quinta-feira, agosto 23, 2012

Contardo Calligaris- Procuras de desejos perdidos







Casei, nada depende mais de mim; agora, ele (ou ela) me impede de me tornar o que eu tanto queria ser
No fim de semana, assisti a dois filmes que dialogam na minha cabeça.
Primeiro, vi "Um Divã para Dois", de David Frankel. Após 30 anos de casamento, Kay e Arnold, sexagenários, vivem uma rotina miserável. Faz quatro anos que eles não têm relações sexuais, mal se falam e mal se tocam. Talvez eles tenham se amado no passado, mas pouco ou nada disso aparece. Um dia, Kay não aguenta mais e decide recorrer a um terapeuta de casal que propõe terapias intensivas de uma semana no Maine, longe do Nebraska onde eles moram. Arnold acha bobagem e dinheiro posto fora, mas acaba seguindo a mulher até lá.
Quis ver o filme porque a história do casamento de Kay e Arnold é, ao mesmo tempo, trivial e raramente contada. Também me interessava o terapeuta, que, segundo alguns críticos, era um extravagante.
Bom, o terapeuta do filme não é extravagante. Alguns dos exercícios que ele sugere ao casal são extremos (e cômicos, como sexo oral num cinema), mas, no conjunto, não há nada de heterodoxo em pedir que os cônjuges se esforcem para voltar a se abraçar e tocar ou que revelem suas fantasias sexuais ao outro.
Uma vez instalada a distância na vida de um casal, "discutir a relação" não é suficiente (quando não piora o caso): é preciso romper, de entrada, diretamente, os hábitos constituídos do isolamento.
Em geral, nos dois membros de um casal que não se fala e não se toca, mas se obstina a conviver, há uma tremenda vergonha de estar traindo um grande desejo de parar com a palhaçada do afastamento e reencontrar o parceiro.
Mas trair o próprio desejo da gente é confortável. E, para muitos, o casamento serve para isso: é um pretexto para descansar da tarefa de desejar e de inventar a vida. Assim: casei, nada depende mais de mim, ele (ou ela) me prende nesta rotina e me impede de me tornar o que eu tanto queria ser -boa desculpa, hein?
O segundo filme, "A Vida de Outra Mulher", de Sylvie Testud, conta a história de Marie, que, num dia de 2011, aos 41, acorda para descobrir que ela esqueceu tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos de sua vida. Ela tem um filho, que ela "nunca" conheceu, e está se divorciando do homem por quem, pelo que ela se lembra, ela acaba de se apaixonar (só que isso foi 15 anos antes). Marie tentará reconquistar o marido que ela ama como o amava na época em que se apaixonou por ele.
A amnésia repentina de Marie (pouco provável clinicamente) é uma ótima parábola. Por que pessoas que se lançam na vida com paixão um pelo outro, com planos e apostas comuns, podem acordar um dia no rancor de uma separação?
Kay e Arnold, na hora de tentar entender o que foi que os afastou, estão tão perdidos quanto Marie. Mas Marie tem sorte: ela não pode transformar o que aconteceu nos últimos anos em tema de debate (Quem está com razão? Quem deixou de amar? Quem não soube cuidar? Quem traiu quem?). Ela não se lembra de nada e só pode voltar para sua última lembrança: o momento mágico do encontro e da primeira noite.
Para os mortais comuns, como Kay e Arnold, que podem até se calar, mas se lembram de tudo o que deu errado, o caminho é mais complicado.
Alguém dirá que, se Marie retomar seu casamento sem poder sequer refletir sobre os caminhos pelos quais ele se degradou (ela só pode supor, imaginar), então, inelutavelmente, nada mudará, e, alguns anos depois, Marie e o marido acabarão se separando numa repetição do mesmo divórcio.
Não sei se isso é verdade. A degradação de um casal é feita de um acúmulo de pequenas palavras e condutas, que parecem insignificantes na hora e mesmo depois, na memória: não liguei naquele dia, cheguei atrasado no outro, preferi dormir quando você queria outra coisa, não disse o que eu queria porque tanto faz... Nada precisa ser drástico e, no fundo, tudo é contingente: se eu estivesse apenas menos cansado, naquela noite, não teria dormido enquanto você falava... Conclusão: mesmo recomeçando sem poder recorrer às ditas "lições" do passado, talvez o desfecho não seja necessariamente o mesmo.
Além disso, mesmo se Marie retomar seu casamento (que, para ela, mal começou) na ignorância do que deu errado na primeira vez e se por isso, anos depois, ela divorciar novamente, qual é o problema? Aos poucos, eles cometerão os mesmos erros que cometeram no passado, e o casal não será para sempre? E daí, quem disse que só vale a pena o que for para sempre?

quinta-feira, agosto 16, 2012

Contardo Calligaris- "Paidrastos" (e "mãedrastas")






Domingo passado foi Dia dos Pais --como disse R., 9 anos, é o dia em que o pai dá um dinheiro para que a mãe compre um presente para ele, o qual será entregue pelas crianças.
Esta coluna chega com um pouco de atraso; por isso, é sobre os pais do segundo turno: os padrastos.
Não encontrei uma estatística que me dissesse quantas famílias, no Brasil, vivem com filhos de casamentos anteriores de um dos pais ou de ambos (talvez um leitor sociólogo possa me ajudar).
Mas é fácil constatar que muitas famílias são hoje compostas de pais, filhos e, como se expressou uma vez um de meus enteados, de "paidrastos" e "mãedrastas". O tema, claro, mereceria mais do que estas pequenas notas.
Sobre as madrastas, só o essencial: o homem que tem filhos de um casamento anterior acredita cegamente que sua nova mulher os amará como se fossem filhos dela (ser mãe, para uma mulher, seria um instinto irresistível). O pai de Cinderela, mesmo vivo, não se daria conta de que sua filha era a rival detestada e perseguida pela sua nova mulher e pelas suas enteadas.
Ora, com várias exceções (claro), para a nova mulher, os filhos do casamento anterior do marido são rivais, irmãozinhos metidos que disputam com ela o amor do "pai" comum --isso vale especialmente quando ela tem filhos de um casamento anterior ou planeja ter mais filhos no novo casamento.
Mas vamos aos padrastos, que são o nosso tema do dia.
1) Apesar dos testes de DNA, ser pai continua sendo uma questão mais simbólica que real, ou seja, o pai ainda é aquele que a mãe indica como pai. Uma consequência disso é que os homens são perfeitamente capazes de se esquecer de seus filhos depois de uma separação (a não ser que a mulher continue lhes repetindo, noite e dia, que eles são os pais das ditas crianças).
Por essa mesma razão, os homens são facilmente padrastos atenciosos --basta que a nova mulher lhes atribua essa função. Agora, por serem "atenciosos", eles não são menos precários: como acontece no caso dos próprios filhos, o laço do homem com seus enteados é subordinado ao laço com a mulher que é mãe deles. Em outras palavras, se o padrasto se separar da nova mulher, dificilmente ele manterá uma relação com os enteados, mesmo que eles tenham se criado com ele durante anos.
Triste? Talvez. Mas já imaginou a complicação no caso de vários casamentos sucessivos? Que tal um almoço de Dia dos Pais com pai, padrasto 1, padrasto 2 e padrasto 3?
2) Disse que os homens são facilmente padrastos atenciosos. Justamente, aqui surge um problema: ao redor da educação dos enteados, o padrasto quase sempre descobre que há, entre ele e sua nova mulher, diferenças de valores --que só aparecem na hora de cada um mostrar seus dotes pedagógicos. No eventual conflito, o padrasto está, de fato, quase impotente.
Primeiro, se ele quiser impor regras, a nova mulher entenderá isso como análogo ao que ela mesma gostaria de fazer com os filhos do casamento anterior do marido --ou seja, ela achará que o marido usa uma severidade seletiva, que ele nunca aplicaria aos seus próprios filhos.
Segundo, educar implica correr o risco de ser detestado --risco que um pai deve correr sem hesitação; mas o padrasto precisa e quer conquistar a simpatia dos enteados, sob pena de ouvir o fatídico: "Você não é meu pai!".
3) Os enteados não são anjos. Num primeiro momento, todos eles podem festejar a recomposição de um quadro familiar, seja ele qual for. Logo, os meninos tendem a se tornar paladinos da honra materna e paterna (como é que a mãe se interessa por outro homem que não seja eu? Quem é este cara que quer ocupar o lugar do meu pai?).
Quanto às meninas, elas oscilam entre três caminhos: lamentam que a mãe, e não elas, conquiste todos esses homens; receiam que, aceitando o padrasto, elas trairiam o pai e seriam desamadas por ele; enfim, bem mais do que os meninos, elas não querem compartilhar a mãe com ninguém.
A experiência do divórcio dos pais criou jovens interessantes. A sensação de que eles não foram uma razão suficiente para que os pais ficassem juntos produziu, em alguns, uma insegurança doentia para a vida toda, mas, em outros, deixou um fundo de sabedoria melancólica que resiste bravamente às ideias narcisistas mais estupidamente grandiosas.
Quanto às complexidades da vida numa segunda ou terceira família, está na hora de considerar suas consequências para as crianças e os adultos que delas virão. Voltarei ao tema.

quinta-feira, agosto 09, 2012

Contardo Callligaris- Epidemia de amor pelas crianças


09/08/2012 - 03h00



Epidemia de amor pelas crianças



1) É habitual que, na infância e na adolescência, um jovem sonhe com vitórias e aplausos, sem pensar nos esforços necessários para merecê-los.
Nestes dias, deparo-me com crianças ninadas por devaneios de glória olímpica. Sem querer, corto seu barato, explicando o que é indispensável fazer para que esses sonhos se transformem numa chance real de chegar lá.
As crianças respondem que elas não têm a intenção de realizar o tal sonho: apenas querem o prazer de devanear em paz. Até aqui, tudo bem, mas os pais me acusam de estragar, além dos sonhos, o futuro dos filhos, os quais, segundo eles, para triunfar na vida, precisariam confiar cegamente em seus dotes.
O problema é que os elogios incondicionais dos pais e dos adultos não produzem "autoconfiança", mas dependência: os filhos se tornam cronicamente dependentes da aprovação dos pais e, mais tarde, dos outros. "Treinados" dessa forma, eles passam a vida se esforçando, não para alcançar o que desejam, mas para ganhar um aplauso.
Claro, muitos pais gostam que assim seja, pois adoram se sentir indispensáveis (no cinema, uma mãe enfia a cara embaixo de seu próprio assento para atender o telefone que vibrou no meio do filme e sussurrar um importantíssimo: sim, pode tomar refrigerante).
2) Meu irmão, aos dez anos, quis que todos escutássemos uma música que ele acabava de "compor". Movimentando ao acaso os dedos sobre o teclado (não tínhamos a menor educação musical), ele cantou uma letra que começava assim: sou bonito e eu o sei. Minha mãe escutou, constrangida, e, no fim, declarou que a letra era uma besteira, e a música, inexistente. Mas, se meu irmão quisesse, ele poderia estudar piano --à condição que se engajasse a se exercitar uma hora por dia. Meu irmão (desafinado como eu) desistiu disso e se tornou um médico excelente.
3) Os pais dos meus pais davam, no máximo, um beijo na testa de seus filhos. Já meus pais nos beijavam e abraçavam. Mesmo assim, não éramos o centro da vida deles, enquanto nossos filhos são facilmente o centro da nossa.
Para a geração de meus avós e de meus pais, a vida dos adultos não devia ser decidida em função do interesse das crianças, até porque o principal interesse das crianças era sua transformação em adulto (criança tem um defeito, foi-me dito uma vez por um tio: o de ser ainda só uma criança).
Lá pelos meus oito anos, eu tinha passado o domingo com meus pais, visitando parentes. A noite chegou, e eu não tinha nem começado meu dever de casa. Pedi uma nota assinada que me desculpasse. Meu pai disse: esta criança está com sono e deve trabalhar, façam um café para ele. Detestei, mas também gostei de aprender que, mesmo na infância, há coisas mais importantes do que sono e bem-estar.
4) Na pré-estreia do último "Batman", em Aurora, Colorado, um atirador feriu 58 pessoas e matou 12. Um comentador da TV norte-americana (não sei mais qual canal) disse, de uma menina assassinada, que ela era "uma vítima inocente".
Se só a menina era inocente, quer dizer que os outros 11, por serem adultos, eram culpados e mereciam os tiros?
Tudo bem, estou sendo de má-fé: o comentador queria nos enternecer e supunha, com razão, que, para a gente, perder um adulto fosse menos grave do que perder uma criança, que tem sua vida pela frente e, como se diz, ainda é "um anjo". No entanto, eu não acredito em anjos e ainda menos acredito que crianças sejam anjos. Também não sei o que é mais grave perder: a esperança de um futuro ou o patrimônio das experiências acumuladas de uma vida? Você trocaria seus bens atuais por um bilhete da Mega-Sena de sábado que vem?
5) Cuidado, não sonho com uma impossível volta ao passado. Essas notas servem para propor uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos. Explico.
A partir do fim do século 18, no Ocidente, as crianças adquiriram um valor novo e especial. Únicas continuadoras de nossas vidas, elas foram encarregadas de compensar nossos fracassos por seu sucesso e sua felicidade.
Desde essa época, em que as crianças começaram a ser amadas e cuidadas extraordinariamente, nós nos preocupamos com os efeitos nelas de uma eventual falta de amor. Agora, começo a pensar que nossa preocupação com os estragos produzidos pela falta de amor sirva, sobretudo, para evitar de encarar os estragos produzidos pelos excessos de nosso amor pelas crianças.
Contardo Calligaris
Contardo Calligaris na Folha de São Paulo