quinta-feira, junho 26, 2008

Amores silenciosos- Contardo Calligaris





Amores silenciosos




CONTARDO CALLIGARIS


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A gente se declara apaixonado porque está apaixonado ou pelo prazer de se apaixonar?
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FAZER E RECEBER declarações de amor é quase sempre prazeroso. O mesmo vale, aliás, para todos os sentimentos: mesmo quando dizemos a alguém, olho no olho, "Eu te odeio", o medo da brutalidade de nossas palavras não exclui uma forma selvagem de prazer.
De fato, há um prazer na própria intensidade dos sentimentos; por isso, desconfio um pouco das palavras com as quais os manifestamos. Tomando o exemplo do amor, nunca sei se a gente se declara apaixonado porque, de fato, ama ou, então, diz que está apaixonado pelo prazer de se apaixonar.
Simplificando, há duas grandes categorias de expressões: constatativas e performativas.
Se digo "Está chovendo", a frase pode ser verdadeira se estamos num dia de chuva ou falsa se faz sol; de qualquer forma, mentindo ou não, é uma frase que descreve, constata um fato que não depende dela.
Se digo "Eu declaro a guerra", minha declaração será legítima se eu for imperador ou será um capricho da imaginação se eu for simples cidadão; de qualquer forma, capricho ou não, é uma frase que não constata, mas produz (ou quer produzir) um fato. Se eu tiver a autoridade necessária, a guerra estará declarada porque eu disse que declarei a guerra. Minha "performance" discursiva é o próprio acontecimento do qual se trata (a declaração de guerra).
Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas ("Digo que amo porque constato que amo") ou performativas ("Aca- bo amando à força de dizer que amo"). E isso se aplica à maioria dos sentimentos.
Recentemente, uma jovem, por quem tenho estima e carinho, confiava-me sua dor pela separação que ela estava vivendo. Ao escutá-la, eu pensava que expressar seus sentimentos devia ser, para ela, um alívio, mas que, de uma certa forma, seria melhor se ela não falasse. Por quê?
Justamente, era como se a falta do namorado (de quem ela tinha se separado por várias e boas razões), a sensação de perda etc. fossem intensificadas por suas palavras, e talvez mais que intensificadas: produzidas.
É uma experiência comum: externamos nossos sentimentos para vivê-los mais intensamente -para encontrar as lágrimas que, sem isso, não jorrariam ou a alegria que talvez, sem isso, fosse menor. Nada contra: sou a favor da intensidade das experiências, mesmo das dolorosas. Mas há dois problemas.
O primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode simplificá-los. Ao declarar meu amor, por exemplo, esqueço conflitos e nuances. No entusiasmo do "te amo", deixo de lado complementos incômodos ("Te amo, assim como amo outras e outros" ou "Te amo, aqui, agora, só sob este céu") e adversativas que atrapalhariam a declaração com o peso do passado ou a urgência de sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.
O segundo problema é que nossa verborragia amorosa atropela o outro. A complexidade de seus sentimentos se perde na simplificação dos nossos, e sua resposta ("Também te amo"), de repente, não vale mais nada ("Eu disse primeiro").
Por isso, no fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso, contido, pudico.
Para contrabalançar os romances e filmes em que o amor triunfa ao ser dito e redito, como um performativo que inventa e força o sentimento, sugiro dois extraordinários romances breves, de Alessandro Baricco, o escritor italiano que estará na Festa Literária Internacional de Parati, na próxima semana: "Seda" e "Sem Sangue" (ambos Companhia das Letras).
Nos dois, a intensidade do amor se impõe com uma extrema economia de palavras ("Sem Sangue") ou sem palavra nenhuma ("Seda"). Nos dois, o silêncio permite que o amor vingue -apesar de ele não poder ser dito ou talvez por isso mesmo.
No caso de "Seda": te amo em silêncio porque te encontro ao limite extremo de uma viagem ao fim do mundo, indissociavelmente ligada a um outro, e nem sei falar tua língua.
Você me ama em silêncio porque sou outro: uma aparição efêmera, uma ave migrante.
No caso de "Sem Sangue": te amo, e não há como falar disso porque te dei e te tirei a vida. E você me ama pelas mesmas razões pelas quais poderia e deveria querer me matar (os leitores entenderão).
Nos dois romances, a ausência da fala amorosa acaba sendo um presente que os amantes se fazem reciprocamente, uma forma extrema (e freqüentemente perdida) de respeito pela complexidade de nossos sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.

3 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo texto do Contardo, entretanto, não há como separar a tal verborragia amorosa que atropela o outro, quando há nela a dose incontida de um jarro transbordante. O "eu te amo, banalizado, repetido, pode parecer falácia, e talvez até o seja, muitas vezes, mas...considerando-se que as pessoas são seres únicos...não se pode impor padrões para expressar sentimentos...ou se estaria podando expressões humanas compreensíveis... pois, até o silêncio, ele mesmo, com sua intensidade imaginativa, pode ser um grande falastrão, ou um intenso divulgador de hipóteses para grandes amores, desde os proibidos até os questionadores, passando pelos amedrontados e jamais declarados, voltando aos tempos dos amores platônicos interiorizados ou sonhados nos travesseiros...vale a dica de leitura do articulista, pois o silêncio também fala, e grita, inclusive, sua sede de dizer o que não ousa...
Aparecida Torneros

Laura_Diz disse...

Aparecida, obrigada por comentar. Vou repassar pro Contardo.
Tb acho impossível evitar a fala qdo jorra a paixão- incontida.
Concordo que o silêncio gera uma intensidade imaginária maior e pode ser equivocada, com certeza, um perigo. Amores platônicos são alimentados pelo silêncio.
Volte sempre.
Abs, Elianne

Anônimo disse...

Talvez "o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode simplificá-los". Mas também acredito que que quando fazemos uma declaração de amor nos confrontamos justamente com a grandiosidade, complexidades e nuances que nunca podem ser perfeitamente submetidas às palavras. As palavras são limitantes pois nunca abarcam toda a intensidade da experiência de amar. Também o silêncio, que tem estatuto de fala, contém e expressa uma parte do que sentimos, mas com suas inevitáveis limitações, tal como as palavras e os gestos concretos do dia-a-dia. Dessa forma, não acredito que uma deva prevalecer sobre a outra, pois em última instância todas podem ser formas de se declarar o mesmo amor.