domingo, agosto 19, 2007
Entrevista: Colin Murray Parkes - A dor da morte
O psiquiatra inglês diz o que alivia e o que agrava o
sofrimento causado pela perda de alguém muito próximo
Revista Veja: Juliana Linhares
"As pessoas enlutadas, em geral, têm um alto grau de sensibilidade a tudo o que não seja sincero: elas percebem facilmente se alguém está fingindo tristeza"
Na qualidade de um dos mais respeitados estudiosos do luto do mundo, o psiquiatra inglês Colin Murray Parkes, 79 anos, viu de perto grandes tragédias e o sofrimento que elas podem causar a populações inteiras. Em 2005, ele foi chamado pelo governo britânico para dar assistência psicológica a vítimas do tsunami que atingiu vários países banhados pelo Oceano Índico, matando um total de 225 000 pessoas. Três anos antes, havia trabalhado na assistência a parentes de vítimas dos atentados de 11 de setembro em Nova York, que resultaram na morte de quase 3 000 pessoas. Mas o trabalho de Parkes não se resume a apoiar as vítimas de grandes desastres: consultor até o ano passado do St. Christopher's Hospice, hospital inglês que é a maior referência mundial em tratamento de pacientes terminais, ele lidou por mais de quarenta anos com dramas cotidianos: aqueles vividos pelas famílias que perderam alguém no leito do hospital. Em entrevista concedida a VEJA, o psiquiatra falou sobre a dor de quem vai e de quem fica e como lidar com ela.
Veja – O que se pode fazer para ajudar uma pessoa que perdeu alguém?
Parkes – Ficar próximo dela, abraçá-la, fazê-la sentir-se compreendida e segura. Para as pessoas que perderam alguém, especialmente se a morte estiver ligada a uma situação criminal, o mundo pode parecer um lugar bastante perigoso. Parentes de vítimas ficam assustados e chegam a ter medo de estranhos. Para ajudar essas pessoas, é preciso despertar sua confiança e transmitir-lhes segurança para começar a falar e a pensar naquilo que as faz sentir-se em perigo. Deixá-las expressar sua tristeza também é importante. Ouço muitas reclamações de enlutados. Eles dizem que a família não os deixa chorar – quer vê-los alegres o tempo todo. Não há nada pior do que alguém lhe dizendo: "Não quero ver você triste assim, por favor!". Outra coisa que devasta essas pessoas é quando elas percebem que os vizinhos e os amigos se afastam delas. Escuto muitas histórias de enlutados que afirmam que seus vizinhos mudam de calçada quando os vêem chegando. É evidente que eles não fazem isso de propósito. O fato é que ninguém sabe lidar direito com a morte.
Veja – E no caso de familiares de vítimas de grandes tragédias, como a do acidente da TAM, no Brasil? Como amenizar seu sofrimento?
Parkes – No período imediatamente posterior ao acidente, o que as famílias mais precisam é de informação e instrução. Psicologicamente, é mais fácil lidar com más notícias do que com a falta delas. Não se deve tentar proteger as famílias escondendo dados que possam machucá-las. As informações servem para que as pessoas tenham tempo para digerir o terror e organizar suas esperanças, assim como suas hipóteses sobre a tragédia. Já as instruções são fundamentais porque, nesse momento de aflição máxima, os familiares não têm condições de resolver nada e precisam de alguém que assuma o controle da situação. E isso tem de ser feito de forma bastante objetiva – não há espaço para debates democráticos, do tipo: "Familiares das vítimas, vocês preferem ficar aguardando informações em um hotel ou aqui no aeroporto?". É necessário que alguém passe ordens. O cuidado psicológico propriamente dito vem numa fase posterior.
Veja – Em que ele consiste?
Parkes – Em casos de desastres que podem ter sido causados por leniência, descaso ou falha humana, é comum haver um sentimento generalizado de raiva entre os familiares. Os parentes querem, a todo custo, encontrar e, por vezes, agredir o culpado – ou os culpados – pelo desastre. Psicólogos e médicos destacados para cuidar dessas pessoas devem escutar suas queixas, mas, principalmente, tentar conter a instalação de um ciclo de raiva. O sentimento de ira não ajuda o enlutado a se organizar emocionalmente, nem mesmo alivia sua dor. É fundamental também trabalhar para que cada família tenha certeza de que seu caso será analisado – seja por psicólogos, seja por autoridades – de maneira individualizada. Em grandes desastres, as famílias tendem a achar, e não se pode tirar a razão delas, que a morte de seu parente está sendo banalizada. Isso acontece, entre outros motivos, porque as notícias veiculadas na imprensa, na maioria das vezes, falam do número total de mortes, e não especificamente do parente dela. Para um marido que perdeu a mulher, o que importa é a morte daquela mulher, não a de 200 pessoas.
Veja – É mais difícil aceitar a morte quando não se tem o corpo do morto?
Parkes – Sem dúvida. É difícil acreditar que aquela pessoa morreu quando não vemos o corpo dela e não realizamos os ritos fúnebres. No episódio do 11 de Setembro, muitas famílias britânicas, que nós assistimos, não conseguiram ter de volta os corpos de seus parentes. Um de nossos trabalhos foi ajudá-las a acreditar que eles tinham mesmo morrido. Estudei uma tribo de pescadores, nas Filipinas, que chega a fazer um ritual substitutivo para lidar com uma situação dessas. Quando um dos integrantes da tribo morre no mar e seu corpo não é resgatado, a família faz uma estátua e a veste com as roupas do morto. Eles acreditam que, assim, a alma do falecido encarnará na estátua. E é essa estátua que enterram.
Veja – Na escala da dor, qual é o pior tipo de morte para quem fica?
Parkes – O que implica sentimentos de culpa pode ser considerado o pior. É o caso, por exemplo, do pai que vê o filho morrer em um acidente de carro e acha que poderia tê-lo socorrido, ou de uma pessoa que se sente responsável pelo suicídio de outra. Em segundo lugar, bem próximo do primeiro, eu diria que estão as mortes por assassinato.
Veja – Qual é o povo que lida melhor com a morte?
Parkes – Penso que os orientais se preparam melhor para a morte do que nós. No Japão, eles fazem oratórios com sinos, que, segundo crêem, invocam a pessoa morta a cada vez que são tocados. Desse modo, acreditam manter-se em contato com o espírito de seus mortos. De certa maneira, é isso que a terapia tenta fazer com os enlutados: ajudá-los não a esquecer seus mortos, mas a achar um lugar para eles em sua vida.
Veja – Quem lida melhor com a morte, os homens ou as mulheres?
Parkes – As mulheres, sem dúvida. Elas conseguem expressar seu sofrimento mais facilmente. E, uma vez vivenciado esse sentimento, elas podem fazer aquilo que se costuma chamar de "tocar a vida para a frente". Já os homens têm uma enorme dificuldade de mostrar sua fragilidade diante da morte. Por isso, têm também mais dificuldade de se organizar para continuar vivendo.
Veja – O que se deve dizer a um conhecido que acaba de perder alguém?
Parkes – As pessoas enlutadas, em geral, têm um alto grau de sensibilidade a tudo o que não seja sincero: elas percebem facilmente se alguém está fingindo tristeza ou dizendo uma palavra de conforto apenas porque foi instruído a fazê-lo. Por isso, o que quer que você diga nessa situação deve vir do coração.
Veja – Até o ano passado, o senhor trabalhava como consultor psiquiátrico de um hospital especializado no cuidado de pacientes terminais. Do ponto de vista psicológico, o que se pode fazer para amenizar o sofrimento desses doentes e de suas famílias?
Parkes – Além de tentar transmitir os mesmos sentimentos de amor e solidariedade, acho que dizer a verdade sempre ajuda. Quando alguém está morrendo, as pessoas, querendo ajudar, cometem erros clássicos. Um deles é fingir que a pessoa não está doente: "Você está com uma cara ótima hoje!", diz um parente. É evidente que é mentira, e o paciente sabe disso, mas compactua com o fingimento porque também quer proteger o familiar. Isso cria uma situação horrível! Certa vez, falei com uma senhora no dia em que o marido dela deu entrada no hospital em que eu trabalhava. Ela me disse: "O senhor não vai dizer ao meu marido que ele tem câncer, vai?". Eu havia acabado de conversar com o marido dela, que já me contara que tinha a doença! Eu perguntei: "O que faz a senhora achar que ele não sabe?". Ao que ela respondeu: "Ele sempre morreu de medo de câncer. Se o senhor lhe contar, ele vai morrer!". Eu falei: "Conversei com seu marido. Ele sabe". Ela: "Sabe? Por que ele não me contou?". Respondi: "Talvez esteja querendo protegê-la". Ela entendeu: "Como nós fomos bobos!". Voltamos à cabeceira da cama e eu deixei o casal conversando. Voltei meia hora depois. Eles estavam sentados com os braços entrelaçados. Ela chorava copiosamente e dizia: "Fomos tão bobos, não?". Mas, ao mesmo tempo, ela sorria. É que, finalmente, havia conseguido se comunicar com o marido.
Veja – O senhor foi chamado pelo governo britânico para cuidar de vítimas do tsunami. Como foi esse trabalho?
Parkes – Estive na Índia um mês depois da tragédia. Peguei a fase da reconstrução do lugar. Como morreram mais mulheres e crianças, encontrei muitos homens devastados e entregues à bebida. Eles haviam perdido a mulher, os filhos e os barcos com que ganhavam a vida, mas tinham uma resistência muito grande em aceitar ajuda psicológica. Lá, homem não chora. Fiquei estudando qual o melhor modo de ajudar aqueles sobreviventes. Depois de alguns dias, concluí que a melhor forma seria estimulá-los a participar da reconstrução de suas vilas e casas. Coordenei, então, mutirões de obras. Organizava os grupos que fariam as casas e os barcos. E, evidentemente, dava apoio psicológico e individual quando era solicitado.
Veja – E como foi o trabalho com as vítimas do 11 de Setembro?
Parkes – O governo do meu país me escalou para cuidar das famílias de vítimas britânicas que haviam morrido no atentado. Os melhores policiais da Grã-Bretanha foram enviados a Nova York para nos ajudar. Meu primeiro trabalho foi formar duplas constituídas por um policial e um terapeuta. Essas duplas receberam cada avião que chegou do Reino Unido. No total, foram 120 familiares de vítimas. Nesse caso, meu trabalho não foi propriamente o de um terapeuta, mas sim o de um grande produtor: tinha, por exemplo, de garantir que houvesse celulares suficientes, salas de entrevista, esse tipo de coisa. Mas logo fiquei conhecendo as famílias, já que estavam no mesmo hotel que nós. E o que eu e os outros psiquiatras da minha equipe percebemos foi que elas tinham uma grande necessidade de procurar seus mortos – ainda que a morte deles parecesse um fato inexorável. Os americanos haviam disponibilizado computadores que, operados por policiais, informavam o nome de todos os sobreviventes internados em hospitais de Nova York. Nós já tínhamos vasculhado esses registros e sabíamos que os parentes dessas famílias não estavam lá, mas elas insistiam em procurar por conta própria. Então, em vez de as obrigarmos a aceitar a informação de que as pessoas que elas amavam estavam mortas, ficamos ao lado delas, observando-as enquanto faziam a busca. Também as ajudamos a colar cartazes em postes com as fotos e os nomes dos parentes desaparecidos. Quanto mais fotos elas colavam, mais se davam conta de que não daria resultado. A compreensão foi vindo de forma gradual. Uma coisa que também ajudou nesse processo foi o fato de que muitas pessoas enlutadas passaram a se encontrar diariamente na Union Square, a área verde mais próxima do desastre. As famílias se sentiam bem lá, conversavam e choravam juntas. Isso colaborou para fazer com que, aos poucos, elas fossem entendendo que as pessoas que elas procuravam não voltariam mais. Foi uma boa terapia.
Veja – Por que o senhor decidiu trabalhar nessa área?
Parkes – Eu ainda era um jovem médico em Londres quando fui chamado para fazer meu primeiro parto. O médico-chefe me disse que o procedimento seria simples porque o bebê era anencéfalo e, por ter uma cabeça pequena, sairia facilmente da mãe. Ele me disse ainda para não mostrar o bebê à mãe. Fiquei chocado com isso. Também me incomodava o modo como os médicos tratavam os pacientes. Achavam que era perigoso se aproximar e se envolver emocionalmente com eles. Nunca chegavam muito perto do leito. Quando resolvi me especializar em psiquiatria, direcionei meus estudos para os piores tipos de sofrimento humano. Justamente nessa época, na clínica onde eu trabalhava, dois pacientes se suicidaram depois de passar por um forte stress causado por luto. A partir daí, foquei meu trabalho na recuperação de pessoas que haviam perdido alguém. Mas às vezes é muito difícil para mim fazer esse trabalho. Os grandes desastres, por exemplo, me deixam bastante abalado.
Veja – O que mais o abala nessas situações?
Parkes – Ver o sofrimento em massa. É avassalador. Depois do 11 de Setembro, assim que voltei de Nova York, tirei férias e viajei com meus netos. Eles disseram que eu não era mais o avô de sempre. Disseram que eu estava longe – e estava mesmo. Minha cabeça não saía de lá. É difícil ser a mesma pessoa depois de ver uma tragédia dessas
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