas y extensas como usted pueda suponerlo, y que las asumían ampliamente, pero que no menos, eran, de la mañana a la noche, presa de sus obsesiones. Así estaba "el hombre de las ratas", enloquecido, atrapado en un retoño de síntomas que lo lleva a consultar a Freud desde los alrededores de Viena, donde participaba en maniobras como oficial de reserva, y pedirle su consejo en una historia inverosímil de reembolso al correo del envío de un par de anteojos a propósito de la cual se pierde hasta no poder decir más. Si se sigue literalmente hasta sus dudas el escenario instituido por el síntoma en cuatro personas, se reencuentra rasgo por rasgo, traspuestos en un vasto simulacro, sin que el sujeto lo suponga, las historias que han conducido hasta el matrimonio del cual el sujeto es el fruto. - [Madeleine Chapsal] ¿Qué historias? - [Jaques Lacan] Una deuda fraudulenta de su padre que, por añadidura, militar entonces, es degradado de su rango por una felonía, un préstamo que le permite cubrir la deuda, la cuestión que permanece oscura de la restitución al amigo que vino en su ayuda, en fin, un amor traicionado por el casamiento que le dio una "posición". Ya que ella es traspuesta allí como una lengua o una escritura puede ser traspuesta en otra lengua o en otros signos; ella es escrita allí sin que sus enlaces sean modificados; o aún como en geometría una figura es transformada de la esfera en un plano, lo que no quiere evidentemente decir que toda figura se transforme en no importa cuál. - [Madeleine Chapsal] ¿Y una vez que esta historia ha sido puesta a la luz del día? - [Jaques Lacan] Entienda bien: yo no he dicho que la cura de la neurosis se cumple sólo después de haber visto eso. Usted piensa bien que en la observación del "hombre de las ratas", hay otra cosa que yo no puedo desarrollar aquí. Si fuera suficiente que hubiera una prehistoria en el origen de una conciencia, todo el mundo sería neurótico. Está ligado a la manera en que el sujeto toma las cosas, las admite o las reprime. ¿Y por qué algunos reprimen determinadas cosas? En fin, tómese usted el trabajo de leer "el hombre de las ratas" con esta llave que lo atraviesa de parte a parte: trasposición en otro lenguaje figurativo y completamente inapercibido para el sujeto, de algo que no se comprende más que en términos de discurso. Saber de eso más y mejor. - [Madeleine Chapsal] Puede ser que la verdad reprimida se articule como usted lo dice, como un discurso con efectos devastadores. Sólo que cuando un enfermo viene a usted, no es alguien que está en busca de su verdad. Es alguien que sufre horriblemente y quiere ser aliviado. Si yo recuerdo bien la historia del "hombre de las ratas", había allí también un fantasma de ratas... - [Jaques Lacan] Dicho de otra manera, "mientras usted se ocupa de la verdad, hay allí un hombre que sufre..." Hace falta entonces partir de lo esencial: ¿qué es esta técnica, a qué se aplica, de qué orden son sus efectos, los efectos que ella desencadena por su aplicación pura y simple?. Y yo puedo decirle que en el momento en que ha puesto usted al sujeto sobre un diván y aún si usted le ha explicado la regla analítica de la manera más sumaria, el sujeto ya está introducido en la dimensión de buscar su verdad. Sí, del sólo hecho de tener que hablar como él se encuentra constreñido a hacerlo, frente a un otro, el silencio de un otro - un silencio que no está hecho ni de aprobación ni de desaprobación, sino de atención - lo siente como una espera, y que esta espera es la espera de la verdad. Y también él se siente allí empujado por el prejuicio del que hablábamos hace un momento: por creer que el otro, el experto, el psicoanalista, sabe sobre usted mismo lo que usted mismo no sabe, la presencia de la verdad se encuentra fortificada, ella está ahí en estado de implícita. El enfermo sufre pero él se da cuenta de que la vía hacia la cual volverse en fin para superar, apaciguar sus dificultades, es del orden de la verdad: saber de eso más y saber mejor. - [Madeleine Chapsal] ¿Entonces el hombre sería un ser de lenguaje? . ¿Sería esta la nueva representación del hombre que se debería a Freud, el hombre es alguien que habla? - [Jaques Lacan] El lenguaje ¿es la esencia del hombre?. No es una pregunta de la que yo me desinterese, y tampoco detesto que quienes se interesen en lo que yo digo, se interesen en ella por otra parte, pero es de otro orden, y, como yo lo digo a veces, es la pieza lateral. Yo no me pregunto "quién habla", yo intento plantear las preguntas de otra manera, de una manera más formulable, yo me pregunto "de dónde habla eso". En otros términos, si yo intenté elaborar algo, no es una metafísica sino una teoría de la intersubjetividad. Desde Freud, el centro del hombre no está más allí donde se lo creía, hace falta reconstruir sobre eso. - [Madeleine Chapsal] Si es hablar lo que es importante, buscar su verdad por la vía de la palabra y de la declaración, ¿el análisis no se sustituye de una cierta manera a la confesión?. - [Jaques Lacan] Yo no estoy autorizado para hablarle de las cosas religiosas, pero yo me había dejado decir que la confesión es un sacramento y que no está hecha para satisfacer ninguna especie de necesidad de confidencia... La respuesta, aún de consuelo, alentadora, incluso directiva del sacerdote no pretende constituir la eficacia de la absolución. - [Madeleine Chapsal] Desde el punto de vista del dogma, usted tiene sin duda razón. Sólo que la confesión se combina, y desde un tiempo que no cubre toda la era cristiana, con lo que se llama la dirección de la conciencia. ¿Acaso no se cae allí en el dominio del psicoanálisis?. ¿Hacer confesar los actos y las intenciones, guiar un espíritu que busca su verdad?. - [Jaques Lacan] La dirección de conciencia ha sido, y por espirituales, juzgada muy diversamente, se ha podido ver en ella incluso, en ciertos casos, la fuente de toda clase de prácticas abusivas. En otros términos, es asunto de los religiosos saber cómo ellos mismos la sitúan y cuál es el alcance que le dan. Pero me parece que ninguna dirección de conciencia puede inquietarse por una técnica que tiene como fin la revelación de la verdad. Me sucedió ver a religiosos que son dignos de ese nombre, tomar partido en asuntos muy espinosos donde se hallaba comprometido lo que se llama el honor de las familias, y los he visto siempre decidir que mantener la verdad bajo la medida es en sí mismo un acto de consecuencias devastadoras. Y luego todos los directores de conciencia les dirán que la plaga de su existencia son los obsesivos y los escrupulosos, ellos no saben literalmente por qué extremo tomarlos: cuanto más los calman, más eso rebota, cuantas más razones les dan, más la gente vuelve a plantearles preguntas absurdas... Según mi opinión, los directores de conciencia no pueden llegar a desdecir al psicoanálisis: a lo sumo, pueden obtener de él ciertas apreciaciones que les serán útiles... Inversión inquietante - [Madeleine Chapsal] Puede ser, pero el psicoanálisis, ¿está suficientemente bien visto?. En los medios religiosos se haría de él más bien una ciencia del diablo. - [Jaques Lacan] Yo creo que los tiempos han cambiado. Sin duda después de que Freud hubo inventado el psicoanálisis, éste permaneció durante mucho tiempo como una ciencia escandalosa y subversiva. No se trataba de saber si se creía en ella o no, se la combatía violentamente con el pretexto de que personas psicoanalizadas se desenfrenarían, se abandonarían a todos sus deseos, se entregarían a cualquier cosa... Todo esto entra en lo que yo llamaré, no con el término demasiado técnico de "resistencia al análisis", sino "objeción masiva". El temor de perder su originalidad, de ser reducido al nivel común, no es menos frecuente. Hace falta decir que sobre esta noción de "adaptación" se ha producido en estos últimos tiempos una doctrina cuya naturaleza engendra confusión y, a partir de allí, inquietud. Lo que es totalmente falso, tan falso como el primer prejuicio que veía en el psicoanálisis un medio de liberarse de toda sujeción. - [Madeleine Chapsal] ¿No piensa usted que lo que la gente teme más que nada, lo que la hace oponerse al psicoanálisis antes inclusive de saber si cree en él o no en tanto que ciencia, es la idea de que corre el peligro de ser desposeída de una parte de sí misma, modificada? - [Jaques Lacan] Esta inquietud es totalmente legítima, en el nivel en donde ella surge. ¡Decir que no habría, después de un análisis, modificación de la personalidad, sería verdaderamente divertido!. Sería difícil sostener al mismo tiempo que se pueden obtener resultados por el análisis y que se puede no obtenerlos, es decir, que la personalidad permanecerá siempre intacta. Sólo que la noción de personalidad merece ser esclarecida, incluso reinterpretada. Reinstalación del sujeto - [Madeleine Chapsal] En el fondo de la diferencia entre el psicoanálisis y las diversas técnicas psicológicas, es que el psicoanálisis no se contenta con guiar, con intervenir más o menos ciegamente, él cura... - [Jaques Lacan] Se cura lo que es curable. No se va a curar el daltonismo o la idiocia, aunque al fin y al cabo pueda decirse que el daltonismo y la idiocia tienen que ver con lo "psíquico". - [Madeleine Chapsal] En la perspectiva freudiana, ¿hay que pensar en atender a cantidades de personas que no están consideradas enfermas? . Dicho de otra manera, ¿Habría interés en psicoanalizar a todo el mundo? - [Jaques Lacan] Poseer un inconsciente no es un privilegio de los neuróticos. Hay quienes no están manifiestamente abrumados por un excesivo peso de sufrimiento parasitario, que no están demasiado obstruidos por la presencia de otro sujeto, en el interior de sí mismos, que inclusive se las arreglan bastante bien con ese otro sujeto, y que sin embargo no perderían nada con conocerlo. - [Madeleine Chapsal] ¿Es que esto sigue siendo cierto para los creadores? - [Jaques Lacan] Es una cuestión interesante la de saber si hay para ellos interés en cortar camino o en cubrir de un cierto velo esta palabra que los ataca desde afuera (es la misma, al fin y al cabo, la que viene a perturbar al sujeto en la neurosis y en la inspiración creadora). ¿Hay interés de ir muy rápido por la vía del análisis hacia la verdad de la historia del sujeto, o a dejar hacer como Goethe una obra que no es más que un inmenso psicoanálisis? ¿Habría él escrito la misma obra si se lo hubiera psicoanalizado?. Según mi opinión la obra hubiera sido seguramente otra, pero yo no creo que se hubiera perdido con ello. - [Madeleine Chapsal] Y para los hombres que no son creadores, pero que tienen pesadas responsabilidades, relaciones con el poder, ¿piensa usted que se debería instituir el psicoanálisis obligatorio? - [Jaques Lacan] Se debería, en efecto, no poder dudar un solo instante si un señor es presidente del consejo, es seguramente que se ha hecho analizar a una edad normal, es decir joven... Pero la juventud se prolonga a veces muy lejos. Un grito de alarma - [Madeleine Chapsal] ¡Cuidado!. ¿Qué es lo que se podría objetar al señor Guy Mollet si hubiera sido analizado? ¿si él pudiera hacer valer que ha sido inmunizado, cuando sus contradictores no lo han hecho? - [Jaques Lacan] ¡Yo no tomaré partido sobre el tema de saber si el Sr. Guy Mollet haría o no la política que él hace, si él fuera analizado! que no se me haga decir que yo pienso que el análisis universal es la fuente de resolución de todas las antinomias, que si se analizara a todos los seres humanos no habría más guerras, más lucha de clases, yo digo formalmente lo contrario. Todo lo que se puede pensar es que los dramas serían quizá menos confusos. Vea usted el error, es lo que yo le decía hace un momento: querer servirse de un instrumento antes de saber cómo está hecho. Ahora bien, en las actividades que son por el momento comprendidas en el mundo bajo el término "psicoanálisis", se tiende más y más a recubrir, desconocer, enmascarar el orden primero en el que Freud aportó la chispa. El esfuerzo de la gran masa de la escuela psicoanalítica ha sido lo que yo llamo una tentativa de reducción: ponerse en el bolsillo lo que había de más molesto de la teoría de Freud. De año en año se ve acentuarse esta degradación, hasta llegar a veces, como en los Estados Unidos, a formulaciones en franca contradicción con la inspiración freudiana. No es porque el psicoanálisis sigue siendo discutido, que el analista debe intentar volver más aceptable su observación, repintándola con colores diversamente abigarrados, de analogías prestadas más o menos legítimamente de dominios científicos vecinos. - [Madeleine Chapsal] Es muy desmoralizador lo que usted dice, para los posibles analizados... - [Jaques Lacan] Si yo lo inquieto tanto mejor. Desde el punto de vista del público, lo que yo considero como más deseable, es lanzar un grito de alarma y que tenga, en el terreno científico, una significación muy precisa: que sea un llamado, una exigencia primera concerniente a la formación del analista. Un psicoanalista formado - [Madeleine Chapsal] ¿Es que no es acaso ya una formación muy larga y muy seria? - [Jaques Lacan] A la enseñanza del psicoanálisis, tal como ella está hoy constituida -estudios de medicina y después un psicoanálisis, análisis dicho didáctico, hecho por un analista calificado- le falta algo esencial, sin lo cual yo niego que se pueda ser un psicoanalista verdaderamente formado: el aprendizaje de disciplinas lingúísticas e históricas, de la historia de las religiones, etc.. Para cercar su pensamiento en lo concerniente a esta formación, Freud reanima ese viejo término que me complazco en retomar, el de "universitas literarum". Los estudios médicos son evidentemente insuficientes para entender lo que dice el analizado, es decir por ejemplo para distinguir en su discurso el alcance de los símbolos, la presencia de los mitos, o simplemente para captar el sentido de lo que él dice, como se capta o no se capta el sentido de un texto. - [Madeleine Chapsal] En las manos de personas insuficientemente competentes, ¿piensa usted que el psicoanálisis tal como fue inventado por Freud corre el peligro de perderse? - [Jaques Lacan] Actualmente, el psicoanálisis está por volverse ciertamente una mitología cada vez más confusa. Se pueden mencionar algunos signos - borramiento del Complejo de Edipo, acento puesto sobre los mecanismos preedípicos, sobre la frustración, sustitución del término angustia por el de miedo. Lo que no quiere decir que el freudismo, la primera luz freudiana, no continúe caminando por todas partes. De ello se ven manifestaciones absolutamente claras en toda clase de ciencias humanas. Pienso en particular en lo que me decía recientemente mi amigo Claude Lévi-Strauss, del homenaje finalmente rendido por los etnólogos al Complejo de Edipo, como a una profunda creación mítica nacida en nuestra época. Es algo sorprendente, sobrecogedor, que Sigmund Freud, un hombre completamente solo, haya llegado a librar un cierto número de efectos que no habían sido hasta entonces jamás aislados, y a introducirlos en una red coordenada, inventando así a la vez una ciencia y el dominio de aplicación de esta ciencia. Pero en relación a esta obra genial que ha sido la de Freud, atravesando su siglo como un trazo de fuego, el trabajo está muy atrasado. Lo digo con toda mi convicción. Y no se comenzará a retomarlo más que cuando haya suficiente gente formada para hacer lo que necesita todo trabajo científico, todo trabajo técnico, todo trabajo donde el genio puede abrir un surco, pero donde enseguida hace falta un ejército de obreros para cosechar |