Em matéria de aborto, não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo
1) Às vezes, para descobrir o que pensamos, é útil pôr de lado nossos princípios. Pois, em matéria de costumes, os preceitos gerais servem sobretudo para evitar dilemas concretos nos quais nosso pensamento iria revelar-se muito mais complexo do que os princípios que bradamos.
2) Numa situação em que o aborto seja necessário para salvar a mãe, mesmo nos meses finais da gravidez, quase todos dirão que a vida da mãe deve ser preservada (aqui, a lei brasileira, como é normal que aconteça, sanciona o sentimento da maioria).
Agora, imagine que, cinco minutos depois do corte do cordão umbilical, apareça uma condição médica na qual a mãe morrerá sem falta se não receber o transplante de um órgão que só o recém-nascido pode lhe oferecer -sendo que o bebê perderá a vida ao ser privado desse órgão. Para qualquer um de nós, esse transplante mortífero seria uma abominação.
Imagine ainda que, no meio de um parto difícil, a mulher esteja inconsciente e o médico pergunte ao pai: "Devo salvar a mãe ou a criança?". O pai que decidisse salvar a criança (e sacrificar a mãe) seria, aos nossos olhos, acredito, um simples uxoricida.
Parece, em suma, que o direito do feto à vida está subordinado ao da mãe e é inferior ao da criança que já nasceu.
Mas consideremos o caso de alguém que matou uma mulher grávida e, abrindo seu corpo, esfaqueou o feto. No meu foro íntimo, ele é culpado de dois assassinatos.
Da mesma forma, o canalha que, voltando bêbado para casa, produziu o aborto de sua mulher a pontapés e agulha de tricotar enfiada à força no útero, no meu foro íntimo, é um assassino de fato e de direito, não "só" um espancador de mulher.
De repente, a vida do feto parece adquirir uma dignidade comparável à dos adultos.
3) Aceitamos que o aborto seja praticado para preservar a vida da mãe. Mas é curioso que "vida", nesse caso, signifique apenas simples sobrevivência. Viver é muito mais do que prolongar a existência, e o bem-estar não é só o bom funcionamento dos órgãos. Quer comprovar? Tente "consolar" um enlutado com a falsa sabedoria de que "saúde é o que interessa, o resto não tem pressa". Corrijo-me: não tente.
Se a vida não é só sobrevivência abstrata, o que pode significar aceitar o aborto para preservar a vida concreta da mãe?
4) A oposição não é entre os que privilegiam a vida do feto e os que privilegiam a escolha livre da mulher, mas entre abstrato e concreto.
Vamos privilegiar a vida do feto? Ótimo, mas que seja a vida concreta. Para exigir de uma jovem que ela leve a termo uma gravidez involuntária, é preciso oferecer-lhe a garantia de que ela poderá abandonar a criança com dignidade e de que a criança abandonada não ficará para sempre num orfanato. Ou seja, é preciso proteger a vida concreta do nascituro.
Vamos privilegiar a escolha? Nos anos 1970, na Suíça, havia imigrantes italianos que eram autorizados a trabalhar por períodos de 11 meses. Ao fim de cada período, eles tinham que voltar para seu país e lá ficar durante um mês. Era um artifício para que eles não se tornassem residentes e não pudessem levar consigo mulheres e filhos.
Um pouco para compensar a longa frustração, um pouco para que as mulheres, lá na Itália, tivessem de que se ocupar durante a longa ausência do marido, a regra era engravidar a esposa a cada volta para casa. Uma dessas esposas, num vilarejo da Campanha, tinha 30 anos e 11 filhos. Ela tentou abortar o 12º do jeito que dava. Perdeu a vida. Nessa história, onde está a escolha livre?
5) Uma menina de 13 anos transa pela primeira vez com um menino de 17. Ela ouviu dizer que é prudente usar camisinha. Ele explica que a camisinha foi proibida pelo papa. Passei um mês cruzando os dedos e funcionou: a menina não engravidou. É possível criminalizar o aborto e, ao mesmo tempo, desaprovar a contracepção?
6) No corredor de um pronto-socorro lotado, um médico (?) diz a uma enfermeira: "Não se preocupe. Ela abortou, deixe sangrar". Há os que querem criminalizar o aborto para punir a mulher: "Transou? Agora encare as consequências".
Alguém, a esta altura, perguntará: "Afinal, você é contra ou a favor da descriminalização do aborto?". Não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo.
Da Folha de São Paulo.
quinta-feira, outubro 21, 2010
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Um comentário:
Ma-ra-vi-lho-so!!!
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